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- Achados e Perdidos do Ska!
Durante certa pausa da música pelos palcos aproveitei pra pesquisar e estudar mais sobre a história da origem do ska. Fazia tempo que queria dar uma atenção para a história e não só escutar, coisa que faço muito. Sempre fui muito curioso em relação ao período que antecede o ska, antes dos anos 50 até chegar na batida. Como de fato chegaram ao ritmo? As explicações são sempre muito resumidas e com poucos detalhes do período pré-ska, pelo menos para mim. Bastante gente pesquisou dos anos 2000 pra cá e a internet pra isso é maravilhosa. Ter acesso a artigos, matérias, estudos de universidades e muita música. Lembro de ir nos primeiros festivais do Bourbon Street, quando ainda ocorriam lá na rua, na Alameda dos Chanés, e via as bandas de New Orleans tocando zydeco, rhythm and blues e algumas músicas com a base no contra-tempo (off beat). Sempre me perguntei por que aqueles músicos americanos estavam tocando a base no contra-tempo, igual os jamaicanos tocam. Os jamaicanos os influenciaram ou foi o contrário? Quase a mesma pergunta me fiz sobre bandas klezmer de música judaica, e ainda algumas músicas eruditas europeias do passado com passagens no contra-tempo. A música é universal, claro, coincidências acontecem, mas muitas também têm uma explicação. Escutando muita música, lendo artigos, matérias e até uma tese genial do estudioso Paul Kaupilla, que me esclareceu muita coisa, segue aqui um resumo desses meus estudos. A história de como o ska, a batida, o ritmo nasceu é sabida, ou melhor: as muitas histórias. Foram vários os fatores que levaram até chegar à batida do ska. Muita gente e caminhos levaram à origem da música jamaicana. Mas eu nunca soube dos detalhes, olhando de fora e longe dessa época é fácil intuir muita coisa, mas vou tentar destrinchar um pouco. Sabemos que o ska é a mistura do mento, do calypso caribenho, com o jazz e o rhythm and blues americano, diga-se de passagem, esses dois ritmos caribenhos são misturas de ritmos africanos com melodias europeias vindas dos colonizadores. A Jamaica foi colonizada por espanhóis e ingleses. A clássica história é que a ilha da Jamaica, por ser perto dos Estados Unidos, sintonizava as rádios americanas e os músicos tentavam reproduzir os sucessos americanos. Misturado à forte cultura local do calypso e do mento, surge o ska. Tá, mas e aí, como isso aconteceu? Não foi da noite pro dia! A Jamaica, assim como muitas ilhas no Caribe, teve como primeiros colonizadores, os espanhóis, que dizimaram todo o povo nativo, os indígenas Taino e Arawak. Eles chamavam a ilha de Xaymaca (terra da madeira ou da água). Após a guerra, em meados de 1600, a colônia virou inglesa e muitos escravos continuaram a ser levados pra ilha formando uma “nova sociedade” Jamaicana. Música dos escravos americanos de New Orleans e Jamaicanos Nos Estados Unidos proibiram os escravizados de cantar e tocar seus tambores, exceto em New Orleans, onde os escravizados tiveram menos restrições às suas músicas (pelo menos por um período). Aos fins de semana era permitido batucar e cantar na famosa Congo Square, e isso explica por que New Orleans é o berço do jazz. A proximidade geográfica de New Orleans com a Jamaica também coincide com o fato dos escravizados da Jamaica poderem cantar e tocar mantendo sua tradição musical vinda da África. Os donos das plantações acreditavam que eles "rendiam mais" com a música. A batida burru, vinda do oeste da África mais tarde, deu origem à música de culto rastafari e ainda foi levada ao ska por Count Ossie e Loyd Knibb, figuras importantíssimas na criação do ska. Esse pode ser considerado um primeiro ponto comum, entre a Jamaica e New Orleans, que mais tarde, nos anos 50, também teriam em comum o contra-tempo (offbeat ou afterbeat), em suas músicas. Anos 40 e 50: Big Band (jazz, rumba, merengue, cha-cha-chá e rhythm and blues) Não se fala muito do período antes do ska. Fala-se do calypso e do mento, mas nos anos 40 e 50 haviam Big Bands e combos que tocavam jazz, merengue, rumba e uma série de outros ritmos caribenhos. Um adendo para a formação dessas Big Bands, elas não eram numerosas como as americanas. Tinham um formato mais reduzido, o que baixava o custo e facilitava toda a logística de trabalho por ter menos pessoas. Baba Motta, The Val Benett Orchestra, Sonny Bradshaw 7, são algumas dessas orquestras ou Big Bands, mas a The Eric Deans Orchestra foi sem dúvida a mais importante delas, e estou falando de pelo menos vinte anos antes do ska. Esse músico multi-instrumentista tem um papel muito importante na história da música jamaicana. Não se fala muito dele, por haver pouco registro, mas é um forte pilar da construção e do desenvolvimento da música jamaicana. Muito do que aconteceu nessa fase pelas mãos do Eric teve reflexo na origem do ska. Merece todo o reconhecimento da sua importância. Alpha Boys School Pra quem não sabe, na Jamaica, muitos músicos saíram da Alpha Boys School, um orfanato que por conta de uma freira "guerreira", sim uma freira, a "Sister Ignacious", que incentivou o programa de música da escola e com isso formou alguns dos principais músicos da história da música jamaicana, tais como: Lester Sterling, Johnny "Dizzy" Moore, Tommy MacCook, Don Drummond, Rico Rodrigues, Yellow Man, Vim Gordon e muitos outros. Eric Deans foi professor de música na Alpha Boys, um grande incentivador, que inclusive formou a primeira banda só de mulheres na Jamaica. E eu nunca soube disso e achei uma foto! A importância da Alpha Boys, da Sister Ignacious, e Eric Voltando à história da The Eric Deans Orchestra. Alguns desses músicos que citei que tocaram na orquestra do Eric, saíram da Alpha Boys. O genial trombonista Don Drummond foi um deles. Tocavam uma série de ritmos, merengue, calypso, mento, rumba e o jazz. Então temos um bom ponto de partida. De fato uma orquestra tocando todos esses ritmos foi começando a fermentar ideias na cabeças dos músicos que ali tocavam. E se lá atrás nos Estados Unidos os escravizados cantaram e tocaram seus tambores criando sua nova música, os jamaicanos aqui em 1940 dão o início à fusão escancarada da música americana (o jazz) com ritmos caribenhos. Olha onde começa isso!! Não é só lá no fim dos anos 50, como muito se fala. Tudo bem, no fim dos anos 50 para os 60, foi o auge, a transição mesmo, mas foi um processo longo até chegar à batida do ska. A Jamaica é uma pequena ilha no Caribe, porém por ser ilha e muito perto de outras ilhas, sempre esteve muito aberta, sempre circulando muita gente. Muitos dos músicos que citei nasceram em Cuba (Rico Rodrigues, Roland Alphonso, Tommy MacCook). Com todo esse movimento a orquestra de Eric começa a fazer sucesso e a excursionar pelos Estados Unidos, Inglaterra e Caribe. Após uma excursão no Haiti, Eric Deans volta para a Jamaica como o rei do merengue, tocando em hotéis como o famoso Colonel Club. Porém, no fim dos anos 50 a orquestra acaba, seus músicos já famosos começam a atuar nos estúdios que começam a ser montados na Jamaica, gravações começam a pipocar e com isso começa a fase do pré-ska ou “early ska”. Vejam a importância desse momento na história da música jamaicana, quase o Skatalites inteiro já estava ali no começo, participando de uma orquestra, aprendendo e tocando esses ritmos todos, incluindo Lloyd Knibb, o futuro baterista dos Skatalites. Esses ritmos fazem parte da base do que viria a ser o primeiro ritmo genuinamente jamaicano, o ska. Encerrada essa etapa, em que foi dado o ponta-pé inicial de ritmos caribenhos com o jazz americano, a gente entra num outro estágio que é o rhythm and blues americano que dá origem ao rhythm and blues jamaicano. O rhythm & blues e o sound system O R&B na Jamaica se mistura muito com a origem do sound system jamaicano. Sound system eram sistemas de som, com caixas e toca discos, que foram se popularizando por serem mais baratos para os promotores de baile. Ao invés de pagar mais caro por uma orquestra que tem muitos músicos, um dj resolveria tudo e ainda não há o intervalo de descanso que as orquestras faziam e deixavam a pista esfriar, levando o público embora para o próximo baile. Além disso esses bailes eram ao ar livre, mais acessíveis e baratos para o público que era muito pobre. Aqui começa um outro importante ponto, os donos de sound system. Isso daria uma série de tv fantástica com todas as confusões e a indústria musical que se forma a partir do sound system. Quando digo indústria isso vai além da música jamaicana, chega ao rap e à música eletrônica. O sound system e seus donos foram outro pilar importante em toda a produção e distribuição da música jamaicana. Com o passar dos anos os donos viraram produtores, gravando seus próprios artistas. Pra citar alguns nomes principais: Duke Reid e Sir Coxsone Dodd. Mas um pouco antes de chegarem nessa fase de produzir, eles tinham que comprar discos de orquestras e de artistas de R&B americano, lembrem-se que isso é nos anos 50, onde não se tinha toda a facilidade de hoje. Era roots o lance todo, vencia quem tinha as melhores e mais exclusivas músicas. Inclusive soldados americanos da base militar trocavam discos por entradas em prostíbulos. Os jamaicanos começam a viajar para os Estados Unidos em busca de discos, músicas exclusivas pra tocar em seus sound systems, e muito, mas muito rhythm and blues é tocado nas festas. Com uma particularidade que fez toda a diferença, o R&B do sul dos Estados Unidos, um detalhe muito importante. Muito provavelmente o contra-tempo presente em toda a música jamaicana do final dos anos 50 vem daí. Artistas americanos como Fats Domino, Rosco Gordon, Louis Prima, entre outros foram bastante populares na Jamaica. Eles têm em comum na sua música o contra-tempo (off beat ou after beat) bem acentuado e muito presente em suas composições. Rosco Gordon é o artista que mais usava esse contra-tempo em suas músicas. Dizem que ele não era um pianista muito técnico e que por isso se resumia a fazer o off beat nas músicas. O fato é que isso gerou uma identidade e uma ligação imediata com o público jamaicano. Rosco foi muito tocado e excursionou na Jamaica. Os contra-tempos já namoravam os ouvidos dos produtores e músicos jamaicanos da época. Essa ligação fica evidente quando os saxofonistas Lester Sterling e Roland Alphonso, ambos do futuro The Skatalites, tocaram com Rosco Gordon, absorvendo ainda mais a música e o estilo de Rosco. R&B jamaicano ou blue beat No fim dos anos 50, por volta de 58, boogie woogie, jump blues e muito R&B são gravados na Jamaica. Laurel Aitken e muitos cantores de calypso entram em estúdio pra gravar e alimentar os sound systems que estavam a todo vapor. Um pouco depois, por volta de 1960, nasce de fato a gravadora Blue Beat, que também vira nome de um sub-gênero, o rhythm and blues jamaicano, praticamente um "early ska". Exatamente onde entra o contra-tempo na música jamaicana, e aqui temos um grande primeiro passo para se chegar ao ska. O sub-gênero Blue Beat “nasce” com o famoso contra-tempo, o ritmo continua shuffle mas a base, as guitarras e o piano são todos no contra-tempo. Um passo importante para a mudança e a criação de algo novo. Falando musicalmente, fica com o acento no “E” em compasso 4/4: “um E dois E três E quatro ” e segue repetindo esse modelo na base. Vejam bem, esse primeiro uso do contra-tempo na música jamaicana é creditado ao Prince Buster, que pediu ao guitarrista Jah Jerry Haynes (futuro guitarrista do Skatalites), pra tocar e dar ênfase ao contra-tempo. Produtor, músico e compositor esperto que era o Prince Buster, certamente já ouvira antes esses ecos do contra-tempo vindo das raízes do R&B americano pelo já citado Rosco Gordon e Fats Domino, mas isso não tira o brilho nem a importância desse momento. Derrick Morgan, Theo Beckford, Cluett Johnson e muitos outros gravam o blue beat (R&B jamaicano). Ainda não chegamos à batida do ska, estou falando só do contra-tempo, vejam que rolou mesmo uma transição para se chegar na batida, está quase chegando no que se tornaria o ska, mas ainda não é. Podem escutar as gravações desses artistas que citei de 1960 até 61/62 são praticamente imitações de R&B, boogie woogie, tudo em batida shuffle e com a base no contra-tempo. Por isso mesmo os primeiros ska's são shuffle, é uma transição quase como um degradê mesmo, passo a passo. A batida do ska Count Ossie foi fundamental para se chegar à batida do ska. Count foi um percussionista da comunidade rastafari. Ele levou o nyabing pra suas gravações, e o burru, vindo da África para os campos dos escravos, vem à tona na música "pop" jamaicana. Ossie conheceu Prince Buster e Coxsone Dodd e gravou muitos singles como a música "African Shuffle". Escutem! É maravilhoso!! São metais com guitarra e percussão. Não tem bateria, o que ligou diretamente à música vinda da África (burru) com a música que estava sendo feita naquela época, que já era fruto de outras combinações da música africana. Aí começa a surgir um caminho novo ritmicamente falando, essa fase do Count Ossie marca e abre caminho para o ritmo ska surgir. Em contra partida, na bateria convencional gravando o rhythm and blues jamaicano, tínhamos o baterista Arkland "Drumbago" Parks e também o lendário Lloyd Knibb a quem é creditada de fato a batida do ska. Vamos lembrar do Lloyd, ele tocou no The Eric Deans Orchestra, junto com boa parte do que viria a ser o The Skatalites. Sua base e sua carreira desde o início sempre foi tocando ritmos latinos como a rumba, o bolero, o cha-cha-chá e o jazz. Por muita sorte no fim dos anos 50, ele foi parar na banda do Count Ossie, onde teve contato com os tambores nyabing e o burru. Isso foi decisivo e fundamental para o nascimento da batida ska, esse encontro com Count Ossie foi crucial, provavelmente, para toda a música jamaicana que seguiria dali em diante, para até depois do ska, ainda com o nascimento do rocksteady e do reggae. Enfim, nasce o ska! Um fato muito interessante é que em 1962 ainda antes do The Skatalites, Coxsone conversa com Tommy MacCook e reúne músicos para gravar o disco "Jazz Jamaica - From The Workshop". A batida do ska ainda não está ali. Não faria sentido gravar um disco de jazz sendo que a principal batida da música jamaicana já existia. Por volta de 62 mesmo, dizem que o produtor Coxsone Dodd, chegou para Lloyd Knibb e pediu pra ele puxar mais os metais, com uma pegada mais enérgica, provavelmente os músicos de metais estavam ralentando (característica dos músicos de sopro jamaicano, eles sempre tocam pra trás, layback), então ele começou a tocar o burru na bateria, de alguma maneira sintetizou nas peças da bateria a batida com o segundo e o quarto tempo fortes, provavelmente criando o famoso "One Drop" (baqueta no aro da caixa e batida do bumbo juntos) da música jamaicana e mantendo isso reto, direto, então manteve o shuffle no chimbal e nasce aí a batida do ska. O primeiro ritmo nascido e criado na Jamaica. Após muito tempo tocando, reproduzindo e imitando músicas de fora da ilha, surge algo novo, bombástico e ainda num momento histórico. A Jamaica estava se tornando independente da Inglaterra em 1962. Imaginem que momento! E agora o ska se une ao contra-tempo da base, e o contrabaixo seguindo firme no chão com seu "walking" característico do jazz e do R&B. Nasce o ska shuffle que se desenvolve muito a partir do seu nascimento. O nascimento do Skatalites O nascimento e o desenvolvimento do ska vem de muita mistura, de se fazer versões. A batida se desenvolveu e o próprio Knibb misturou ainda com muita coisa, ele mesmo dizia. Inclusive com a nossa bossa-nova. Escutem "Ska Ba". Tommy MacCook, numa entrevista, diz que é influência da bossa, é possível identificar na batida Lloyd Knibb mudando o acento no aro da caixa. Todas essas pessoas aqui citadas são, para mim, os criadores do ska. É difícil creditar as pessoas e seus feitos, mas todos de alguma maneira deixaram sua marca e acrescentaram algo. A história dá muita margem a interpretações e o legado que fica é a música, que conta mais que qualquer outro dado ou data. Ainda é curioso que os jamaicanos sempre tiveram um jeito muito particular de tocar o jazz, sempre tentaram reproduzir a música americana, como a de Glenn Miller, ou até o virtuosismo do Charlie Parker e Dizzy, ou as muitas músicas do Mongo Santa Maria (cubano) que pegaram de inspiração pra compor inúmeras músicas do Skatalites, mas ouso dizer que nunca soou igual. A raiz da música deles era muito maior, muito forte, por isso foram, fizeram e sempre serão muito autênticos. Dessa história toda nasce o The Skatalites, e o nome do primeiro disco não poderia ser outro. "Ska Authentic" de 1964. O Skatalites foi a reunião dos melhores músicos de estúdio da Jamaica, a reunião foi de 1963 ao início de 1965. Membros originais: Don Drummond (trombone), Tommy MacCook (sax tenor), Roland Alphonso (sax alto) Johnny "Dizzy Moore" (trompete), Jackie Mittoo (piano) Jah Jerry Haynes (guitarra), Lloyd Brevett (baixo acústico) e Lloyd Knibb (bateria). Cantores: Jackie Opel, Doren Shaffer, Lord Tanamo. Segundo relatos, muitos músicos gravaram e não dá nem pra saber quem estava em determinadas sessões de gravação, mas não dá pra deixar de citar o genial guitarrista Lynn Tait, o trombonista Rico Rodrigues, o grande mestre da guitarra Ernest Ranglin (que ganhou uma guitarra do próprio Les Paul, quando o viu tocar.), e um então jovem cantor, Bob Marley. Reparem que durante esse período dos anos 50 em diante, tem sempre a figura do produtor por trás. Sempre o interesse comercial em fazer a música dar certo, e vender, e eu não tenho dúvidas que isso de alguma maneira impactou no sucesso que o reggae teve no mundo anos depois do ska. Felippe Pipeta é instrumentista e compositor fotos de Felippe Pipeta por Walter Antunes
- Walter Franco, osso & tutano
Meu primeiro contato com a música de Walter Franco ocorreu num começo de noite de domingo no bairro do Bixiga em São Paulo em 1976 ou 77. Walter estava fazendo um show no antigo Teatro Aquarius, depois Zaccaro, e hoje, fechado. Foi uma revelação. Pela primeira vez percebi do que se tratava o uso de eletrônica de forma criativa na música, não apenas como um amplificador de volume. Para um adolescente vivendo no ambiente repressivo da ditadura militar, aquilo era um jorro de liberdade. Ousadíssimo. Walter Franco utilizava duas baterias e um arsenal de efeitos como reverbers, delays, que transformavam o som da voz, por exemplo, num abismo de sonoridades originais. Cantava e fazia soar a garganta como uma orquestra de sons diversificados. O volume também era usado criativamente. Se não me engano, o Pena Schmidt era o técnico de som responsável. Acho que foi depois (ou pouco antes) do antológico show do Teatro Apa, no centro. Um show de formação que me marcou para sempre. O repertório devia conter músicas do álbum da mosca e de Revolver. Anos depois gravei em 1988 um LP no legendário estúdio Eldorado, e me lembro de estar emocionado em utilizar o mesmo estúdio de Revolver. Acho que foi em 1979 que tive a oportunidade de presenciar no Teatro da FGV, a primeira apresentação de Canalha, um soco no estomago. Música de um Walter Franco que dialogava com toda a revolta do punk daquele momento. Já nos anos de 1990, como colaborador da revista de rock BIZZ escrevi um artigo sobre o magnifico REVOLVER (1978), como o disco de uma ideal discoteca básica. O artigo motivou a gravadora de Walter a reeditar seus álbuns, o que foi sensacional. Encontro depois Walter, grato, por esse alô e finalmente travamos um contato pessoal. a mítica capa do álbum Revolver em foto de Mario Luiz Thompson Sempre extremamente profundo na formulação de ideias sobre som e música nossos encontros eram sobre projetos possíveis que realizaríamos, sempre focados em criação. Descubro, ao realizar uma nova montagem, em 2006, de Bailado do Deus Morto (1933) de Flávio de Carvalho, que ele, o próprio Walter, havia participado, nos anos de 1960, de uma reencenação da peça com participação do próprio Flávio na EAD. Diogo Franco, filho de Walter e músico, participou dessa remontagem que fiz no começo dos anos 2000. Uma coincidência de interesses que atravessava décadas. Ainda no inicio dos 2000, Walter me convida a gravar o clarone de uma nova versão de Cabeça no CD Tutano. Uma versão com muita improvisação. Em 2003, convidei Walter a colaborar no projeto 24 Óperas Por Dia, com uma composição sobre usura. A música é incrível, com aquela concisão de melodia & letra inigualáveis. O input para o Walter foi o canto sobre usura de Ezra Pound. A música continua inédita em gravação. O espetáculo foi apresentado em unidades do SESC e na abertura do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto. A música de Walter Franco atravessa a minha trajetória musical desde muito tempo, e a quem sempre recorro quando me lanço a escrever algo parecido com uma canção. Walter alargou esse universo, encapsulando-o, paradoxalmente. Dele brota o tutano, seiva oculta, envolvida pela dura casca do osso. Essa analogia é pertinente, se considerarmos o pêndulo de suas criações do lirismo minimalista ao grito primal. Livio Tragtenberg é compositor e instrumentista fotos do "osso & tutano" e de Livio Tragtenberg por Walter Antunes
- Os corpos das mulheres negras e a ironia do Brasil contado por Machado
Estátua da cabeça de Luís Gama, advogado negro que lutou pela abolição da escravidão no Brasil da segunda metade do século XIX. Largo do Arouche, São Paulo, Brasil. Em três contos de Machado de Assis os corpos das mulheres negras aparecem como o elemento social representativo da força nacional de subjugação colonial escravista. Lucrécia em O CASO DA VARA, Arminda em PAI CONTRA MÃE e Mariana em MARIANA. Esse aparecimento revela a pessoa negra oprimida e massacrada justamente naqueles traços que fariam dela uma pessoa e não uma máquina, um objeto, um animal útil de pertencimento ao aparato do trabalho doméstico ou então um bicho de estimação âncora de afeto fácil. A pessoalidade humana é suprimida de Lucrécia, proibida de participar de uma conversa e rir, de Arminda dar à luz um filho e de Mariana amar. Trata-se, pontualmente, da negação da intelectualidade, da maternidade e do amor, direcionada à mulher negra como uma arma apontada para a cabeça do condenado. Ao traçar quadros literários dessas negações Machado de Assis aponta para o sentido de horror contido na percepção de uma cultura específica, imposta por uma estrutura social profundamente criminosa, caracterizada por uma brutalidade banal e difusa, qual seja, a brutalidade sobre a qual se fundamenta a organização do estado brasileiro desde seus inícios, prolongando-se até hoje. A ironia do Machado é a ironia do Brasil. As definições correntes para essa famosa figura de linguagem machadiana devem se estender por entre uma visão polidimensional da obra. Ela aparece em todos os pontos do jogo de contrastes das composições. Do ponto de vista moral é tratado aqui o contraste entre a potência de amar, realçada pela figura da mulher escravizada mas entrevista nos traços de todas as outras personagens, e a violência sistemática do arranjo social, realçada pela figura dos pares masculinos brancos: Damião, Cândido e Coutinho, ausente, no entanto, das figuras das mulheres negras; presente novamente nas figuras das mulheres brancas: Rita, Clara e Amélia. Moralmente é um contraste entre Cristo - as mulheres negras, ou Marias-Marianas, Nossas Senhoras Aparecidas - e Pôncio Pilatos lavando as mãos com a sua turma de césares, filisteus, fariseus e judas no backstage simbólico-religioso da sustentação da sociedade da colônia. A potência de amar, tão bonita enquanto encarnada na mulher negra, sofre então uma caçada em cada um dos contos, a qual, com ares de aproximação sexual - portanto prosaicamente justificável diante da vaga promessa do florescimento do amor-, revela-se apenas a pura caçada fascista de sempre: caça-se para castigar com a vara, para capturar a escrava como um serviço devido a um senhor rico (até mesmo à custa do aborto de um feto de criança negra) e caça-se para recuperar a mulher-bicho de estimação da casa. A potência de morte, tão aparentemente medíocre, encarnada no homem branco burguês, não haverá de ser confundida aqui com amor, pois que o substitui por desejos recalcados, ações egoístas e caprichos típicos de vidas que, todos sabem, caracterizam-se sobremaneiramente por apresentarem-se cheias de miríades de desatenções e desfazeres. Desatenções essas que fazem do Brasil essa colônia tão agradável, simpática e rica, capaz de sustentar nas conversas de seus salões e redações da pouca imprensa, o negro escritor, Machado. MARIANA apresenta bem nítido o contraste entre o romantismo da personagem Mariana e o naturalismo prosaico das personagens narradoras encarnadas em Macedo e Coutinho. Esses dois poderiam ser, hoje em dia, quaisquer um dentre os homens brancos burgueses, portadores da indefectível personalidade cínica de classe média. E obviamente, coerentemente com o realismo do estilo machadiano, são justamente esses que narram e descrevem Mariana. Num híbrido de tons evocantes de coisas como Dom Quixote e Madame Bovary, forja-se o recurso estilístico de sustentação do patético: o patético amor da escrava Mariana - com seu nome vindo de Maria mãe de Jesus - a Mariana, mulatinha, cria da casa, tratada como filha enquanto submetida de bom grado ao cativeiro e tratada como escrava institucionalizada quando tenta se libertar do cativeiro. A construção da aura de deslocamento, desarmonia, enfim da impropriedade de um amor puro e verdadeiro sendo suavemente aviltado, no contexto do narrador, como um caso de romantismo ingênuo mas que, enfim, cabe na história do coração de um homem tristemente comum naquele espacinho reservado para as pequenas verdades de sua pequena vida. É a vitória da mediocridade burguesa reivindicando seu direito de pequena proprietária performatizando o contraste de sua inerente brutalidade, mesquinhez e vulgaridade, em relação ao sonho de beleza, amor, potência e promessa de Mariana. A profundidade da mediocridade brasileira no Coutinho e a profundidade do romantismo de Mariana em contraste: a ironia de Machado é a ironia do Brasil. Os capazes de amar, no Brasil, são aqueles com raízes nos negros - e nos índios, atestariam depois Glauber Rocha, Caetano Veloso, tantos e tantos outros, etc. - os únicos talvez com a potência desse amor total e sublime de Mariana. Se há ideia de violência impingida através da figura negra, ela é transfigurada pelo significado de um amor profundo e selvagem - condizente com a tradicional composição imaginativa quanto à forma étnica brasileira: como as "raízes" de uma planta forte. Claro, nota-se também que muito da graça literária de Mariana está na descrição de maneirismos dos gestos "ocultistas" daqueles sentimentos amorosos típicos das paixões juvenis: e isso é também ironia. Enfim uma escravidão prestes a terminar e um não-futuro pela frente às personagens escravizadas. Não têm espaço no "mundo" brasileiro para as negras dos três contos: a jovem não terá no futuro um lugar, a mãe verá seu filho abortado, e Mariana... morrerá pelas próprias mãos. Realmente não há vestígios de liberdade nesse estado de coisas. Não há anteparo social para o desenvolvimento do amor. Em 2022 faz quatro anos que a vereadora carioca, negra, Marielle Franco, foi assassinada e ainda não se encontra quem a mandou matar. Machado de Assis publicou os contos O CASO DA VARA, PAI CONTRA MÃE e MARIANA em diferentes datas e suportes - periódicos e livros - no Rio de Janeiro do Brasil entre os anos de 1871 e 1906. Foto da Estátua da cabeça de Luís Gama : Walter Antunes Agradecimentos a Walter Antunes, Léo Daniel da Conceição Silva, Soraima Moreira, Jeiciane Soares da Silva Bispo, Francivaldo Souza da Silva e a todos os participantes do Círculo Literário de CiberLeitura, projeto de extensão do curso de Letras da Universidade Estadual do Tocantins-Unitins, em especial aos que se reuniram para conversar sobre os contos "O caso da vara", "Pai contra mãe" e "Mariana", de Machado de Assis, no dia 12 de Março de 2022.
- Sobre o ultrapassamento da guerra
Depois de algum tempo sem se encontrarem Walker Dante e Roselena conversam, inevitavelmente, sobre a guerra... Walker Dante - Você tem certeza de que quer falar sobre guerra depois desse tempo todo sem conversarmos? Você sabe, nosso discurso estará se somando, engrossando esse caldo que ele mesmo gostaria que desaparecesse da face da terra. E outra coisa: a tentativa de comunicação de um assunto complicado nessa nossa época cibernética é sempre uma coisa estranha. É que agora confunde-se "comunicação" com o fato das pessoas terem telas, câmeras e microfones às suas frentes o tempo todo. Roselena - Sim, não é fácil sustentar a contemplação das imagens da guerra. Walker Dante - Não se trata de contemplar, a guerra simplesmente se interpõe frente aos nossos olhos. Roselena - Sim, e há ainda aqueles que, desesperados, nos cobram a contemplação sistemática de todas as guerras porque temos dado importância apenas a uma, e isso revela a superficialidade e a mesquinhez dos nosso próprios sentimentos profundos, e daquela nossa vulgaridade, aquela que nos distancia do ideal do homem universal. Walker Dante - Há essa moralidade calcada nos argumentos da legalidade iluminista, enfim a base do sistema civilizado que temos o dever de sustentar - pois que somos isso - própria da expressão dos espíritos cultos. Ocorre que discursos contendo apenas esse tipo de coisa enfraquecem rapidamente após surgirem porque exprimem um investimento de energia numa visão de mundo flagrantemente parcial, qual seja, a parcialidade da pretensão da inteligência intelectual destituída de corpo e de emoções. As opiniões sentimentais tendem a ser mais exatas. Roselena - E há ainda aquilo sobre o que Simone Weil alerta: "Odiamos as pessoas que gostariam de nos levar a formar relações que não queremos formar". E, olha, ela diz isso naquele texto "O anel de Giges", em que um pouco antes diz: "Um dono de fábrica. Tenho estas e aquelas satisfações dispendiosas e meus operários sofrem a miséria. Ele pode muito sinceramente ter piedade de seus operários e não formar a relação". Walker Dante - ... é, há tanta coisa. Roselena - O fascínio de grande parte das pessoas pela ostentação do máximo de enormidade de poderio bélico é um fato real que geralmente tenta-se enfrentar contrapondo um argumento sobre a ilusão que esse fascínio consiste. Trata-se de um fenômeno análogo ao fascínio do pássaro prestes a ser comido pela cobra que o "hipnotiza", paralisando-o. É uma fase da entrega que aparece como antecipação da entrega total, de modo que, de fora, tende-se a achar que "o pior pode ser evitado", ou que é possível um despertar da consciência do elemento que se encontra fascinado. Essa qualidade da alma, qual seja, a da suscetibilidade ao fascínio da força de morte está na base - junto com outros elementos - da estruturação do senhor da guerra, desse sujeito que toma para si a proposição da guerra. Essa tomada de posição libera a massa do gênero humano da responsabilidade sobre a guerra e o senhor é coroado, materializado, e realizado sobre essa energia. As metafísicas que versam, ao longo dos séculos, sobre o ilusionismo contido na ideia de existência do sujeito não serviram até agora para eliminar as possibilidades da guerra e de todos os fenômenos aparentemente irracionais que podem ser entrevistos de forma nítida pela abordagem platônica clássica expressa aqui nessa minha fala. Há sempre um senhor da guerra e outros senhores que jogam com ele essa rodada. Uma guerra é sempre interesse particular de um chefe. Abundarão peças estéticas sobre o soldado desmoralizado. Walker Dante - Essa ostentação tem a ver agora também com a intencional propagação dos movimentos fascistas, financiados pelos senhores da guerra. Além disso provavelmente a beleza desse fascínio, a beleza do guerreiro, seja o elemento necessário à viabilização da contemplação das imagens da guerra. Contempla-se a morte apenas através de seus disfarces a despeito, é claro, da proliferação cibernética de fotografias e vídeos reais sobre eventos outrora inimagináveis de serem representados com tanto despudoramento. Mas o profissional da guerra, o mandatário, o rico, o tirano… ninguém imagina realmente o quanto essas pessoas se acham superiores, possuidoras, controladoras de alguma macro-situação, ninguém imagina o grau de certeza que sustenta essas personalidades. São pessoas sem "fragilidades". Ah, como todos os fascistas do mundo se admiram reverencialmente, se espantam, se exaltam, se congratulam e explodem em contentamento ao contemplar os senhores da guerra! Obviamente isso acontece porque a identificação é impulsionada justamente pelo saber oculto de seu contrário: no fundo a pessoa comum sabe que é de uma espécie muito diferente dessa outra, dos poderosos. Roselena - Sim, diante dessa guerra da Rússia contra a Ucrânia podemos observar todos os matizes de combinação psíquica dos interativistas nas redes sociais cibernéticas em monótonas ou excitantes variações (dependendo do estado dos sujeitos). O comunista stanilista declarando amor e entusiasmo por Putin e os fascistas brasileiros, idem; o cristão religioso pedindo por oração ao povo ucraniano; os filósofos críticos irremediavelmente cínicos porque sempre burgueses, apontando o caráter de jogo de torcedores de arquibancada entre dois "times"; os intelectuais descrevendo a conjuntura das implicações da OTAN e dos EUA na promoção da guerra; os herméticos explicando que as partes antagônicas são estruturalmente associadas. E o fato ou o acontecimento está aí, se apresentando como um fenômeno em si, com a grandeza de tudo o que se torna autônomo, repousando em suas expectativas do sentido, as quais proliferam, se expandem e se consolidam: a guerra como essa breve flor da civilização, com seus frutos rápidos, vindos em seguida aos primeiros choques. Walker Dante - Vou pegar o seu gancho sobre as flores e frutos. A minha moralidade, você sabe, sempre desconfia do porto da legalidade. Apenas porque sou cristão digo sem medo de errar que as pessoas que apoiam uma guerra, mesmo que com seus pequenos discursos de papagaio de rua, são imorais. A dimensão intrínseca do discurso é só mais uma arma entre as outras, na guerra. Encontrar no discurso uma justificativa para a guerra, essa é uma das faces da despudorada imoralidade que, a serviço da guerra, funciona de maneira peculiar: como arma difusa e disfarçada, subitamente o discurso se mostra deslocado de sua funcionalidade tática, confinando-se a si próprio como fenômeno exclusivo da "área do discurso", uma espécie de área neutra, imaterial, fazendo-se com isso incidir mais profundamente os sentidos da guerra nessa estrutura motivacional do "fascínio" pela guerra. Em suma, nada na guerra é honesto. Esses dias encontrei um papagaio fascista empunhando a Torá, defendendo o direito russo à guerra, dizendo que o Cristo veio bagunçar tudo para fomentar a discórdia no mundo. Escandalizei. Roselena - É isso, todas as combinações entre cacos e estilhaços são possíveis. Artistas trabalhando com materiais não-artísticos já mostraram isso (artistas ativistas do meio-ambiente fazem obras com a lama da barragem rompida, com óleo vazado nos oceanos ou então compõem retratos com caviar, lembra do Vik Muniz?). Nesse sentido é interessante perceber como a guerra se furta a ser apreendida como algo banal. Uma posição, uma opinião é exigida, de forma que não levá-la a sério é ser ingênuo. De fato a inerente impotência das pessoas as fazem refluir para a condição íntima e mágica de seus pensamentos - na verdade imaginações - sobre a guerra, num livramento de consciência típico de animais conformados com a vida na antessala do abatedouro. A política brasileira quanto à guerra segue um estilo, arrisco dizer, próximo ao estilo africano, moçambicano, angolano, etc.; simplesmente resigna-se à guerra; gente abunda, é como "mosca", não se tem outra solução. Desculpe a digressão. É que as pessoas não parecem carregar marcas corporais que as identifiquem como agentes da guerra, no sentido de associarem a sua corporalidade material em toda a dimensão existencial possível, à causa da guerra. Parecem participar, na maioria das vezes, apenas como pobres seres que inflamam seus corações e mentes na fruição das imagens do poder, assim se irmanam com os que estão realmente levando as bombas na cabeça, tendo tudo à volta inteiramente devastado. Como o pobre povo desobedecerá grandes generais? A autoridade se impõe flamejante e estrondosa em seus brilhos cruéis. Walker Dante - A velha guerra em novos tempos. Pense que hoje em dia todos os jovens do mundo brincam jogos de computador globalizados ansiando por estrearem de verdade na "arte" da guerra. Roselena - Desesperador. Geralmente a palavra jogo tende a reduzir indevidamente e perigosamente o sentido da guerra. Por exemplo: aquele que é acostumado a jogar futebol comparar-se-lhe-á com o futebol; aquele acostumado aos jogos corporativos de fases tende a vê-la dessa forma, vão "administrando" um modo de existir; os iluministas legalistas apontam suas origens históricas; o Sun Tzu oferece um mapa popular básico; tem gente que refere-se ainda a um jogo famoso de tabuleiro, pré-computador, com esse nome, "guerra", em inglês e claro. Walker Dante - Isso me fez lembrar do pensamento de Wittgenstein e da ideia de "família" nos jogos de linguagem. De entre todos esses sistemas de regras, de todas essas famílias de jogos de linguagem, depreende-se que a guerra, ao contrário do que parece, gaba-se de ser uma expressão da razão em sua expressão prática; uma guerra nunca almeja esboroar o extremo, mas sim ocupar o máximo de espaço dentro de limites. Os antropólogos explicam os fundamentos da guerra como fenômeno intrínseco à forma da espécie, e nossa espécie é racional: é a espécie da linguagem. Claro que a guerra parece ser, e é, inerentemente um ultrapassamento de limites sob o ponto de vista de quem é atacado. É nesse sentido que a guerra é realmente perigosa. É sim, possível, o lançamento das bombas atômicas porque os comandantes da guerra, dentro de seus limites racionais, perceberão que é vantajoso jogar a bomba dentro do contexto de um momento tático do seu jogo. Roselena - E é nessa perspectiva redutora de "jogo", que a guerra apresenta-se sempre de forma a dar a perceber seus princípios como coisas simples e esquemáticas. Todos sabem que se trata de uma guerra quando há uma guerra. E o que poderia ser o simples senão uma compreensão baseada na exemplificação dos próprios sentimentos íntimos e atitudes pessoais que simbolizam a guerra a todo instante? A guerra é o resultado do egoísmo, com seus dinheiros, poderios sobre gentes, privilégio com relação ao controle das mortes, sua peculiar estética e disputas sobre essas coisas. Nada muito mais que isso. Nesse sentido a guerra não é bem um jogo de linguagem, mas sim um jogo conducente à ideia de fim da linguagem. O fim do mundo há muito é propriedade dos estados e das pessoas mais fortes e ricas do planeta. E se as guerras, como metáforas, normalmente se apresentam como guerras rituais e virtuais, servindo a algum propósito neurótico, de entretenimento ou de mecânica da banalidade cultural, isso apenas mostra que elas são reais. Assim, a atualização ocorre, infalivelmente, como com tudo o que é real. Ela ocorre como um direito. Porém, como com todo o poder, dinheiros, mandonices e egoísmos, é atualidade para poucos, à medida que seus senhores se esforçam por distribuí-la para o máximo de pessoas. Seus confins são o seu discurso e suas disseminações são ecoantes. O povo pobre brasileiro, por exemplo, vai sofrer ainda mais com a inflação, desemprego, etc. por causa da guerra na Europa. Walter Dante - É verdade, o povo já familiarizado... acho que não existe nenhum brasileiro que não seja vítima de extorsão de alguma "máfia" poderosa, seja em que nível for, família, serviço público, um bandido na rua, ou a milícia do bairro. Há valentões por todos os lados. Estamos cercados de guerra. Quem não faz guerra? Ai, essa palavra guerra, tão profusamente utilizada como metáfora de eficiência e força em tantos níveis cotidianos e existenciais ao longo das eras. Ah, o valor que tem o poder criativo da guerra que, num período bem menor de tempo, pela destruição, cria muitas mudanças em comparação com os longos períodos de construção, necessários em tempos de paz (tempos calmos e alegres). A guerra cria fome, desespero, uma variedade grande de formas de sofrimento físico, emocional, mental e social. A guerra muda tudo. Todos os adolescentes amam simular o poder de matar em seus jogos planetários pelo computador. Isso é coisa mais que sabida, batida, debatida. Trata-se da guerra como horizonte do possível, como depreendemos da tese da guerra pura do Virilio: a própria civilização, com suas cidades, é feita de acampamentos permanentes de guerra, com seus senhores permanentemente guerreando, seja de forma semi-oculta ou ostensivamente às massas. E parece que do ponto de vista dos senhores da guerra muitas vezes a sua eclosão ostensiva pode ser explicada de maneira simples e crua como uma boa ideia para se gastar o "excedente humano" das estruturas capitalistas. Essa é a natureza horrorosa do fascismo, a ideia de que a morte, sobretudo de vidas individuais da mesma espécie, seja uma espécie de higiene. Obviamente que as outras formas de vida não são consideradas propriamente como "vivas". São coisas inertes, portanto não se atribui poder de culpa a elas. Assim o fascismo sustenta o racismo porque, pelo racismo, pode-se alinhar seres humanos "ao que não é humano", portanto ao que já está morto. A guerra pura assenta-se na visão do morto como tesouro. Roselena - Então... mas a despeito de toda a sua estética da morte a guerra é também associada à riqueza porque ao firmar-se, apresenta-se acompanhada de discurso, o que a legitima fenomenologicamente. À inerente positividade do fenômeno (qualquer um, posto que é sempre existente) é justamente o que estamos acostumados associar a ideia de vida. Mas a vida é, fundamentalmente, "riqueza" (multiplicidade de elementos dispostos à ordenação cósmica). Nesse sentido é rompida, com a guerra, a percepção da harmonia característica da positividade existencial e, em seu lugar, instala-se a falta, o sofrimento, a ferida, o buraco, a morte, enfim, o brusco atentado direto contra a vida que é, não obstante, construído discursivamente como uma positividade. Essa força "contra a vida", o que será? Por aí se vão múltiplas metafísicas a gastarem as energias do presente em fumaças. Porém uma visão de mundo sempre é possível. Alguns dizem que ele está acabando, outros começando, e tem alguns que dizem que o mundo está no meio de sua jornada existencial. Nesse ínterim, a distância com relação a "ver o mundo" engendra um tipo particular de paisagem: a do deserto. Tem sido essa a imagem preferida de muitos. Walter Dante - Pois é... temos de levar a guerra a sério ou fazer picadinho dela, pois depois de deflagrada, nada mais é inteiro: não é à toa que no plano do discurso as palavras contrárias são utilizadas para mascarar sua realidade material: exércitos são denominados forças de paz; uma conquista é defendida como necessária para a reunião da inteireza perdida; um argumento revela que a guerra constitui-se de uma reação a uma provocação feita de quebra de regras do jogo que vinha sendo jogado; os noticiários nomeiam as pessoas massacradas de "cidadãos", etc. Ou seja, a mais rasa "novilíngua" invade o campo das expressões que se propagandeiam. O discurso da guerra é esquemático ao máximo e não deve ocupar demasiado espaço porque o número de jogadores desse específico e perigoso jogo é reduzido, e isso é o seu valor. Poucas e precisas palavras e muitas bombas e exércitos é a condição ideal dos grandes senhores da guerra. Roselena - ... então se é linguagem ou o fim da linguagem... a guerra é uma linguagem tão completa que, por fim, se derrotados, não temos mais o que falar, ou não queremos, e aí sentimos que precisamos ficar tristes e mudos e se, sem alternativa, vemo-nos em meio a ela, percebemos horrivelmente que a guerra se faz, não se conversa.
- Macaco Não É Valente
Jackson do Pandeiro tem a metade da idade da Independência do Brasil, nasceu no 31 de Agosto. Quase da idade da República, esse Jackson. Cantou por todas as partes do Brasil, falou com sua música diretamente aos brasileiros, claro, com a astúcia de quem conhece as terras em que está pisando. Jackson sabe o lugar certo das coisas e que o momento um dia chega. Macaco não é valente Dança aí 17 na corrente Uma viagem que fiz pelo Amazonas Num arvoredo eu parei pra descansar Me jogaram uma pedra no lugar Eu olhei, não vi nada ali perto Com distância de 10 ou 12 metros Um guariba surgiu na minha frente Com coragem enfrentei o descontente Venci na luta e a ele eduquei Minha ordem pra ele é uma lei Dança aí 17 na corrente Macaco não é valente Dança aí 17 na corrente Tendo eu dominado este vivente Hoje ele vive amarrado pelo meio Eu trabalho com ele e não receio Dança aí 17 na corrente Macaco não é valente Dança aí 17 na corrente Ele hoje é bastante educado Fuma, toca e sabe até dançar Já faz pose e tem ginga no andar E conversa comigo por aceno Faz careta e fica se mordendo Se uma loura passar e não falar Ele diz que o dia é de azar E reclama por não estar decente Já não briga e respeita toda gente Dança aí 17 na corrente Macaco não é valente Dança aí 17 na corrente link para ver e ouvir o 17 na Corrente: Jackson do Pandeiro - 17 na Corrente
- A potência das metamorfoses na prosa inventiva de Luiz Roberto Peel em “Zoodíaco Tocantino”
O livro de Luiz Roberto Peel Furtado Oliveira, “Zoodíaco Tocantino: a epopeia ensaística de um povo inventivo”, diz que há dez signos zoodiacais pelo ponto de vista tocantino. Começando do zero, e indo até o nove, esse zoodíaco completa dez figuras em analogia assimétrica, inventada, às doze partes da “zona circular da esfera celeste” em que se estrutura o círculo de animais do zoodíaco grego, base dos signos astrológicos mais comuns, esses herméticos e populares oráculos, a partir dos quais traça-se os horóscopos, as marcas da ligação entre homens e estrelas, sinais do destino. A leitura dos signos zoodiacais geralmente pretende a compreensão do liame das distâncias e, no espaço que se faz entre elas, das formas infinitas dos desenhos das trajetórias, linhas e caminhos possíveis. “Dez cartografias formavam o caráter, a personalidade e o comportamento de todas as gentes tocantinas. E esse número, dez, poderia ser multiplicado sempre” (p.106). Inspirando-se nesse método muito mágico, geométrico, poético e astrológico, Peel inventou nesse livro uma maneira de revelar o Tocantins, essa terra feita de distâncias, que para ser decifrada é preciso encontrar caminhos entre seus sinais. A natureza solar e ao mesmo tempo obscura dos signos da esfera tocantina faz com que eles apareçam às vezes nítidos e às vezes portadores de estranhas metamorfoses. Assim é que se discernem os exóticos signos das “baleias com chifres que aspergiam leite santo” e o dos “labigós-mutantes”, mas também signos de sólidos “pássaros” e nítidas “onças”. Luiz Roberto Peel escreve de uma forma muito livre, intercalando em sua prosa, reflexões, pensamentos filosóficos e histórias inventadas ou lembradas, muitas vezes utilizando palavras ou expressões novas que parecem ter sido especialmente criadas para esse livro. Do ponto de vista da linguagem, essa liberdade aparece como potência de metamorfose entre os gêneros textuais tão díspares enunciados no título, a saber, “epopeia” e “ensaio”, quanto às variações do estilo da prosa ao longo das páginas. A ideia de metamorfose também pode ser compreendida no nível da simbiose entre imagem pictórica e palavra que se apresenta no plano da composição do texto repleto de desenhos elaborados pelo autor, os quais, para além da tradicional ideia de ilustração, funcionam como escrita. Do ponto de vista da atmosfera do conteúdo global do livro, Peel capta com perfeição o signo geral do Tocantins, o qual se define justamente pela potencialidade das metamorfoses entre quaisquer signos particulares que se apresentem ao decifrador dessa terra, a qual se mostra, de ordinário, como velha e nova ao mesmo tempo, em que convergem ignorâncias e sabedorias, invenções e protocolos, dando a impressão de que aqui se sobrepõem temporalidades diversas numa mesma e única época. O livro propõe a cartografia desse lugar, em que a identidade de um povo está por ser construída a partir de elementos de diversidade representados pela conciliação de contrários ou até mesmo de paradoxos entre costumes ancestrais de valor à vida, à criatividade e à natureza, e a introdução dos valores da modernidade tecnológica predatória. Esse signo geral aparece representado pela potência das metamorfoses das dez figuras elencadas a saber: baleias, tamanduás, onças, pássaros, árvores, peixes, gatos, labigós-mutantes, labigós-tecelãs e arraias. O narrador-oraculista começa lendo os signos pelo avesso, método que permite o deciframento de mistérios sem violá-los. A baleia, por exemplo, enorme como o próprio Tocantins – um signo à primeira vista de aparência nítida -, aparece desde a primeira vez enunciada como praticamente invisível exatamente por conta de sua magnitude, tal como a grandeza oculta da origem de todas as constelações. Nesse zoodíaco tocantino a baleia descreve uma estranha aparência de destino de leveza, quem sabe por surgir aqui, tão longe do mar: “As baleias são virtualmente diagramáticas, distanciando-se de qualquer ser ou de qualquer representação material de ser, sendo visíveis somente de certa distância. Quando o vidente se aproxima demais, elas desaparecem em seus voos” (p.20). Para visualizarmos melhor essa baleia, Peel nos entrega um desenho, em meio às palavras, em que mostra o momento em que esse animal aquático, porém mamífero, ele mesmo na forma de uma gota, inicia uma trajetória em que, aspergindo seu leite, metamorfoseia mimeticamente a via láctea tradicional, nesse zoodíaco renovado pelas formas tocantinas. Assim é possível vislumbrar como todos os começos se dão pela conciliação dos contrários, iniciando com o zero, a esfera, o círculo, o ventre, o caos, passando, sempre através do amor (início dos inícios ocultos), a todas as formas, às pessoas e suas criações. Então, em brusca metamorfose, a imagem transforma-se numa cena difusa mostrando um velho entre crianças, talvez o quadro de uma representação da potência das metamorfoses a partir das relações entre linguagens, sabedorias, mapas, geografias ou astrologias: “E, de gesto em gesto, desenhando quando não conseguia se fazer entender, o velho saruel se tornou o mestre também daquelas duas crianças, fundadoras de muita coisa da região tocantina”. Trata-se aqui da invenção de um começo-baleia, de muitas possibilidades e caminhos e nenhuma receita, sob uns modos de Anaxágoras de Clazômenas, um filósofo que, dizem, gostava da companhia das crianças e ajudou inclusive a criar suas festas de aniversário. Parece que Anaxágoras foi além das metamorfoses externas de Heráclito, propondo a troca dinâmica da transformação do subjetivo em objetivo e novamente em subjetivo, numa visão de mundo análoga à de um grande teatro cósmico. O velho mestre do livro de Peel vai então pontuando aos alunos, frente aos signos e suas metamorfoses, alguns elementos-chaves para a elaboração da leitura do oráculo zoodiacal. Ele pretende apontar para as possibilidades infinitas da relação entre as formas, expor ideias de construção de ligações e apresentar visões sobre seus contextos, enfatizando a unicidade do ponto de vista de cada um, porque só assim é possível decifrar um oráculo e só assim é que um zoodíaco faz sentido: levando em consideração todos os seus sinais. Nesse ponto as crianças aprendem que todas as formas são espécies de linguagem e a metamorfose se faz entre as artes de seus códigos e sintaxes: “E as vírgulas são importantes para marcar a seriedade do fenômeno, sua pontualidade virgular – já que virgular é necessário para casos deste tipo (casos terrivelmente catatônicos). Se, por acaso, vivê-la, cante e dance, sendo mimeticamente musical; pois os tons sonoros impedirão que os tons visuais se percam no anonimato da descolorização imediata. A música, com seus passeios pelo caos, pela movimentação infinita de partículas sonoras, pode impedir o sumiço de cores (Saiba sempre disso! Não esqueça! Guarde em seu coração!)” (p. 34). Aqui está, bem ensinada, a potencialidade das metamorfoses como função de beleza, invenção e propriedade da linguagem, essa que traça o ritmo entre quietude e movimento, que expõe a homologia entre som e cor modulando o destino das emoções e dos comportamentos. O segundo signo está ali, o signo da alegria, desenhado como uma bandeira com o coração ao centro, um tamanduá, ornado, parece, de sinais métricos tais como notas musicais ou teclados de piano, talvez sejam formigas em suas franjas… os caminhos de suas formas incluem todos os elementos primordiais e energéticos na compleição de seu mapa, que reflete histórias inventadas e histórias recordadas, tal como uma lenda indígena, sobre a origem de alimentos, de festas e do fogo. As marcas métricas que aparecem nesse tamanduá, tais como os sinais da música, e os corações como preenchimentos de centralidades geometricamente definidas, se repetem como elementos básicos da composição de todas as formas do zoodíaco tocantino. O terceiro signo, da onça, da vaidade, da duplicidade, talvez dubiedade, aparece desenhado em várias posições. Numa delas, nota-se, a metamorfose se aproxima de um olho e de uma borboleta ao mesmo tempo (p. 41). Aqui destaca-se a história de uma onça rebelde, uma onça filosófica que, a despeito de ser abordada pelo narrador como uma personagem construída aos modos do perspectivismo indígena – o qual é, na verdade, mimetizado no livro como um todo -, “adorava foucault e deleuze (e guattari); era apaixonada por nietzsche e por espinosa; leibniz era uma outra paixão” (p.43). Ao leitor então, cabe fazer as associações das qualidades psíquicas enunciadas, com as formas da onça que, embora rebelde e filosófica, continua mesmo a ser onça. O quarto signo, dos pássaros, combina o sentido sonoro da palavra “trino”, atributo natural do animal pássaro, com a evocação ao número três (que posiciona a ordem do signo entre os outros se considerarmos as baleias como signo zero), além de reger os atributos psíquicos dos nascidos sobre esse signo “do ar”, os quais se definem como portadores, tais como anjos, da ideia sagrada de trindade e, por conseguinte, também da natureza da palavra como elemento de função comunicativa, de mensageira entre os seres: “Ser pássaro tem muitos sentidos, dos quais o maior é aquele que aproxima cada ser que voa de cada palavra que também voa, já que os pássaros passam, mas as palavras que voam ficam” (p.51). O quinto signo, das árvores, ou boés, é o signo da fraternidade e do abraço, a origem do próprio Tocantins. Nesse capítulo aparecem palavras novas, tais como “chalimis” e “boés”, designando seres ancestrais e também certa melancolia por conta da ininteligente extinção generalizada do mundo vegetal e suas florestas, o qual configura o próprio fundamento da existência dessa região: “as gentes de hoje em dia não percebem o outro, nem na natureza nem na cultura, o que as impossibilita de ouvirem as canções ou as danças de chalimis, de boés e de outros seres numinosos, já que a audição é um dos sentidos mágicos em sua excelência espiritual” (p.60). O sexto signo, dos peixes, é o do amor e, portanto, da multiplicação. Traz associações antigas, que se relacionam a outros signos sagrados conhecidos através de contextos simbólicos diversos. Mas aqui se destaca a ligação desse signo com a noção de beleza contida nas ideias da matemática e da arte, ou seja, do mundo da exatidão combinado ao mundo da liberdade: “Peixes e pássaros, danças e músicas, gestos e sons, uniram-se assim pela e para a arte – por e para agenciamentos; por e para experimentações; e por e para devires” (p.69). O sétimo signo, dos gatos ou “pingos” (pois os gatos possuem pingos específicos pintados em sua pelagem), é o da criatividade, que aqui aparece associada aos afetos e à magia, tão propícios à simbologia do número sete: “Os seres tocantinos viviam assim o bem e o belo, almejando, graças aos pingos criativos derramados sobre eles, a vontade da potência e a imanência inventiva – tão valorizadas naquelas terras, águas e céus” (p.76). O oitavo signo é designado por um animal inventado, o “labigó-mutante”, o signo do professor, do narrador evocado pela Penélope oculta mencionada através do enigmático animal de mesmo tipo da mítica personagem homérica, a “labigó-tecelã”. A perspectiva do narrador-professor, que aqui discorre sobre a natureza de seu próprio signo de forma realista, é caracterizada por ele mesmo como algo emocionante e de grande responsabilidade, não obstante desvalorizado pela sociedade: “A labigó-mutante pode, então, rastejar, voar, nadar, correr, dançar e pensar; por isso tudo é que pode ensinar, alcançando aprendizagens variadas e múltiplas e profícuas e sabe se lá mais o quê”. No nono signo é que aparece a “labigó-tecelã”, especificando o signo do narrador em sua essência mítica e própria: “as labigós-tecelãs eram nos primórdios tocantinos as professoras de todas as gentes, de todos os animais e de todos os númens; compondo, ao lado das labigós-mutantes, o quadro docente de todas as escolas: sendo que cabia às tecelãs a transdisciplinaridade; e, às mutantes, toda a transdução alagmática” (p.88). Esse é o capítulo de tom mais grave do livro, em que vida e morte aparecem como lições dos dois tipos de labigós mencionados, representando a transformação da existência espontânea e viva dos mitos, à passagem à letra morta que, não obstante, se quer viva através da atividade pedagógica. O décimo signo, o das arraias, é o signo do juízo, mas de um juízo como função e não necessariamente realizado como tal. Nesse sentido, representam um juízo possível dentro do contexto da potencialidade das metamorfoses: “As arraias são como juízes, podendo decidir destinos; mas... só o fazem com a ajuda de labigós e de pingos. Tinham, naquelas épocas, um grande dom – viam o que não existia; viam baratas, onde não as havia; viam soluções, onde não as havia; viam por manchas, onde não havia nada. Tinham essa capacidade rara. Eram justas por isso? Ninguém o sabia ao certo (p. 98)!” E é assim que esse zoodíaco de Peel propõe o desdobramento das combinações de seus signos em infinitas metamorfoses, de velhos em crianças, de prosa em poesia, de ensino em aprendizagem, de desenho em escrita, de invenção em filosofia, de arte em mapas de sabedoria, tudo isso compreendido na empreitada da descoberta e revelação dessa terra metamorfoseante, nomeada Tocantins. Ilustração: desenho de Luiz Roberto Peel “Zoodíaco Tocantino: a epopeia ensaística de um povo inventivo” de Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira foi publicado no ano de 2020 e pode ser acessado através do link: https://www.ideiaeditora.com.br/produto/zoodiaco-tocantino-a-epopeia-ensaistica-de-um-povo-inventivo/
- Instituto Raoni
www.institutoraoni.org.br
- Fotografia e performance nas redes
Fotografia como performance entre processos de autoconhecimento, comunicação e arte em tempos de cibercultura. Foi a partir desses elementos que Alessandra da Mata compôs os autorretratos da série ‘Recorte 365’, uma série de imagens de base fotográfica que foram produzidas com o objetivo de expressar a pluralidade do “eu anônimo” da artista refletido no espelho de tipos universais e personagens famosas ao longo de um ano. Alessandra diz que “de 20 de agosto de 2011 a 20 de agosto de 2012 foram produzidas 365 imagens. Uma por dia, religiosamente”, veio daí o nome do projeto. “Esse processo de recriar aquilo que já foi criado, é muito antigo. Muita gente já fez. Eu não sei se alguém foi capaz de fazer isso por um ano, diariamente, como eu, mas já era uma prática comum. Eu não inventei isso. No entanto, essas imagens foram compostas num período em que as pessoas ainda nem falavam de selfie, embora o autorretrato com a fotografia tenha nascido com Man Ray lá nos anos 1920. Mas a selfie, do jeito que está configurada hoje, veio depois”. Na época em que foram produzidas, as imagens foram publicadas no perfil de Facebook de Alessandra da Mata, mas agora voltam a ser apresentadas no Instagram da artista num novo contexto: “com a chegada da pandemia do coronavírus e o fechamento dos museus e dos espaços culturais, diversos canais de arte como o Arte 1 e o Tussen Kunst e Quarantaine lançaram desafios aos seguidores como ações de incentivo à apreciação da arte. Esses desafios propõem a recriação de obras de arte pelo público. O negócio tomou uma dimensão gigante e muitas pessoas começaram a me mandar os links desses desafios fazendo alusão ao meu projeto. Então, por causa desses pedidos das pessoas, comecei a republicar as imagens na plataforma Instagram, que não existia na época em que eu as produzi”. A motivação para a produção das imagens está ligada a um caminho de autoconhecimento. Alessandra revela que o trabalho fez parte de uma espécie de processo de elaboração da sua autoestima num momento de fragilidade. “Foi um período da minha vida em que não estava feliz com as escolhas que tinha feito para mim. Sem muitas perspectivas, no mês de agosto de 2011, quando fiz aniversário, decidi que ia começar a fazer um anuário fotográfico. Eu trabalho com edição de imagens, então a fotografia já fazia parte do meu dia a dia. Na época tinha comprado uma máquina semiprofissional D40 da Nikon. A ideia era fazer experimentos fotográficos e ver se eu levava jeito”. Do ponto de vista técnico, Alessandra brinca dizendo que esta série é uma “superprodução paupérrima”, pois fez tudo com poucos recursos financeiros e ajuda de amigos. A fotografia é a base, porém muitos outros elementos foram necessários à produção, desde a pesquisa sobre as obras de arte referenciadas, elaboração de figurinos, acessórios e cenários, até as técnicas de colagem como etapa de finalização digital das imagens. “Eu não tinha recurso nenhum. Tinha apenas um conhecimento básico sobre fotografia. Fui aprendendo fazendo. As fantasias, eu fazia com papel color set, com retalhos de tecidos, perucas de papel crepom, então imagina o quanto de manualidades você exercita num lance desses. No começo eu não tinha tripé, então para achar altura colocava a câmera numa escadinha de livros, pendurava na escada, e muitas vezes fazia segurando a câmera ao contrário. Era difícil achar o ângulo, era muito louco, fui pegando o jeito, achando meu melhor perfil. E tinha que fazer tudo em pouquíssimo tempo. No decorrer dos meses fui ganhando acessórios dos amigos, e no meio do projeto ganhei também um tripé, inicialmente emprestado, posteriormente doado. Fez toda a diferença. Fui também aprendendo a fazer colagem digital. Tanto que é visível uma evolução estética nesse sentido. Quando comecei a usar as colagens, foi bem legal, porque eu usava o fundo da imagem original e me colava no lugar da personagem principal. Porém uma regra que me impus no processo foi de não contar com a ajuda de outras pessoas na etapa do fazer. Eram autorretratos, então eu precisava fazer tudo absolutamente sozinha”. A forma de produzir as imagens desse projeto, escolhida por Alessandra da Mata, tem uma ligação fundamental com a modelagem de formas esculturais e artes manuais, áreas em que a artista tem bastante experiência. “Eu me considero uma pessoa artesanal. Obviamente compor uma personagem tem a ver com moldar-se a si para representar o outro. Sempre fui uma pessoa das artes primárias. Gosto de trabalhar com modelagem, costura, aplicações, tricô, bordados, desenho e pintura. A fotografia acrescenta um contato com o olhar artístico e artesanal que tenho sobre as coisas. Existe um preconceito com isso que se chama de artesanato, que o classifica como uma arte menor. Eu não considero assim, porque muito do artesanato vem de sabedorias milenares”. As personagens “modeladas” por Alessandra evoluíram de uma ideia inicial mais universal, de representação de tipos, para se transformarem na recriação de imagens específicas, localizadas ao longo da História da Arte. “Inicialmente comecei fazendo fotos de alguns estereótipos de profissões, o padeiro, a professora, a empregadinha gostosa do programa de humor, a enfermeira, a camponesa, aqueles estereótipos que víamos em filmes, capas de disco, ilustrações de revistas. Era meio que um exercício de interpretação também. Daí então, vieram as releituras. Li uma matéria sobre a Cindy Sherman, que ficou famosa por seus autorretratos conceituais na década de 70. À época Sherman levantou questões importantes sobre o papel da mulher na sociedade, e isso me intrigou. Era o que eu queria fazer, tocar num ponto dessa coisa, dos padrões. O único compromisso que tinha era comigo mesma, era de me ver diferente, de perceber minhas capacidades, de descobrir meus talentos, de me amar. Porque não poderia ser feliz gordinha como estava?! Agreguei esse conceito às releituras. Inicialmente eu escolhia artistas pop, eu admirava, e fui fazendo uma seleção dos ilustradores, artistas gráficos e das obras de arte que me impressionavam”. O contexto atual da cibercultura e o predomínio das redes sociais virtuais nas relações pessoais e na comunicação é outra faceta indissociável da produção desse trabalho. Para Alessandra da Mata a conexão do projeto com as redes sociais foi além da questão da divulgação, determinando o aspecto estruturante do ritmo de produção. “Como eu publicava uma foto por dia, com o passar do tempo as pessoas que me seguiam começaram a me cobrar, ‘cadê a foto do dia?’ Então o compromisso que inicialmente era só comigo mesma passou a ser com o outro. Era um grupo pequeno de pessoas, mas tinha quem esperava a minha produção. Isso foi engraçado. As redes sociais são portais livres para um novo tipo de comunicação. Elas estão aí para facilitar uma série de processos, mas também podem ser usadas de forma muito negativa. Você precisa estar ciente do que deseja fazer. Eu não fiz o trabalho por conta das redes, fiz para mim, mas foi ali que eu aparecia todos os dias para o olhar do outro. Talvez o fizesse mesmo sem as redes, mas obviamente não teria público, seria uma coisa mais pessoal mesmo”. Alessandra da Mata tem 46 anos, é jornalista, mora em São Paulo, e diz que “há quem diga que sou artista, há quem diga que sou performer, mas sou apenas uma curiosa dos experimentos”. Atualmente se dedica a projetos têxteis com bordados e pretende usar algumas das fotos desse projeto em seus bordados. O Instagram de Alessandra da Mata é: instagram.com/alegoriadamata/ #alessandradamata #KATAWIXI #katawixi #fotografia #luamasocio
- Quatro modos humanos de ser animal
Um dos modos mais comuns, infelizmente, de ser animal, é o modo fascista. Esse tipo está presente exemplarmente nos contos de Bichos, livro que Miguel Torga escreveu e lançou em 1940 fazendo uma espécie de descrição fenomenológica do fascismo em Portugal pela perspectiva da observação das características psicológicas do seu povo. Nos contos de Torga, a questão do animal como metáfora salienta a ironia de se tomar como “natureza” indelével um nítido princípio de perversão para a prefiguração do social, qual seja, a naturalidade da opressão, a "natureza" do subalterno compondo com a força do sistema ou dos dominadores. Trata-se de um livro divertido, agradável, e totalmente pertinente de ser lido nesse momento. Os Bichos escolhidos por Torga para caracterizar o povo português são na maioria os animais domésticos, escolha que ressalta o papel fundamental da família como unidade econômica e sustentáculo moral do autoritarismo patriarcal fascista. Obviamente acompanhando esse quesito, não faltam também os outros elementos discursivos de sustentação do fascismo ao longo dos contos, quais sejam, religião, violência, patriotismo, repressão sexual, tortura, assassinato. Aqui estão o cão, o gato, o galo, o jumento e, com eles, a subserviência, a preguiça, o egoísmo, o orgulho. Cada animal representando qualidades e defeitos psicológicos que fazem do animal-humano um humano, embora animal. E claro, o ponto central dessa psicologia é a questão da irracionalidade no núcleo dos comportamentos, colorida de modo mais ou menos uniforme pelo fundo da “essência” de todo e qualquer animal a saber: o medo. Assim esses bichos aparecem, cada qual à sua maneira, nas situações dos contos, em posição de defesa, porém como são humanos, essa “defesa” é construída como obediência aos ditames sociais de suas funções. Nesse ponto Bichos dialoga com uma obra talvez bem mais conhecida, A Revolução dos Bichos, de George Orwell, uma possível continuação do livro de Torga caso os bichos resolvam fazer uma revolução. Nesse caso esses animais se caracterizam pela incrível capacidade de serem facilmente enganados pela perspectiva de uma revolução que, ao fim, se transforma exatamente no contrário de suas metas iniciais, ou seja, naquilo que fôra o próprio motivo da revolução. No mundo animal obviamente o poder é material, é força, é poder sobre a vida. Força que se faz necessariamente pelo direcionamento das energias físicas pelos mandatários, pela opressão objetivando servidão. Servidão de animais à vida de outras espécies animais, as mais fortes, as que possuem maior força bruta, física. Destaca-se nesse aspecto do livro de Orwell a questão importante do racismo vinculada ao fascismo, no sentido de serem descritas qualidades raciais consideradas determinantes no comportamento social. A vinculação moral da aparência da raça ao determinismo da sociedade de classes é um dos elementos emocionais mais poderosos do texto. Esse dispositivo também causa impacto em Bichos de Miguel Torga. Sob esse ângulo é possível concluir, com as duas obras que, como a raça é imutável, como a forma animal está acabada - e o caso poderia ser diferente com o ser humano -, não há muita esperança de modificação nas estruturas políticas e sociais denunciadas nas duas obras. Piorando as perspectivas humanistas, em a Revolução dos Bichos a figura do homem, em contraste com a do animal, coincide privilegiadamente com a característica da abstração da inteligência animal para a arquitetura da exploração capitalista. No homem essa abstração, que equivale à própria exploração, está aperfeiçoada. Portanto o homem é sempre animal e nada além disso. Essa é a obviedade dos textos. Esse é o incômodo: o da racialidade. Os animais, os quais distinguem-se por suas raças, podem ser bem aproveitados pela economia exploratória. Veja o cavalo com sua força, as vacas com seus leites e as galinhas com seus ovos. As predisposições, os comportamentos, são traços biológicos. E as emoções são expressões das linhas animais. No capitalismo industrial fascista há ordem, cada coisa está no seu lugar de forma “natural”. Claro, há as personagens extremas nos dois livros, aquelas que aparentemente não se encaixam na ordem. Mas essas são tão estáticas quanto as outras em sua racialidade definidora. O papel dessas personagens na sociedade, embora não produtivo, é previsível e tem o seu lugar de encaixe no sistema dominante. Em George Orwell os extremos selvagens são os ratos e os coelhos e o extremo doméstico é a égua, existindo ainda os vagabundos, como o gato por exemplo. Em Bichos, de Miguel Torga, as poucas personagens humanas centrais cumprem uma das caracterizações extremas, ou seja, da marginalidade: a prostituta parindo um filho morto, o amor crístico perdido em meio ao autoritarismo e medo, há um pastor assassino e também um aristocrata frustrado e depressivo. No mais, outros extremos são o sapo, a cigarra e o melro, os quais não possuem utilidade diretamente exploratória pelo sistema capitalista. Obviamente há grandes diferenças estilísticas entre esses dois escritores contemporâneos. Em George Orwell as personagens têm uma consistência mais esquemática, até alegórica. Em Miguel Torga as personagens são seres psicológicos, trata-se da “raça” psicologizada. Se em Torga, não obstante, há uma denúncia da desesperança, parece que a leitura de Bichos indica a existência fresca de um espírito de revolta, na verdade encabeçado pelo tom de voz do próprio autor. Já em Orwell essa revolta já foi desvendada e desencantada. Há um terceiro modo humano de ser animal. Para quem não quer saber de política em nível social mas quer rir das ininteligências ou inteligências do animal humano é possível se divertir à beça com A Ovelha Negra e Outras Fábulas do hondurenho Augusto Monterroso em que, apesar do estilo leve e aparentemente desvinculado de críticas sérias ao fascismo, o livro mostra como é mesmo que o leão e não o macaco, se revela como o mais apto ao governo, como as galinhas só pensam em reproduzir e, por mais que a mosca sonhe alto, ela jamais será como a águia simplesmente porque, pela sua natureza intrínseca, há o gosto por fezes em seu DNA. A animalidade é a condição natural do ser humano de tal forma que, mesmo ridículo em sua irracionalidade, o homem continua sendo apenas um bicho, imutável, do qual decorre toda sua miséria individual e, complementarmente, o sucesso de todas as regras mesquinhas da organização social com suas inerentes injustiças. O humanismo é apenas uma fantasia de ovelhas tolas. Por fim há um quarto modo. Esse é para quem ama o animal e vê nele destacadas, não a irracionalidade indesejada, julgada assim pelas cabeças iluministas e humanistas, mas sim, toda a verdade e a força, reais e reprimidas, da condição humana que, se fosses liberadas, causariam revoluções verdadeiras e fariam as justiças dessa vida. Portanto aqui é necessário ler O Livro das Feras, da americana Patricia Highsmith, em que todos os bichos, do porco ao macaco, passando pelo cão, são doces e vingativos assassinos totalmente integrados à sociedade capitalista, consumista e hipócrita implantada pela ordem primeiro-mundista. Enfim, para Torga, Orwell, Monterosso e Highsmith, definitivamente o mal não é o animal. E diga-se de passagem que, inclusive para Carlos Drummond de Andrade, os animais são anjos, segundo consta no poema Os Animais do Presépio. Foto e arte: Walter Antunes #KATAWIXI #Katawixi #Literatura #luamasocio #walterantunes #migueltorga #georgeorwell #patriciahighsmith #augustomonterroso #bichos #revoluçãodosbichos #olivrodasferas #aovelhanegraeoutrasfábulas
- Haverá futuro para a educação?
A educação no Brasil vinha sendo entendida e concebida pela maior parte dos profissionais da área, desde pelo menos a metade do século XX, como um elemento óbvio de projeto de Estado, inserida no contexto constitucional, realizada de forma institucionalizada, uniformemente, em todo o território nacional. Justamente essa visão vem sendo questionada e dissolvida, de forma pulverizada em toda a sociedade, e essa dissolução tem sido adotada muitas vezes como posicionamento político relevante e válido em meio à crise cultural generalizada da atualidade. Parece que cabe aos próprios profissionais da área um esforço sério de reflexão a respeito dessa situação porque a própria ideia de profissão associada à ideia da “área” depende da definição de um lugar para a existência desse fenômeno social a que chamamos generalizadamente educação para nos referirmos à escola institucionalizada pelo Estado de direito. Normalmente, nos meios educacionais, o debate sobre todos os variados problemas e questões relativos ao processo de ensino-aprendizagem é feito sobre a pressuposição tácita da existência de um sistema educacional assegurado e naturalizado como tópico estrutural de instância política e social. Mas agora é preciso perceber que essa “base” óbvia do que é chamado educação está “derretendo” no mínimo na mesma velocidade do derretimento das geleiras dos pólos do planeta. Sob múltiplos olhares, com ênfase em aspectos diversos, de Anísio Teixeira a Paulo Freire, passando por Darcy Ribeiro e os vários grupos de pessoas que ajudaram a construir suas leis, a educação como projeto de Estado está inserida numa visão progressista e desenvolvimentista do indivíduo em analogia com o desenvolvimento do próprio país. O brasileiro deve se desenvolver como ser humano em consonância com o desenvolvimento do seu país, e este é concebido como uma nação mundial, ou seja, uma nação soberana em meio às outras, comparável, culturalmente, às outras. Portanto a educação, sob esse ângulo, deve estar totalmente sintonizada com os projetos de crescimento e desenvolvimento, principalmente econômicos, que geralmente acompanham os discursos governamentais. Trata-se de uma visão de educação atrelada à visão da existência de um Estado, e que este Estado seja realizado por uma entidade centralizadora, como governo, com o objetivo de proceder a regulação de suas partes constitucionais e institucionais. Ocorre que já há algum tempo, aquilo que chamamos Estado tem dado sinais de que funciona cada vez menos nesse paradigma de centralização e regulação, ou governo, no sentido amplo da palavra, qual seja, significando existência, implantação e controle de regras e leis de modo geral atendendo às necessidades da nação como um todo. Temos vivido cotidianamente vários ataques à ideia de educação como direito cidadão. Esses ataques estão resumidos, por exemplo, no trecho de uma carta pública de crítica ao governo do presidente Bolsonaro, assinada por 152 bispos da Igreja Católica no dia 26 de Julho de 2020: “Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde (...)”. De uma certa perspectiva é visível que o funcionamento social, econômico e cultural tem sido organizado privilegiadamente pelas grandes empresas de tecnologia digital, subordinando à sua lógica todas as outras grandes empresas e também os Estados na promoção de uma mutação cultural em nível planetário. Se na verdade já sabíamos que a educação sempre estivera subordinada aos interesses dos grandes capitais - e sua estruturação universal foi possível em grande parte pautada por esses interesses -, os quais englobam a propriedade e uso dos conhecimentos tecnocientíficos, agora essa mesma subordinação parece prescindir dos sistemas tradicionais de educação institucionalizados, e vem sendo substituída pelas tecnologias informacionais digitais globalizadas difundidas no uso cotidiano dos habitantes do planeta. Uma fala da cientista e ativista social indiana Vandana Shiva ilustra exemplarmente essa questão: “Percebi que algo estranho tinha acontecido no mundo, onde eu via bilionários que não eram apenas iguais aos chefes de governo, mas que na verdade os substituíam. (…) Os novos gigantes de dados digitais estão minando as nossas mentes, estão pegando-as, convertendo-as na chamada “big data” e vendendo-as de volta através do Facebook e WhatsApp e fazendo vigilância. (…) Precisamos de uma convenção sobre privacidade digital. Uma convenção global. (...) Temos que encontrar novas formas criativas de liberdade, novas ações para a liberdade, novas solidariedades pela liberdade, mas só podemos evoluir se soubermos o que está acontecendo”. O fundo do posicionamento político relacionado com o direito à educação pode ser considerado como constituído por uma base motivacional dividida em duas grandes concepções coexistentes a saber: uma concepção de educação em que a meta é formar pessoas como bons produtos sociais, direcionada ao desenvolvimento de indivíduos que possam se encaixar na ordem vigente, basicamente sendo empregados nas empresas, sabendo ler, escrever e contar e, com isso, podendo servir à engrenagem capitalista sob a aparência de sucesso pessoal e aumento da qualidade de vida; e outra concepção a saber: a que parte do ponto de vista de que a educação é responsável pelo desenvolvimento da pessoa no contexto da formação cidadã, para a participação democrática nos processos sociais a partir do cultivo da percepção das complexidades das inter-relações sociais, históricas e políticas, ao lado do desenvolvimento das potencialidades e talentos específicos relacionados aos conteúdos das disciplinas escolares, ou seja, uma concepção humanista, que vê a sociedade como produto do ser humano com o poder de interferência e modificação nessa sociedade. Na primeira concepção, o educador, pressupondo uma ordem política e social estável, tem a convicção de que deve conduzir o educando a se encaixar com sucesso nessa ordem e, na segunda concepção, o educador, pressupondo a ausência de estabilidade na ordem política e social e observando a presença de inúmeras imperfeições e injustiças no funcionamento das instituições, tem a convicção de que deve conduzir o educando ao desenvolvimento da consciência crítica de par com um senso de liberdade para o exercimento de seus talentos específicos. Ora, num momento em que o mundo nitidamente não apresenta, na manifestação das imagens possíveis de suas realidades, uma estrutura de estabilidade econômica que assegure os “empregos” ao velho modo colonialista capitalista das fábricas e indústrias do progresso econômico alavancado pela energia oriunda dos combustíveis fósseis e da extração indiscriminada de recursos naturais, ou seja, num mundo de recursos naturais cada vez mais escassos, apenas a alternativa da educação como processo do desenvolvimento de potencialidades de talentos humanos, criticidade e cidadania é que faz sentido. Mas é justamente e obviamente esse tipo de educação que, todos estão vendo, vai contra os interesses dos novos donos do mundo associados aos desgovernos estrategicamente implantados pelas grandes corporações capitalistas. Portanto parece que a educação como “área”, como “lugar”, apresenta-se agora com o aspecto de um território importante na sustentação da velha luta entre autonomia e colonialismo. Aos educadores cabe refletir sobre a opção de se engajar na educação sob o comportamento de obedientes colonizados, extasiados com as invenções tecnológicas impostas ao terceiro mundo pelo primeiro mundo, apresentadas sedutoramente como elementos civilizatórios “avançados” e totalmente desejáveis, ou optar pela visão crítica da realidade, recusando o prosseguimento do projeto colonizador e interferindo nas transformações sociais, caminhando em direção ao fortalecimento da ideia de democracia participativa e cidadã. Nesse último caso sim, há possibilidade de, por exemplo, nos engajarmos numa convenção global sobre privacidade digital. Precisamos estar atentos aos efeitos devastadores da ideologia colonizadora, que concebe as geografias e as mentes do “terceiro mundo” como espaços vazios a serem invadidos, explorados, espoliados e ocupados. Como diz Vandana Shiva: “O último passo da colonização é o que chamo Mente nullius: a colonização de nossas mentes”. Por fim, quanto à nossa relação com “tecnologia”, a antiga filosofia humanista sobre a questão do “uso” nos ilumina a questão: ela é que deve nos servir, e não nós a ela. Foto: Walter Antunes Referências: Da colonização das sementes à colonização da mente Andrea Cunha Freitas - 09.02.2020 www.fronteiras.com/entrevistas/vandana-shiva-da-colonizacao-das-sementes-a-colonizacao-da-mente?fbclid=IwAR0FAJg294akiVpopREuzsOafQqZEtwIMJGKCkIjGe3TVRAhiCjqLxroOQ4 Grupo com 152 bispos da Igreja Católica assina carta crítica ao governo Luiz Calcagno - 26/07/2020 www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/07/26/interna_politica,875673/grupo-com-152-bispos-da-igreja-catolica-assina-carta-critica-ao-govern.shtml #KATAWIXI #Katawixi #luamasocio #walterantunes #educação #educaçãobrasileira #futuro
- Ouro Preto dos poetas, das sombras e da juventude
Quem vai a Ouro Preto se impressiona definitivamente com as sombras concretas do passado brasileiro há alguns séculos de distância, conservado em monumento histórico feito de uma cidade inteira. Não é como outros lugares, em que a história é vista aqui e ali a conta-gotas, não, em Ouro Preto você caminha, respira, habita dentro da história. Os casarões, as igrejas e os muros projetam as sombras do passado e o viajante navega entre essas projeções como se tivesse realmente voltado no tempo da história, mais precisamente ao Século XVIII. Curiosamente é também uma cidade de muita juventude: cheia de estudantes morando nos casarões transformados em repúblicas há décadas. Essas moradias estudantis são mantidas por confrarias tradicionalíssimas formadas pelos eternos e fiéis ex-estudantes que recepcionam os novos a cada ano. Isso mantém a cidade em constante clima de festa e irreverência. Ouro Preto, além de ser uma cidade, também pode ser considerada um poema em forma de casarões, igrejas e ladeiras. Um poema que é cantado por tantos poetas desde que o lugar existe, desde Tomás Antônio Gonzaga passando por Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e tantos outros, famosos ou anônimos. Em 1950 o poeta Murilo Mendes vê Ouro Preto e escreve a série de poemas intitulada Contemplação de Ouro Preto. Sua visão capta desde as imagens sombrias até as luminosas, vai da morte à vida, do pesado ao leve: Ruínas de solares e sobrados Onde pairam espectros de poetas, De padres doidos, de reformadores … O canto alternativo das igrejas Nos leves sinos da levitação Cruzando-se em cerrado contraponto, São Francisco de Assis adverte ao Carmo, São Francisco de Paula à matriz do Pilar. (in: Motivos de Ouro Preto) (...) Em sua contemplação, Murilo Mendes toca a atmosfera histórica, a religião, a arquitetura, a arte, as figuras e personagens populares e as de renome ligadas à cidade: Aleijadinho, Joaquim José, dona Adelaide… O passeio do poeta naquela época coincide exatamente com o nosso passeio de agora, quando estamos lá em visita: Tu, Ouro Preto, Que outrora foste E agora inda és. De qualquer ângulo Tu sempre és bela! De qualquer ângulo Ao olho amante Sempre és igual. (in: Romance de Ouro Preto) (...) Minha alma sobe ladeiras, Minha alma desce ladeiras Com uma candeia na mão, Procurando nas igrejas Da cidade e do sertão O gênio das Minas Gerais (in: Romance das Igrejas de Minas) Eu vi a cidade barroca Vivendo da luz do céu (in: Flores de Ouro Preto) Murilo Mendes dedica ao arquiteto Lúcio Costa - que projetou Brasília junto com Niemeyer - um poema sobre a fantástica, singela e belíssima igreja de São Francisco: Solta, suspensa no espaço, Clara vitória da forma E de humana geometria Inventando um molde abstrato; Ao mesmo tempo, segura, Recriada na razão, Em número, peso, medida (in: São Francisco de Assis de Ouro Preto) O poeta fala também das luminárias e da lua, que tanto se destacam ao observador que passeia à noite pela cidade: Em Ouro Preto - Viva a sua luz- Vi luminárias Dependuradas, Vi luminárias Que a mão conduz, Vi luminárias Verdes, vermelhas, Vi luminárias Roxas, azuis. (in: Luminárias de Ouro Preto) No Carmo lua: Que lua grande, Corpo estendido, Lua longueira… Mas que luarão Nesses retângulos Que o Carmo tem! O Carmo é mesmo Todo um luar. (in “A lua de Ouro Preto”) E afinal, a cidade de Ouro Preto, hoje, é um lugar extremamente acessível e confortável ao viajante. Totalmente equipada com a infraestrutura padrão dos lugares turísticos. Há hotéis, restaurantes, museus, eventos e passeios para todos os públicos. #OuroPreto #MuriloMendes #Brasil #lugaresdoBrasil #WalterAntunes #Katawixi #LuamaSocio #MinasGerais
- A paisagem onírica de Itaimbezinho em Aparados da Serra
Pode-se visitar o Parque Nacional de Aparados da Serra, que faz divisa entre os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, partindo de Porto Alegre em direção à cidade de São Francisco de Paula. O trajeto é curto, em torno de 2 horas. Ali há vários hotéis e pousadas bem interessantes. Como costuma fazer bastante frio, todos os lugares têm aquecedores, de forma que os espaços internos parecem sempre aconchegantes. Passeia-se por São Francisco de Paula, toma-se café, anda-se pelas ruas de paralelepípedos entre casas de madeira de duas águas e álamos; passeia-se à roda de um bonito lago, às margens do qual está o histórico hotel Cavalinho Branco; o por-do-sol reflete-se nas águas douradas e há patos. Come-se os melhores salames, copas e queijos do Brasil. Saímos de São Francisco de Paula para visitar o cânion de Itaimbezinho, no parque de Aparados da Serra, que fica nos limites de outro município, Cambará do Sul. Fomos guiados por Rosa, 54 anos, taxista e caminhoneira, uma mulher de personalidade singular e interessante. A paisagem gaúcha é fria, com um toque lúgubre. Há uma solidão plástica. Cambará do Sul parece uma cidade de sonho, envolta em neblina, com pessoas vestidas com roupas gaúchas tradicionais, casas de telhado inclinado para escorrer o frio. O maior atrativo do Parque de Aparados da Serra é o cânion Itaimbezinho. O abismo tem 700 metros, feito de paredões verticais e fenda estreitíssima. Dizem que é um dos maiores das Américas, todo cercado por Mata Atlântica e florestas de araucária. Trata-se de uma paisagem grandiosa e magnífica cheia de ecos, cores e sons misteriosos, envolta em neblina e raios de sol. No parque, percorremos a trilha do Cotovelo. As araucárias são as maiores do mundo; muitos rios transparentes e rasos com pedras ao fundo, teias de aranha prateadas com pingos d’água, bromélias, samambaias, neblina aumentando e diminuindo ininterruptamente e o cânion estupendo, vertiginoso, miríades de ecos de pássaros, gralha azul, papagaios-de-peito-roxo, urubus. Dizem que também há jaguatirica, guaxinim e leão-baio. O visitante tem a possibilidade de fazer três trilhas nesse Parque, a do Vértice, a do Cotovelo e a do Rio do Boi, esta última é que dá acesso ao interior do cânion. Para esta trilha a entrada é pelo Posto de Informação e Controle do Rio do Boi, que fica no município de Praia Grande/SC. Mais informações http://www.icmbio.gov.br/parnaaparadosdaserra/guia-do-visitante.html #FotosWalterAntunesTextoLuamaSocio #WalterAntunes #walterantunes #katawixilugares #lugaresbrasileiros #turismobrasileiro #ParqueNacionaldeAparadosdaSerra #fotografiapaisagembrasileira #RioGrandedoSul #SantaCatarina #luamasocio #LuamaSocio #Katawixi
- A cidade de Cora Coralina
Caminhar pela Cidade de Goiás é principalmente sentir-se na terra de Cora Coralina. A antiga capital do estado de Goiás é uma cidade ainda preservada em várias construções históricas, porém o espírito de Cora, sempre vivo, domina a paisagem desde sua casa (essa à esquerda, na primeira foto), transformada em museu, até as atividades econômicas. Muito doce feito com as receitas da poeta é feito por ali e vendido nas ruas e lojas. É na Cidade de Goiás que vemos melhor o enorme significado da força da poesia que transforma a mulher humilde, antes confinada pelas paredes domésticas, expandindo-se pela cidade e pelo mundo. No poema “Aninha e suas pedras”, Cora, nascida Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas em 1889, deixara escrito seu método poético e prático refletido agora na paisagem: Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema. Na casa onde Cora passou a infância e depois a velhice, agora funciona um museu, onde o visitante entra em contato com o ambiente em que ela viveu os últimos anos de sua vida. Quem visita o local tem a impressão de que Cora ainda está viva. Que ela saiu um pouco e que volta já. Na cozinha, o lugar em que Cora mais ficava, a gente vê as panelas e o fogão prontos para funcionar; no escritório, seus óculos, sua máquina de escrever, seus livros; no jardim suas flores. Nas “Considerações de Aninha” a poeta já falava da sobrevida das criações a partir do criador: Melhor do que a criatura fez o criador a criação. A criatura é limitada. O tempo, o espaço, normas e costumes. Erros e acertos. A criação é ilimitada. Excede o tempo e o meio. Projeta-se no Cosmos. Passeando pelas ruas da cidade visita-se as históricas e belíssimas igrejas Nossa Senhora do Rosário, Igreja da Boa Morte e Nossa Senhora D’Abadia. Sobe-se os 100 degraus para visitar a Igreja de Santa Bárbara. Caminha-se pela Rua Abadia. Visita-se o Palácio Conde dos Arcos, o Museu de Arte Sacra e o Museu das Bandeiras. Curte-se a Praça do Chafariz e a Praça do Coreto. Sobre a paisagem desse passeio feito pelas antigas ruas da cidade fundada no século 18, na época da mineração de ouro nos territórios dos extintos índios goiases, Cora escreve em “Minha cidade": Goiás, minha cidade... Eu sou aquela amorosa de tuas ruas estreitas, curtas, indecisas, entrando, saindo uma das outras. Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa. Eu sou Aninha. Eu sou a dureza desses morros revestidos, enflorados, lascados a machado, lanhados, lacerados. Queimados pelo fogo Pastados Calcinados e renascidos. Minha vida, meus sentidos, minha estética, todas as vibrações de minha sensibilidade de mulher, têm, aqui, suas raízes. Cora Coralina é a personalidade mais ilustre da Cidade de Goiás. A poeta passou a ser admirada por todo o Brasil depois de ter sido reconhecida como uma grande escritora por Carlos Drummond de Andrade. Seu primeiro livro, “Poemas dos Becos de Goiás”, publicado em 1965, foi lançado quando Cora já tinha 75 anos de idade e a consagrou como uma das maiores poetas da língua portuguesa do século XX. Muitas pousadas, restaurantes, bistrôs e o Mercado Municipal garantem uma ótima infra-estrutura ao turista. Além dos doces, a comida típica do lugar é o “empadão goiano”, recheado de frango, carne de porco, linguiça, guariroba e queijo. E para além da cidade há cachoeiras e rotas que levam às maravilhas naturais dos outros municípios da região. Cora Coralina em sua janela #WalterAntunes #LuamaSocio #CoraCoralina #CidadedeGoiás #GoiásVelho #Literatura #Lugares #LugaresBrasileiros #Turismo #Passeio #Culturabrasileira #Poesia #Mulherespoetas #Katawixi #Fotografia #Fotografiabrasileira
- Chapada dos Guimarães: no Centro da América do Sul
Luama Socio: texto / Walter Antunes: fotografia Cachoeira, chuvisco, sol e exuberantes jardins naturais no ponto central da América do Sul: assim é a Chapada dos Guimarães. Para chegar lá, vá até Cuiabá, a bela capital de Mato Grosso, pegue a rodovia Coxipó da Ponte, trafegue por apenas 68 quilômetros e alcance a charmosa cidadezinha homônima adjacente ao Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Dependendo da época do ano num mesmo dia experimenta-se sol quente, vento e neblina fria, mas nada impede as excursões pelas veredas verdes que levam às cachoeiras Véu da Noiva, Cachoeirinha e Cachoeira dos Namorados, que estão entre as mais visitadas pelo público dentro do Parque. Porém a beleza e exuberância da Chapada se revelam em camadas de inesgotável maravilhamento ao explorador que vai além do roteiro básico convencionado pela administração do Parque. Isso inclui expedições ao longo dos enormes e coloridos paredões naturais, escaladas, nadar em riozinhos límpidos coalhados de peixes e sentir-se verdadeiramente num paraíso em meio a flores e plantas naturalmente “ornamentais”. A vegetação do cerrado tem essa peculiaridade de apresentar uma paisagem ajardinada, harmoniosa nas proporções espaçadas. Nessa região o visitante também se depara com uma infinidade de inscrições e desenhos rupestres, misteriosas heranças deixadas por antiquíssimos ancestrais. Nessas expedições, que podem durar um dia inteiro, somos conduzidos por guias que conhecem muito bem a região. Para se visitar a gruta “Morada das almas” e o “Lago azul”, caminha-se por um dos lugares mais bonitos que já se viu, cheio de pássaros, flores, lagartos, perfumes, fungos estranhos, matas e montes até o ponto final, uma caverna grandiosa que abriga uma lagoa límpida em que o sol projeta, através das sombras de contornos naturais, a forma de uma grande borboleta azul com reflexos dourados. Enquanto esse reflexo acontece, borboletas de verdade, pintadas de preto e amarelo, esvoaçam. Pelo “Circuito das águas” depara-se com muita água límpida e espumante, piscinas naturais em meio a uma infinidade de cachoeiras, pegadas de bichos, pedras de formatos curiosos, longas caminhadas por entre a exuberância verde e colorida. Para além dos passeios guiados também é possível se aventurar sozinho por mais outras águas e lugares: cachoeiras da Martinha, Marimbondo, Geladeira e o fantástico Mirante Morro dos Ventos, em que se deve assistir a um incrível e místico por-do-sol, pois aqui se está no Centro Geodésico da América do Sul, a uma distância de 1.600 quilômetros do Oceano Pacífico e do Oceano Atlântico. Deste Mirante é possível avistar muita coisa para além da beleza natural: garimpos, cidades e plantações de monoculturas do agronegócio brasileiro. O Parque da Chapada é um oásis ecológico ultra-necessário em meio a um gigantesco problema de desmatamento e grave poluição por agrotóxicos. A infra-estrutura ao turista é perfeita. Há pousadas, restaurantes e diversos guias. A cidade é muito simpática e bem cuidada, com uma igrejinha singela ao centro. O transporte de Cuiabá até à Chapada e vice-versa pode ser feito por um ônibus circular. Há também uma arte e um artesanato muito interessantes, todos expressivos de uma atmosfera de paz, harmonia e esperança. #lugares #katawixi #walterantunes #luamasocio #chapadadosguimaraes #KATAWIXI
- A ciência se transformou em escrava da utilidade
A principal referência histórica das relações entre utilidade e ciência no discurso filosófico remonta à figura do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626). É de se notar que essas relações estão também intimamente vinculadas à ideia de ciência moderna, manifestada principalmente através de suas qualidades materialistas e progressistas, ou seja, à ideia de ciência tal como se configura em linhas gerais no imaginário atual. Destacaremos, sobre Bacon, as seguintes afirmações: “erigiu como divisa a máxima saber é poder, pois o saber, para Bacon, é apenas um meio mais vigoroso e seguro para conquistar o poder sobre a natureza e não tem valor apenas em si mesmo; cultivava entusiasmo pela técnica; desejou que a ciência servisse à humanidade em geral; propôs a teoria da indução como base para o método científico e o método científico consiste na observação metódica e experimentação; defendeu que a harmonia e o bem-estar dos homens repousam no controle científico alcançado sobre a natureza e a conseqüente facilitação da vida em geral; vislumbrou que a ciência não é obra individual mas coletiva” (1). Não obstante as controvérsias sobre a validade ou eficácia da indução como base do método científico (2) e a sua eventual substituição pela dedução, os valores da ciência anunciados pela filosofia de Bacon seguem inalterados. E mais: a evolução desta ideia de ciência em íntima conexão com o desenvolvimento do imperialismo inglês (e hereditariamente dos EUA), de seu industrialismo, de sua economia capitalista ora denominada neoliberal, de seu modelo de civilização, fez desses valores da ciência os próprios valores da sociedade da era da propaganda, do consumismo e da massificação. Pode-se afirmar então, que tais valores que, ao que parece, nasceram de uma contestação a valores anteriores, vivem, por assim dizer, o seu apogeu na contemporaneidade. É em meio à predominância dessa mentalidade que nasce a crítica do filósofo australiano radicado nos EUA, Hugh Lacey - militante de causas ecológicas relacionadas com a tragicidade das técnicas atuais da indústria agrária -, a alguns aspectos dos valores que se tornaram senso comum sobre a ciência. Lacey tem uma vasta obra na área da Filosofia da Ciência que, basicamente, propõe a prática de uma ciência para a era da globalização sobre a base ideológica da democracia participativa, em que os projetos científicos deverão se adequar ao pluralismo de valores inerente à diversidade de contextos sociais, ecológicos e culturais existentes no planeta. Neste caso, por exemplo, nem sempre será mais útil o domínio da natureza ao invés da sua preservação. Entre as teses que Lacey propõe sobre a interação entre valores sociais e ciência, a Tese 10 expressa este pensamento nos seguintes termos: "O objetivo da ciência é bem servido pela institucionalização das práticas científicas sempre que uma pluralidade de estratégias, associadas respectivamente a diferentes valores sociais, possa ser ativamente adotada. Isso também tornaria possível uma maior manifestação da neutralidade, faria com que mais atenção fosse dada a questões de valor suscitadas por aplicações, e – acima de tudo – promoveria o fortalecimento de instituições de participação democrática" (3). A tradição científica que se segue a Bacon consolida a ideia de que a ciência é o meio principal do progresso da humanidade rumo ao bem-estar geral. E o faz através principalmente do que Lacey chama de abordagem descontextualizada dos fenômenos que trata. A visão que sustenta a abordagem descontextualizada é aquela que afirma que a ciência é em si, livre de valores, o que quer significar que a utilidade da ciência é universal porque não depende do direcionamento de interesses e desejos subjetivos porque o próprio método científico garante a objetividade. Lacey argumenta que, no entanto, a própria noção da ciência sem valores já está imbuída de valores. Estes não se evidenciam convencionalmente como valores, mas habitam o espaço da ideologia tradicional da ciência. São eles, a Imparcialidade, a Neutralidade e a Autonomia. Esses valores, que propiciam a abordagem descontextualizada, ironicamente, ao invés de terem promovido o bem-estar geral da humanidade, acabaram por mascarar, ao longo da história, inúmeros interesses políticos e econômicos de grupos específicos aos quais a ciência tem servido. Diante deste cenário, Lacey propõe alguns redimensionamentos filosóficos para a ciência da atualidade. Na perspectiva de Lacey o objetivo da ciência será mais o entendimento do que apenas o conhecimento, e a atenção à Neutralidade garantirá a consideração de uma pluralidade de estratégias necessária à diversidade de interesses sociais. Mas mesmo que racionalmente possamos pensar, juntamente com Lacey, que os níveis de utilidade do produto da técnica científica para fins de valores sociais terá de variar de acordo com o contexto social, cultural e ecológico, o comprometimento da ciência com o projeto global de desenvolvimento modernizador “representado pelas instituições e valores hegemônicos nos países industriais avançados” (4) reveste toda a sua performance com o valor da utilidade direcionada ao “crescimento econômico, industrialização, transferência de tecnologia moderna, integração à economia capitalista mundial” (5). Assim, de um certo ponto de vista, todos os produtos da ciência e da tecnociência serão úteis, atém mesmo independentemente de terem sido necessários antes de existirem, pois a ciência, atrelada aos propósitos do neoliberalismo, tornou-se o principal agente cultural dos tempos atuais. Uma consideração desta situação levará à consciência de que a própria cultura do mundo globalizado é modelada em grande parte pelos processos científicos. Por este aspecto nada será então mais útil ao mundo do que a ciência, já que ela própria figura como móvel dos modos deste próprio mundo. O senso comum é apenas coerente com este estado de coisas. Neste sentido, até mesmo o tipo de pesquisa científica que teria a pretensão da grande ciência, aquela ciência “idealista”, autônoma, movida pela curiosidade inerente ao espírito científico, que pretende apenas produzir previsão e decisão sobre os objetos mais variados, sem fins sociais aparentes, estará compondo a esfera da utilidade por se considerar ela mesma contribuindo para o progresso de um todo maior que é a própria ciência-cultura. Portanto, Lacey insiste em lembrar que a abordagem descontextualizada pode produzir ciência sem limite, mas muitas coisas ficam de fora da “linha” da abordagem. Segundo Lacey a explicação científica relaciona-se com a descrição dos fatos empíricos, porém pode também ser utilizada para confundir objetivos. Muitas vezes a explicação não aborda fatos relevantes que ficaram de fora. Escolhe-se uma coisa, ao invés de outra. Para Lacey, somente não perdendo de vista os ideais da Imparcialidade e da Neutralidade as instituições científicas terão condições de se conduzir através de uma atenção à pluralidade de estratégias, tentando superar a estreiteza dos limites da abordagem descontextualizada. Para finalizar mencionaremos o caso polêmico, no Brasil, da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Embora cerca de 350 cientistas de todo o país tenham produzido um documento indicando desastres ecológicos, sociais e culturais irreversíveis e incomparavelmente desvantajosos para o país, do ponto de vista da sustentabilidade, em relação à possível vantagem da construção da usina, bem como a não-necessidade de um pólo gerador de energia de grandes dimensões para o local; embora o Ministério Público tenha elaborado ações jurídicas para o impedimento da obra; embora houvesse manifestações do povo, de protesto em passeatas pelas ruas das cidades do Brasil, contra a construção, a presidenta do país, juntamente com o grupo de pessoas interessadas nos lucros que a obra lhes proporcionará, seguiu firme na decisão da construção da usina. Uma ação dos mesmos moldes foi o projeto de transposição e desvio das águas do rio São Franscisco, ameaçando biodiversidades e culturas sob o conceito da sustentabilidade. Esses são alguns exemplos retirados dentre inúmeras escolhas e ações políticas desenvolvimentistas envolvendo altas tecnologias geradas por uma ciência descontextualizada, que entram em conflito com o conceito de sustentabilidade, via ausência da democracia participativa. Bibliografia BACON, Francis. Novo Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Interpretação da Natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. LACEY, Hugh. Valores e atividade científica 1. Editora 34: São Paulo, 2008. LACEY, Hugh. Valores e atividade científica 2. Editora 34: São Paulo, 2008. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2007. SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Publifolha, 1998. WATSON, Lyall. Onde vivem as lendas. Tradução de Luiz Corção. São Paulo: Difel, 1979. ZATERKA, Luciana. A filosofia experimental na Inglaterra do século XVII: Francis Bacon e Robert Boyle. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2004. Notas: 1 Palavras retiradas do texto de José Aluysio Reis de Andrade sobre a Vida e Obra de Bacon na Introdução ao Novo Organum, Coleção Os Pensadores, 1979. 2 Para Popper, por exemplo, “que incoerências podem surgir facilmente, com respeito ao princípio da indução, é algo que a obra de Hume deveria ter deixado claro. (...) as várias dificuldades da Lógica Indutiva são intransponíveis. (...) conduzem a uma regressão infinita ou à doutrina do apriorismo” (pp.27-31), 2007. 3 p.30, VAC 2. 4 p. 200, VAC 1. 5 p. 200, VAC 1. #Ciênciaeutilidade #HughLacey #LuamaSocio #Valorescientíficos #CiênciaeSociedade #Katawixi
- O hábito da leitura é uma atitude cultural libertária
Ficar absorto na leitura é diferente de ficar espalhado entre várias janelas ao mesmo tempo no computador. O livro torna visível um esforço de concentração que todos sabem ser experiência saudável ao ser humano de todas as idades. A atitude de ler é identificada com a prática de recolhimento, de sustentação do foco de atenção. Uma vez ouvi o escritor de livros infanto-juvenis, Dionisio Jacob, responder a seguinte coisa a uma adolescente do oitavo ano que lhe perguntou o que fazer para aprender a gostar de ler: “o momento da leitura é um momento só seu. Quietinha, com o livro na mão você está vivendo um momento íntimo, sem mais ninguém interferindo. Quando você aprender a gostar de ficar assim talvez você terá aprendido a gostar de ler”. Isso me lembrou o que a escritora Lygia Bojunga Nunes falou sobre a sua experiência com o primeiro livro que “amou”: “Lá em casa eles me viam tão entregue a esse livro (Reinações de Narizinho), tão quietinha num canto, só eu e o livro, que eles me deram, correndo, uma porção de Lobatos. Eu li; eu experimentei eles todos; eu curti”. Voltei no tempo, lembrei-me menina, lendo Júlio Verne, Monteiro Lobato, José Mauro de Vasconcellos, Maria José Dupré, Mark Twain, o Tarzan, etc... numa atividade insubstituível, sem que deixasse de me divertir com outras coisas como TV, bicicleta, bola, piscina, bonecas, casinhas... Nem precisaria me distanciar tanto no tempo para justificar o prazer da leitura. Hoje em dia continuo tendo, entre as coisas que mais gosto de fazer, a leitura. Até tornei-me mestra em literatura. O exemplo em casa, do valor da leitura, também é uma coisa importante. Se não o exemplo do hábito de leitura constante, coisa que nem todo mundo tem, é importante pelo menos os adultos exemplificarem a valorização do livro, através do incentivo aos filhos que estão na escola, a ler. Achar que os livros são necessários, mas apesar disso não usá-los, ou não recomendar o seu uso, fazem a necessidade vã. Na escola, o professor se encarrega da responsabilidade também pelo exemplo. Professar a leitura é uma das missões dos professores de Língua Portuguesa, disciplina que engloba ensinamentos referentes a língua, comunicação e literatura. As estratégias de incentivo à leitura na escola são muitas. Geralmente são delineadas desde o início por um trabalho de grupo, envolvendo direção da instituição, coordenadores e professores. Essas estratégias se diversificam nas salas de aula, onde cada professor acrescenta outras ações no decorrer dinâmico do ensino e aprendizado. Enfim, a escola deve se esforçar em formar um cidadão que lê. Um exemplo de ação diversificada de leitura que tive oportunidade de colocar em prática, com sucesso, durante o tempo em que fui professora de alunos do ensino médio, foi uma ação baseada no conceito de “biblioteca ideal”. Trata-se de uma estratégia simples, mas eficaz, quanto ao objetivo de aumentar o contato efetivo dos alunos com os livros: ao invés dos alunos lerem todos o mesmo título ao mesmo tempo, cada um lê livros diferentes dos outros, escolhidos por eles mesmos ou determinados pela professora, entre títulos de uma lista (biblioteca virtual) selecionada pela professora. Os títulos são todos disponíveis na própria biblioteca da escola. Dessa forma, além de ler, os alunos trocam informações sobre o que estão lendo e espontaneamente despertam o tema da leitura como assunto que vivenciam. Falam mal, falam bem, indicam, não indicam a leitura, uns para os outros, etc. A idéia dessa ação me surgiu inspirada por Ítalo Calvino em seu livro Por que ler os clássicos. Depois de dar quatorze razões para a leitura de obras clássicas ele diz: “Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos; e diria que ela deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós, e outra de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar. Separando uma seção a ser preenchida pelas surpresas, as descobertas ocasionais”. O que mais me chamou a atenção nessa invenção de Calvino é que a “biblioteca ideal” tem a particularidade de evidenciar o paradoxo do aumento da consciência da ignorância concomitante ao aumento da sabedoria. Traduzindo para a pedagogia a idéia de Calvino, coloquei em prática a biblioteca ideal pela primeira vez depois do comentário de um aluno: “Professora, para que serve ler um livro velho?” Eu respondi: “se um livro dura tanto tempo é porque ele tem um grande valor, por isso muitas vezes os livros mais velhos são os melhores. Se um livro antigo é lido nos dias de hoje é porque seus signos são tão importantes que resistem até mesmo ao tempo.” O aluno ainda não havia compreendido o valor transcendental do livro. O aspecto do objeto-livro, de papel, com capa e folhas novas ou velhas era a sua principal idéia de livro. Numa outra ocasião, outro aluno perguntou para mim referindo-se à proposta de leitura de Os Lusíadas: “Professora, a senhora tem certeza de que vai ser bom para mim, para a minha vida, ler esse livro?”. Respondi a ele nos termos de Calvino, que nos diz o seguinte a respeito dessa questão: “as leituras da juventude (...) podem ser formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza; todas coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude”. Pode-se citar inúmeros motivos de sustentação do valor da leitura, como o de Thoreau, por exemplo, que defende o acesso aos saberes através do livro como fonte de autonomia política, postura parecida com a de Evando dos Santos, pedreiro de profissão, de origem sergipana, que fundou uma biblioteca na Vila da Penha, o bairro pobre onde mora no Rio de Janeiro, e conseguiu um projeto de Oscar Niemeyer para a construção do prédio de sua biblioteca: “Livro para mim é vida. A leitura traz liberdade para o ser humano”, disse Evando, na época da divulgação, pela grande mídia, da sua iniciativa, há alguns anos. Liberdade, diga-se de passagem, já postulada pelo grande educador Paulo Freire. Outros argumentos frequentes são: aumento do vocabulário, que equivale, mais ou menos, ao aumento dos horizontes do pensamento, pois o homem pensa, em grande parte, através de palavras; manutenção e criação da cultura; ligação estreita com a capacidade de escrever; consequentemente aumento das potencialidades de percepção, expressão e compreensão do mundo como um todo e de suas lógicas. No entanto todos esses argumentos estão relacionados a um fato concreto, a um comportamento específico: a atitude de ler. Minha sugestão para colocar em prática esse comportamento é substituir parte do tempo dedicada às telas do computador e da televisão pelas páginas de um bom livro. Pratiquemos um pouco de solidão e liberdade. Então... comecemos a leitura. #Leitura #Importânciadaleitura #ÍtaloCalvino #Ensinaraler #Educação #Porquelerosclássicos #Katawixi
- Urbana e ancestral: a mulher guerreira de Carolina Itzá
Semillas: onde o Zé Povinho não encosta As figuras de mulheres desenhadas por Carolina Itzá aparecem aqui e ali, em muros e exposições de bairros considerados periféricos de São Paulo e nos espaços da internet, comunicando coragem e beleza como qualidades sinônimas. A mulher que luta é a mulher em essência integrada com os elementos da natureza, da cidade, do passado e do presente. É a mulher desse país, de outros países, dessa cidade e de outras cidades. É a mulher que não recusa nada em sua história, que não foge de nada, embora paradoxalmente e, consequentemente poeticamente, apareça por vezes dizendo não e apareça também algumas vezes fugindo. Icamiaba guerreira Tem um seio só Pra flechar certeiro. No seu mergulho Nas águas profundas Dos rios de dentro Traz, pedra verde Muiraquitã Amuleto fértil do povo seu... Nunca seca. (Assim me contou Beth). Essas aparências são as expressões da presentificação da mulher universal que, através do olhar de Itzá, inevitavelmente significa-se através de luta e resistência num mundo evidentemente hostil a todos os valores do feminino. Então apesar de atravessar os tempos e espaços, essa mulher necessariamente expressa-se em figurações de guerreira desde que sua presença provoca sentidos de estranhamento e intrusão. Mascarada e nua, ela se expõe e não nega a guerra, deixando entrever as delicadezas próprias daquilo pelo qual ela luta. Vitória e mangue Em Vitória cai água do céu Evapora água entre os dedos dos pés Respiro água A toalha, nunca seca O cadarço, os talheres, o chão do busão A goteira se instalou em cima do meu travesseiro, e não adianta mudar de lugar Não sei mais se é sonho, se é o mar que resolveu levantar do leito, se as palavras lágrimas Do esquecimento O mangue pipoca ploc ploc Barulho chocalho, dias a fio Aquário de gente úmida E... Não adianta mudar de lugar. (Contracapa para o livro Cambalhota, de Silvio Diogo) Carolina Tiemi Takiya Teixeira diz que seu nome artístico, Itzá, foi inspirado na personagem indígena da escritora nicaraguense Gioconda Belli no romance "A mulher habitada”, mas não apenas isso, ela também conheceu uma mulher com esse nome, no México, e diz: “há um tempo eu procurava um nome de guerreira, buscava me rebatizar com algo que significasse esse caldeirão de luta das mulheres em Abya Yala, que influencia muito meu trabalho.” Os elementos estéticos inspirados no conceito de “Terra Viva” ou “Abya Yala”, palavra antiga, usada originalmente pelo povo Kuna para a denominação do que hoje convenciona-se chamar a América, estão presentes, nas figuras de Carolina, tanto como representação da ancestralidade, quanto como afirmação política de descolonização. Nesse ponto, as mulheres de Itzá parecem figurar a personificação dessa própria Abya Yala, irredutível, maltratada, nua e armada. Malokêras: "a rua é o meu trabalho sem padrões, a minha casa sem marido, salão de festa colorido". "Vivona", autorretrato “Eu faço tudo de forma visceral mesmo, as coisas têm que sair da minha experiência. E dialogar com quem me rodeia. É o contato direto com todas as contradições e a resposta viva a isso que eu busco. A arte é pequena, o mundo é maior”, declara Itzá. A forte conexão da arte de Carolina com os signos políticos relacionados às questões da mulher, da identidade e da periferia da cidade grande, porém, está associada à subjetividade da artista desde o começo de tudo: “desenhar foi a forma como ia preenchendo minha vida desde criança, pra não sentir solidão, pra sentir prazer, pra desaguar as coisas que sentia. Com o tempo, as pessoas em volta iam me puxando pra assumir algumas responsas, como fazer um cartaz, uma ilustração pra uma camiseta, uma banda. Eu não sabia que era artista. Foi a coletividade que eu fazia parte que foi me colocando nesse lugar, e eu fui entendendo com o tempo. Mas a virada ocorreu mesmo quando comecei a frequentar os espaços de cultura ligados aos saraus periféricos, fui colocando meus quadros pro povo ver, fui rompendo com a vergonha.” "Em fuga...", imagem a partir de um sonho que tive Rabiscando fugas A expressão técnica principal de seus trabalhos é o grafite, mas Itzá passeia por várias outras maneiras. “Também tenho um contato muito íntimo com aquarela e tinta acrílica. Tenho feito peças em cerâmica e bordado. Mas tudo o que existe, pode ser matéria pra transformar. As minhas obras têm relação profunda com a vida cotidiana”. "Segredo", fuga fértil em meio ao genocídio. Mantendo o segredo, espalhando sementes. A coletividade é um elemento importante na vida da artista. Para um futuro próximo ela vislumbra “um ateliê que possa ser um território de encontro e formação, que agregue mais gente”. Carolina Itzá mora atualmente no Campo Limpo em São Paulo. “Nasci num lugar chamado Vila Indiana, e morei na zona norte de SP, Bauru, Vitória do Espírito Santo... todos esses lugares fazem parte de mim e carrego todo mundo que conheci. Tenho 36 anos, sou formada em Antropologia pela USP e faço mestrado em Artes Visuais na UFES”. Foto: Cassimano Santos Nanau https://www.instagram.com/carolinaitza/ https://www.facebook.com/carolitza #KATAWIXI #katawixiarte #katawixiartes #CarolinaItzá #Grafite #ArteBrasileira #GrafiteBrasileiro #Artefeminista #LuamaSocio #Katawixi
- Histórias do quilombo Ilha de São Vicente no rio Araguaia
Dona Maria Rita; foto de Walter Antunes No meio do rio Araguaia, na região conhecida como Bico do Papagaio, está localizada a Ilha de São Vicente, uma das maiores ilhas fluviais do Brasil. Ali vivem os remanescentes quilombolas que contaram um pouco da história de suas vidas para uma equipe da Universidade Estadual do Tocantins. As personagens e suas histórias podem ser conhecidas, lidas e ouvidas acessando-se o site www.historiasdailha.com O quilombo Ilha de São Vicente é um espaço privilegiado de conservação de histórias de vidas humanas por um lado ligadas fortemente à natureza e por outro abandonadas pelas políticas sociais de Estado. A Ilha, que originalmente pertencia a um território configurado pela etnia indígena dos Araras, passou a ser habitada na segunda metade do século XIX por ex-escravizados que “ganharam” a terra de seu antigo “senhor” por ocasião da Lei Áurea e prossegue ocupada pelos descendentes desses primeiros habitantes, resistindo em suas formas de vida face às pressões do mundo globalizado, aos conflitos de interesses políticos e econômicos e à degradação dos recursos naturais. Assim, esse mesmo território que outrora fora considerado um lugar distante e adequado - segundo a ótica do senhor de escravos -, para exílio dos indesejados libertos, agora é cobiçado por inúmeros invasores e a legitimidade da propriedade é constantemente questionada pelos próprios poderes institucionais de Estado que, a despeito da existência das leis, exprime a realidade do nosso contexto de injustiças sociais. As histórias dos habitantes da Ilha vão de encontro à necessidade das vozes dos portadores de perspectivas de vida não-hegemônicas se fazerem ouvir. Pela própria constituição histórica de sua estrutura política, os saberes quilombolas tendem a ser desprezados como válidos pela sociedade padronizada dos costumes consumistas da era da globalização em massa. O fato evidente da exclusão cultural, por outro lado, tendo já sido discernido, enseja o posicionamento nitidamente favorável a um esforço de reversibilidade com vistas à recuperação de uma espécie de riqueza até então desconhecida. Os signos dos saberes dos ancestrais do povo são hoje imprescindíveis para a formação da noção de cultura e pertencimento nas mentes e corações das pessoas. Caso isso não ocorra os seres humanos correm o risco de tornarem-se cada vez mais alienados de sua própria noção de origem, do seu entorno geográfico, ambiental, cultural e político, enfim, de sua identidade, tornando-se meros autômatos consumistas da ordem econômica predadora, massificadora e desterritorializada da globalização capitaneada pelas grandes corporações financeiras. Para caminharmos em direção à construção de um entendimento amplo do conceito de cultura é necessária a integração das amplitudes plurais identitárias das construções sociais. O reconhecimento das pluralidades identitárias ocorre por meio da proteção e cultivo das riquezas imateriais tanto quanto das materiais. Atualmente não se desconhece o fato de que o ser humano - como ser simbólico na era do conhecimento científico e da predominância dos meios de comunicação de massa, propagadores de imagens e sons que funcionam como modelos universais - passa por um empobrecimento da capacidade imaginativa ativa, pois tornou-se geralmente um receptáculo passivo das mensagens massificadas. Posto isso, a disponibilização dessas histórias pretende contribuir para a dinamização entre a dimensão simbólica das poéticas quilombolas, recheadas de figuras do ambiente natural, e a construção de um conhecimento cultural que deve ser ressignificado continuamente no fluxo histórico das relações identitárias e estéticas. A dinamização entre símbolo e identidade/afetividade no nível do imaginário pode ser sentida de imediato à leitura ou audição das histórias. Por exemplo, Fátima Barros nos conta a lenda da origem dos rios Araguaia e Tocantins, em que um é “da cor da lua” e o outro é “da cor do sangue”, sendo que antes de serem rios, eles foram duas cobras. A simples consideração da força simbólica dessa descrição resgata e elucida aspectos do imaginário associados ao ambiente natural do entorno geográfico dos habitantes da região. Essa história, que foi ouvida por mim, me guiou em minhas considerações sobre esses rios e guiará, pelas imaginações, as considerações de todos os que a ouvem, imprimindo um significado e um imaginário correspondente, relacionando simbolicamente sabedorias, afetividades e identidades que são importantes na valorização e preservação da nossa cultura. Nas histórias contadas pelos habitantes da Ilha sobressaem os signos da forte conexão entre os seres humanos e o seu lugar de pertencimento para além da materialidade imediata, apontando para as formas próprias do uso da palavra, que vão desde a estética de sua linguagem até os sentidos variados de seus conteúdos simbólicos. Pela palavra, pela linguagem, o quilombo supera a limitação territorial da Ilha e comunica suas mensagens ao mundo. Os quilombolas, esses estrangeiros ancestrais em relação à cultura de massa predominante em nossa vida agora, personificam, com relação às histórias que contam, verdadeiros mensageiros das raízes de nossa história material em consonância com a dimensão do imaginário. Eles são os distribuidores dos tesouros capazes de enriquecer a visão de mundo e alimentar de esperança a alma de todos os brasileiros. O site www.historiasdailha.com tem fotos e vídeos de Walter Antunes, edição de textos e vídeos de Luama Socio, colaboração de Léo Daniel da Conceição Silva, e a participação de vários acadêmicos e profissionais da Universidade Estadual do Tocantins. #historiasdailha #historiasdailhacom #LuamaSocio #QuilomboIlhadeSãoVicente #Araguatins #RioAraguaia #WalterAntunes #LéoDanieldaConceiçãoSilva #Unitins #Katawixi
- Um livro sobre o teatro de Gabriel Villela
Neste belíssimo livro organizado por Dib Carneiro Neto e Rodrigo Audi a trajetória de Gabriel Villela é narrada através de fotos de espetáculos teatrais e musicais, depoimentos pessoais e textos de críticos, atores e colegas de trabalho. Gabriel Villela é um nome que dispensa apresentações no meio teatral. Em sua profícua produção, iniciada profissionalmente no final da década de 1980, vem colecionando diversos prêmios e críticas positivas com espetáculos exuberantes que derivam de textos dos autores clássicos, como Shakespeare, Schiller e Beckett, mas também de um mundo mais prosaico e particular, a partir do qual revela sua mineiridade. O livro é editado pelo selo Sesc e pode ser encontrado nas lojas das unidades do Sesc. #DibCarneiroNeto #RodrigoAudi #GabrielVillela #Teatrobrasileiro #Katawixiindica