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  • A impossibilidade lógica da escola sem partido

    Obviamente a impossibilidade lógica da "escola sem partido" está enunciada no autoritarismo e repressão de um partido específico, o qual está agora no comando da educação pelo Estado. A própria ideia de educação pelo Estado foi tomada, historicamente, pelos totalitaristas, como um partido específico, e portanto agora trata-se do partido das pessoas que dizem que o Estado é seu partido e que isso é ser sem partido. Lembre-se que educação de massa só se dá pela alternativa da repressão. Essa é uma condição física da escola, como ela já ocorre, na obrigatoriedade da educação pelo Estado. Professores amorosos têm tentado driblar essa triste condição. Em muitos casos isso se torna possível. Mas o amor jamais será apenas um método educativo. Trata-se de um princípio de vida. Por causa desse princípio de vida a educação tantas vezes torna-se aliada do verdadeiro desenvolvimento humano embora inserida no contexto estrutural de opressão. Existem muitas teorias, muitas visões a respeito da educação, que alimentam o caminho profissional da cultura pelo amor. A compreensão e o entendimento profissional da educação pela ciência dessas teorias passa pelo conhecimento da existência dessas próprias visões e pelo aprendizado de pensamentos e metodologias retirados dessas teorias consideradas como conhecimento oriundo de fontes de sabedoria. Vemo-nos, não obstante, numa condição terrível, de ter que defender a própria existência da escola, pelo Estado, nos seus moldes comuns e totalmente insatisfatórios, para que não se tire toda a esperança de uma população historicamente oprimida. A relação da educação com a sociedade, com o Estado, com a política, deve estar sempre à vista. Os olhos do profissional não podem perder de vista jamais a contemplação desse ponto da estrutura das relações sociais. Em matéria publicada em 31 de Outubro de 2018, o portal G1 traz o seguinte título: "Sintonia eleitoral: brasileiros se dividem sobre liberdade para professores ensinarem diferentes perspectivas políticas". Segundo o portal, trata-se de uma conclusão retirada de cerca de 500 respostas a um questionário feito por uma empresa canadense, contratada pelo portal, para fazer a pesquisa durante a época das eleições presidenciais de 2018. Os gráficos mostram um empate impressionante nas posições antagônicas. Em torno de 31% concorda muito que os professores devem ser livres para ensinar perspectivas políticas diferentes e 30% discorda muito. Entre os que concordam com a liberdade há uma ligeira maioria de mulheres, e entre os que discordam muito há uma ligeira maioria de homens. O descalabro na dimensão ética com respeito a esse assunto foi sentido por uma grande parte de adultos responsáveis do país. A dimensão ética deveria ser pautada por uma percepção precisa das estruturas de relações sociais, e em primeiro lugar, das relações de trabalho. Um diretor de escola da rede pública, um professor - assim como quaisquer outros profissionais de quaisquer áreas em qualquer lugar do país - se pensa de si que é apenas um diretor ou um professor, não está sendo plenamente responsável. Ele tem que saber - percebendo o tempo inteiro -, de qual estrutura faz parte: por que a escola existe, qual é o objetivo da escola; como a escola veio a existir nesse mundo; quem inventou, quem criou essa escola. A percepção dessas questões é da máxima importância ética. Conheci professores que não possuíam uma imagem - ou imaginação - razoavelmente clara a respeito da estrutura comum dos departamentos públicos de Estado, incluindo a escola, com suas respectivas funções. Conheci um chefe de pátio de “centro educativo” para adolescentes infratores que não sabia onde o sol nascia e se punha tendo por base o quadrado superior do campo do pátio. O não percebimento das relações sociais, políticas e ambientais em que se está inserido produz uma fragilidade estrutural séria no próprio sentido da existência profissional. Chama-nos a atenção o fato de que os profissionais da educação revelem-se tão impotentes na defesa de suas profissões. E isso, definitivamente, não precisaria ser assim. Parece-me que seja gravíssimo quando as pessoas se alheiam, não sabem onde estão, a começar do ponto da crua percepção espacial. Chamo de grave um nível de percepção bastante baixo na esfera das relações humanas, agenciador de uma série de obscuridades psicológicas. Talvez este seja um dos fatores que fazem com que muitos adultos responsáveis tenham a sensação de estar no meio de pessoas dementes quando num sistema democrático as “massas” escolhem o que é pior para elas mesmas: o pior nesse caso significa escolher participar o menos possível do governo da comunidade humana, iludindo-se de que já se está fazendo o máximo da obrigação cidadã votando em representantes do povo ao governo, sobre os quais não se sabe suficientemente. Entre as graves distorções conceituais veiculadas em meio à diversão emocionante dos incautos nas últimas eleições destaco a identificação de "ser consciente do sistema de governo e reivindicar o direito ético à participação" com "ser comunista". A distorção intencional de muitos conceitos importantes culturalmente e historicamente é diametralmente oposta à missão do professor, à função da educação. O simples conhecimento a respeito do sentido histórico e simbólico da palavra "comunismo" no nível do conteúdo de Ensino Fundamental bastaria para desfazer qualquer confusão caso a uma pessoa faltasse o senso de espaço e tempo. Por pura fanfarronice eleitoreira houve a colaboração na destruição da credibilidade dos dados inerentes aos sentidos básicos da mente humana: os sensos de espaço e tempo. O fato de termos direito à consciência de espaço e tempo em nível social e terrestre foi sacrificado aos sentidos do medo e da propaganda manipulados pelos engenhos trans-humanistas. O direito a essa consciência, que deve ser desenvolvida por toda educação, e que deveria estar altamente desenvolvida em todos os professores e educadores conduz obviamente ao direito legítimo de se perceber e de se interessar por mais coisas além do que se alcança com o próprio “nariz”. Temos o direito de saber das relações entre coisas que consideramos distantes e coisas próximas. A verdadeira ingenuidade está, no entanto, no entusiasmo com as tecnologias dos aparelhos de computação substituindo professores e escolas. Sabe-se que embutido nesse entusiasmo está o interesse de corporações que pretendem lucrar com equipamentos e tecnologias específicas. Porém essa explicação não parece sensibilizar grandemente uma considerável parte das pessoas. Há uma tendência em discutir o assunto em nível pseudo-filosófico, desviando a identificação das verdadeiras intencionalidades para o relativismo de valores no raciocínio dos que estão efetivamente ausentes do poder político. Mais do que nunca o quadro delineado pela “querela” da “escola sem partido” anuncia a imensa necessidade de educação para crianças e jovens - para TODOS eles -, caso se pense como um educador ou professor do Estado. As intenções devem ser desenvolvidas, desveladas, desdobradas, decifradas. Apenas com o elemento educacional sistematizado torna-se possível a cultura e o entendimento das intenções nas relações sociais e a produção de poder real pela população. Em tempos comuns seria redundante e ingênuo constatar que não é possível estimular o desenvolvimento ou educar o corpo, as emoções, os pensamentos e o senso crítico de crianças e jovens sem professor, sem escola, e suas específicas intenções. As máquinas informacionais tais como os computadores, livros, interação virtual por correspondência seja em meio eletrônico ou papel, não são suficientes para educar ou estimular ninguém simplesmente porque são incompletos, inflexíveis e rígidos, comparados à presença condutora de outros seres humanos. É uma verdadeira loucura – no sentido de aberração grotesca - pensar a educação como “adaptação” das crianças e adolescentes às máquinas. Esse falso raciocínio sobre a educação promove apenas deformidades e não desenvolvimentos porque a máquina é sempre menor que o homem, por mais que pareça o contrário. As máquinas informacionais são suficientes para objetivos específicos de aquisição de saberes na esfera do mundo adulto, ou seja, na esfera do aperfeiçoamento de habilidades anteriormente adquiridas. Isso deveria ser de uma obviedade retumbante para os profissionais da educação. Sobre as teorias do medo e do dinheiro como alternativas explicativas a respeito da loucura geral da nação não precisamos falar aqui. Muito se tem falado e explicado sobre isso incessantemente por vários professores em todos os meios de comunicação disponíveis à nação. Uma pergunta que os professores deveriam se fazer é: por que a ignorância a respeito das relações sociais estabelecidas deve ser protegida. Assinalo insistentemente que não é possível aceitar a tese de que muitos professores têm medo do “comunismo”. É impossível que qualquer professor no Brasil, de boa fé, não saiba nada sobre essa palavra e ainda esteja no nível de compreensão de vítima de propaganda enganosa nesse assunto. É preciso estar ciente de que vincular o direito à percepção dos processos sociais à permissão de autoridades do Estado é uma formação conceitual espúria. É verdade que Florestan Fernandes descreve o ânimo crítico e o entusiasmo pelo "saber" por entre o povo nos inícios da revolução comunista em Cuba; é verdade que o artista chinês Ai Wei Wei, por esses dias atrás, num programa de televisão disse que o comunismo de Mao se preocupava em formar o senso crítico. Mas essa questão da consciência, da percepção, é facilmente sequestrada por qualquer sistema de domínio. Vincular um fenômeno a outro - vincular o direito à percepção a uma ideologia política específica - é um tipo de pensamento que está fora de qualquer paradigma de construção conceitual. Esse tipo de vinculação espúria apenas promove uma deterioração do campo da ordenação conceitual que se reflete em interesses políticos. Conceitos degenerados não "moldam", não constroem nada. São instrumentos/armas/venenos de forças dominadoras que se acham a salvo do destino humano. São as ações dos proprietários das gigantescas máquinas moendo ração para animais destituídos de inteligência humana. É importante, para professores, ter a capacidade de formar, em seus próprios entendimentos, imagens baseadas nas formas físicas reais das coisas, para poderem estimular nos alunos essa mesma capacidade. A simples percepção e contígua reflexão pessoal a partir das categorias mentais de tempo e espaço leva ao conhecimento de que há compartilhamento de espaço e de tempo. É obvio que a percepção de um "eu" como centro do conhecimento pode prescindir dos interesses de sua personalidade pelo tempo da reflexão, ou seja, é óbvia a capacidade do ser humano refletir, imaginar e pensar sobre assuntos mais amplos do que as preferências de sua personalidade. Pertencer a uma classe profissional já é uma ampliação de si. Se o professor não tem consciência disso, eis aqui um belo problema ético. Quais têm sido as pessoas que nos tem impedido de percorrermos as camadas de sentido a que dão direito nossas percepções, seja de signos, seja de sensações? Ou quais são as pessoas que têm ditado o que deve e o que não deve ser percebido? #Educação #Escolasempartido #LuamaSocio #Katawixieducação #KATAWIXI #Katawixi

  • Eles estavam necessariamente estupefactos

    Pois prossegue a conversa entre Walker Dante e Roselena. Walker Dante - É claro que fiquei tremendamente estupefacto ao perceber que as pessoas poderiam achar outra coisa do meu cristianismo, e também fiquei espantado de perceber cruamente o nível baixo e abjeto das pessoas à minha volta quanto à sabedoria moral de se viver em sociedade. Se Jesus, o Cristo, disse em primeiro lugar, amar a Deus sobre todas as coisas, isso significa reconhecer uma vontade maior, à qual eu reconheço que a minha está submetida, pois pela minha inteligência percebo que quero e consigo várias coisas e percebo que quero mas não consigo várias coisas e tem uma imensidade de coisas pelas quais não me interesso, mas que existem, e exercem influências, e fazem parte do mundo. Então nasce em mim a humildade. Ela é um traço psicológico da força, porque o humilde não se abate, segue em frente pelos desígnios de Deus. E Jesus, o Cristo, diz em segundo lugar, que deve-se amar ao próximo como a si mesmo. Ou seja, não fazer diferença entre a esfera do seus limites corporais auto-físicos e as percepções desse corpo, consideradas em uma distância sensitiva maior, englobando a transferência dos dados dos sentidos para as áreas da memória e imaginação. Em suma, isso que Jesus, o Cristo, ensina segundamente quer dizer que todos somos iguais, portanto somos efetivamente, realmente, um corpo unido. A humanidade é um corpo, bem como faz unidade com tudo o que esse corpo também percebe: as plantas, os animais, o ar, a terra, a água e o fogo. Enfim, a minha estupefacção é ter-me descoberto em meio a humanos que nem de longe tomaram a esses ensinamentos como princípios. Vivi entre cristãos falsos. Esses princípios implicam a transformação instantânea da sociedade em paraíso. Todos livres, exercendo a beleza de suas liberdades, de tal modo que, evidentemente, sendo assim a sociedade extremamente rica, bela e talentosa, não se faz necessário Estado, guerra, opressão, política, tal como ela se entende nessa terra de demônios. Fiquei realmente chocado enfim, por ter tanta gente à minha volta que em nome de uma lógica obscura relativiza o maniqueísmo. Sendo que justamente o que se anuncia é a evidência da redução das relações simbólicas entre os humanos a esse tal maniqueísmo, a tomada de partidos e posições antagônicas num fluxo insano subtraído aos princípios ditos cristãos. Roselena - Eu te acho uma pessoa descaradamente metafísica, até religiosa, embora pareça muito sensível. W.D. - Esse princípio cristão, dogma, é um núcleo duro do meu direcionamento mental, eu o percebo bem. Porém ele não parece assim. Justamente aqueles em quem esse núcleo não existe, ou é mole, parecem duros. São os brutos das armas. E eu, pareço mole. Roselena - Porém o argumento religioso nesse nível das questões políticas não deixa de ser uma posição fraca justamente porque ela não tem nada a ver com a tomada, manutenção ou perda de poder. No paradigma maquiavélico é certo que não se faz distinção racial entre os dominadores e dominados no sentido de que uns seriam humanos e outros não. Participar do poder político envolve uma diferenciação de nomes que distingue perfeitamente os poderosos, os donos do poder, do resto das pessoas. Não existe a possibilidade de haver um olhar de "semelhança" entre as partes dessa estrutura. Toda a situação em que nos encontramos agora, reunidos nas cidades do planeta dessa forma, não é simplesmente, naturalmente, o resultado do desenvolvimento da humanidade. Nossa "cultura" global, atual, no grosso, é apenas a consequência de projetos de poder sobre recursos materiais - ou seja, recursos da presença da vida no planeta Terra - se delineando nas formas de vida possível ao "homem" agora. Todas as "culturas" do planeta foram invadidas, atacadas e dominadas, e todos os remanescentes se espalham, tal como espirros, pelas cidades do globo. E essas culturas não foram pulverizadas em consequência de um embate de força entre seres de culturas diferentes porém equivalentes em força e poder. Os imigrantes, os pobres do planeta, não são vistos como pessoas, nem como animais, nem como plantas, ou como qualquer coisa digna valor. Eles são vistos, pelos poderosos e suas extensões trans-humanas, como obstáculos à existência de uma instância bastante misteriosa do ser dos poderosos. É por isso que não existe a mínima chance de conectar a visão cristã com a política. Uma coisa se opõe à outra. O cristianismo como princípio ético, e não simplesmente religioso, seria uma alternativa de ausência de política. É por isso que, evidentemente, está morto (desde antes dos anúncios de Nietzsche). O “cristianismo” definitivamente parece não ter nenhuma força real de penetração no mundo mental do "humano" de agora. Pois que também já não há nem mesmo essa coisa de "humano". Agora é trans, pós e... quiçá, super. Os filósofos não se cansam de analisar diferenças entre conceitos de massa, povo, cultura, etnia, grupo, nas teorias sobre as estruturas de poder dos Estados atuais - cada coisa dessa em seu próprio escopo de tradição conceitual – e por fim esse lado da balança política não é meramente pólo oposto de poder no "jogo" político, mas sim a complementaridade da dominação. A rigor não existe esse jogo para nós, que nos consideramos humanos, ou cristãos. Todos sabem que o Trump não vai simplesmente à guerra, não faz simplesmente a guerra, porque em hipótese alguma ele perderá alguma coisa. Trata-se apenas da atividade de uma forma de vida. Essa personalidade constitui-se apenas como uma função dos integrantes do clube que joga o xadrez dos destinos das riquezas materiais do planeta. Então aqui não há humanismo, ou humanidade. Quando a Simone Weil fala que a causa da guerra está no fato de que "cada homem, cada grupo humano sente-se com razão legítimo senhor e possuidor do universo, digo que essa posse é mal compreendida, por não se saber que o acesso a ela - na medida em que é possível ao homem na terra - passa, para cada um, por seu próprio corpo", quando ela fala isso... tal coisa só é possível a partir de uma filosofia humanista. Porém agora estamos na situação em que não há nem mesmo esse "corpo" de que a Simone fala. A condição da corporalidade, hoje, é efetivamente uma ausência. Mesmo os que já tiveram algum corpo o perderam, embora muitos estejam aparentemente vivos. Grande parte dos corpos hoje funciona como apêndices das máquinas de dominação. Esse é o fato real trans-humanista. Não se pode ter medo de contemplar isso. Aos ainda humanos é preciso haver a força dessa contemplação. W.D. - Justamente por isso o modo de raciocínio pela polaridade de visões a partir de um ponto de vista comparativo não é suficiente para determinar o juízo moral a respeito da questão da tomada de partido. O juízo moral ocorre contíguo à função da identidade do “eu”. Toda aquela teoria do amadurecimento da identidade básica da personalidade tem pertinência na elucidação do enigma moral envolvido na escolha de um modo de estado com os resultados dessas eleições dos políticos cargos executivos do Estado em 2018. O "eu" real só é possível com o humanismo... e isto já não ocorre... Roselena - Eu sei, você está querendo dizer que... o fato de estarmos estupefactos não tem a ver com o nosso próprio partidarismo, o qual passaria por uma eventual discordância superficial de ideias com outros eleitores. Discordância do tipo: desejar isso ou aquilo na esfera política. Eu sei que você, por exemplo, não quereria pensar dessa forma a respeito da preservação da natureza - essa seria apenas um objeto de mais uma ação específica. Você quer dizer que votou para que o país fosse mais aquecido economicamente, votou por mais gente trabalhando, mais gente produzindo e consumindo bens culturais de todo tipo. Você pensou que as pessoas soubessem o que era mais adequado para si próprias na continuidade da vida. Que a natureza ou a vida econômica não seriam conceitos simplesmente elimináveis, mas sim objetos culturais definidos, inalienáveis. Essa mentalidade é precisamente o que todos acham que seu voto produziu. Ocorre que grande parte dos votantes são pessoas que se preocupam em ser devotas a um patrão que elas acham que têm. São basicamente inconscientes dos objetos culturais que deveriam ser considerados bens inalienáveis. Não há a compreensão do Estado como um projeto de sociedade por parte da população votante. Todos sabemos que os produtores rurais, por exemplo, embora sejam "proprietários" de suas terras, quase nunca pensam com a própria cabeça. Estão sempre obedecendo a um patrão. Isso, no fim, é a única realidade percebida. Há uma ânsia em obedecer ao pastor, em fazer as coisas certas diante da aprovação de uma autoridade. Isso vem desde sempre, desde a Idade Média, e no Brasil vem desde que Brasil existe. Vê aquela cidade em Santa Catarina em que cerca de noventa por cento dos votantes escolheram um rato para presidente do Brasil simplesmente porque identificaram nele o papel da verdadeira autoridade. W.D. - É que me pareceu que um simbolismo dos mais abstratos e arcaicos como o maniqueísmo emergiu em cruas linhas solapando qualquer contexto de complexidade. De repente o cenário cultural empobreceu drasticamente, numa espécie de hecatombe desertificante. A questão da polarização partidária, embora esteja circunscrita estruturalmente a um modo específico da forma de pensamento tradicional, qual seja, a forma da antiga categoria da polaridade, conduz grosseiramente à consideração moral do ultrapassado "relativismo" como baliza da bondade porque apareceu justamente sob as alegorias rudemente contrastantes do maniqueísmo. Exemplo disso é a facilidade com que se passou a relativizar o fluxo visível de conteúdos associados à morte e à vida. Independentemente de quais imagens ilustram um crescimento e um decrescimento de um núcleo de interesse, nessa acepção, esse contraste é capaz de refletir um lado do partidarismo, que oscilará de imagem em imagem ao infinito dos seres. A alguns, a estagnação econômica do país leva à paralisação ou à extinção de alguns negócios e acaba beneficiando aquilo tudo que será deixado pelos negócios. Um aspecto da morte da imagem de uma das posições é vida para o outro ponto de vista. Sabe-se, através do simples senso comum que, deter-se na comparação de dois pontos de vista produz, no nível da moralidade relativista, uma paralisação do juízo como expressão da liberdade do "eu". A função de comparar não pode se imiscuir na função da vontade, que deve ser a expressão livre da energia para a tomada de uma posição, de um ponto de vista. Esse relativismo moral foi uma falácia horrorosa, nitidamente maniqueísta, abstrata e rasa nos argumentos consoladores diante do resultado das eleições. No plano do discurso, há o esforço dos analistas em exemplificar uma pretensa pluralidade de pontos de vista, mas isso não quer dizer que se está indicando as premissas de um jogo com "dois pontos de vista". Esse plano não é o estabelecimento das regras desse jogo. Roselena - Talvez a massa tenha um sentimento obscuro de sabedoria ao qual pensa estar servindo. Talvez se considere detentora de uma energia sábia que apenas será acionada quando o aprendizado nas escolas públicas limitar-se a conhecimentos ditos úteis ou técnicos aprendidos à distância, pelas emanações esotéricas dos senhores ocultos do mundo. Parece que a esperança num alto comando misterioso, à distância, como quer a ideologia da "escola sem partido" seja a solução cultural para equipar a mente de um bom empregado das lojas do comércio - para isso basta aritmética e um português elementar -, ou um pequeno operário de uma fabriqueta qualquer. Não se cogita na existência real de todas as formas sociais que a essa força oculta a sabedoria servil alimenta, no que ela consiste em sua efetividade. Digo "não se cogita" em nível do povo "inocente". Obviamente há toda uma considerável e respeitável literatura esclarecida a respeito de todas as estruturas e meandros de poder, totalmente disponível a quem quer que seja que não queira ser inocente. W.D. - Torno-me incessantemente a me estarrecer. Nos transtornos desse incrível mundo chama-me a atenção a questão invertida da identificação do conhecimento justamente com a falta de liberdade. Segundo a opinião da massa, imposta por alguns poderosos propagandeadores, é o conhecimento, o aprendizado, que leva à opressão do dono da caixa de abelhas e não o contrário. O conhecimento de um professor, por exemplo, é desqualificado como algo útil para o convívio social, e passa-se a seguir o comando político de servidão material a segmentos delimitados por aquilo que é identificado como governo. O pavor à independência, liberdade, florescimento das riquezas no nível da vida próxima, ou seja, da vida do corpo, das pessoas à volta, da natureza à volta, ou o nível de sensação de insegurança nessa esfera, ou seja, o baixíssimo nível de percepção física e sensibilidade psicológica, esse nível baixo da massa, é que me tem chocado. Dá-me a contraditória impressão de que a cultura, aparentemente abundantemente dinamizada pela informatização tem sido insuficiente para os próprios humanos. É por isso que estamos estupefactos. A Estamira, uma personalidade vivente de um lixão, personagem de um filme famoso, muitíssimo inteligente, aponta para todos os "trocadillos" que vão invadindo seu espaço mental. Ela explica bem as caraminholas contempladas pelos seres que habitam o fim do mundo das formas, o lixão. Ela ilustra tão bem esse momento. Roselena – Ela ilustra… mas sempre dentro do confinamento inútil da expressão da sua personalidade. A sua exemplificação já configura a característica dessa nossa era da autoconfiança que se forja em nível de representação espetacular inócua. Essa era inútil de celulares, fotos, audios e filmes. Uma auto-confiança que aparenta a legitimidade de uma coragem que se desnuda transpassa a técnica de representação das tais práticas estéticas e floresce igualmente na expressão do ignorante e da genuína autoridade. O apagamento das diferenças, essa "transparência", definitivamente nos parece ser algo do "mal", a considerar essa sua abstração maniqueísta proposta há 30 anos já pelo Baudrillard. Claro, perceber isso nitidamente não deixa de ser chocante. A autoridade, o autor da representação, a intencionalidade estética, deveria surgir, tradicionalmente, de um sentido de auto-conhecimento e consciência da influência que um humano exerce sobre outro. A autoridade, com tudo o que isso implica moralmente, envolve o sentido de responsabilidade pelo destino de outras pessoas, ou de um espaço, ou a consecução de um projeto, que faz parte de um universo de ideias. Ideias sobre o que é o mundo, a sociedade, as pessoas, etc., no sentido político de saber determinar o que é melhor e o que é pior. A régua moral está intimamente ligada ao conhecimento, todos os filósofos sabem disso, e as tentativas para separar essas duas coisas são infrutíferas. Por isso é uma violência, uma afronta, uma calamidade, a população - que deve ser ensinada -, querer ela mesma ensinar aos professores, ou os pacientes quererem ensinar ao médico. A desmoralização de todos os saberes é um dos pontos abordados pelos explicadores do fascismo e da barbárie como focos de sentido de desenvolvimentos da organização social. Os teóricos que já vêem a humanidade como uma caixa de abelhas, certamente explicam a inutilidade do conhecimento, no nível comum de existência, e a esperteza e sentido lógico que existem na inteligência bárbara da conservação de um modo de existência que paradoxalmente cultiva a morte da humanidade. Porém a isso adiciona-se as técnicas de reprodução estética disponíveis às massas, que as usufruem espontaneamente, entusiasticamente, em seu próprio nível, reproduzindo na verdade a mesma irresponsabilidade de quaisquer meios de comunicação de massa desde o século 19. Essa questão da responsabilidade, da autoria nunca passou de possibilidade teórica. Ocorre no máximo em áreas poéticas, as quais não contam para nada em nível de efetividade educativa ou prática na vida social. W.D. - Trata-se de repente de uma nação de malvados, implicantes e intrometidos, sem respeito à dignidade alheia por puro parvo egoísmo. Porque há egoísmos menos parvos, menos servis. Roselena - Você está emocionalmente bastante abalado. Mas como também estou, concordo: uma pessoa tola nessas questões políticas é tomada como esperta, caso seja bem-sucedida financeiramente dentro dos padrões pequeno-burgueses. É tomada por esperta apenas por fazer parte de um clube de falastrões que não se importam verdadeiramente com política. É gente que se acha importante em seu pequeno domínio, o qual é mais do que suficiente para o orgulho de sua pequena existência. Essa gente não se sente ameaçada pela sociedade e nem pelo Estado em suas condições normais. W.D. - Mas essas pessoas, aparentemente, poderiam ser portadoras de um bom senso extremamente acessível. Por exemplo, eternamente se associa a questão do simples respeito a um espaço necessário à existência de um corpo, com uma questão política, quando isso poderia não ser o caso. Na esfera das propriedades particulares, o respeito comum mostra que a necessidade da maioria dos seres humanos quanto ao seu próprio espaço é suficientemente regulada para haver espaço para todos os 8 bilhões de humanos no planeta terra. A Simone Weil está certa quanto à motivação íntima, primitiva, do povo não amadurecido, como início psicológico da guerra. Mas essa motivação é totalmente insuficiente e inadequada para a efetivação de uma mentalidade elementar de respeito. É totalmente possível, ao humano, não invadir o espaço do outro, e viver bem. Os políticos, donos do Estado - ou seja, da unidade nacional em nome do manuseio dos recursos retirados dos impostos à população - não têm o poder e não almejam o poder de resolver querelas de proprietários particulares. O governo tem as suas próprias propriedades. Qualquer outra pode ser arrebatada pelo governo, já que a única qualidade reconhecível do governo é realmente a violência. Esse assunto é problematizado ao infinito pelas Ciências Sociais e, por fim, a violência e a cultura de morte acabam sendo naturalizadas tanto pelo senso comum quanto pelas estruturas explicativas das ciências. Roselena – Você e seu "cristianismo"... então concluímos que, como a maioria do povo brasileiro decidiu que o Estado é propriedade particular das pessoas escolhidas por ele, nunca saberemos dos meandros obscuros das guerras comerciais que ocorrem entre os grupos dos ricos proprietários desse Brasil varonil. Se esses grupos vão deixar as plantas crescerem, as abelhas existirem, ou se vão intensificar a desertificação, e por quais meios isso será realizado, permanece um desses hermetismos do poder. Tem uma galera canibal que espera se esbaldar com rios de sangue. Meu mestre já havia falado sobre o recrudescimento do fascínio pelo horrível através dos novos tempos… há cem anos. #Filosofia #Filosofiabrasileira #LuamaSocio #FilosofiaKatawixi #KATAWIXI #Katawixi

  • A vida de Tomás que morreu com a alma à flor da pele

    De noite Tomás acordava sobressaltado em sua cama das muitas voltas que dava em si mesmo enquanto dormia, isso quando realmente dormia e não ficava a madrugar os fantasmas da noite, confabulando histórias dos outros e de si para consigo mesmo. Durante o dia, devaneava entre as coisas e pessoas, entretempos e contratempos: parava qualquer atividade e olhava ao derredor da existência, se perguntando pelos sentidos de cada pequeno gesto, cada pequena vivência até ao ponto de desfalecer os sentidos e abrir os olhos poéticos para os cachorros cheirando o lixo, pombas pousadas nos fios elétricos, senhoras conversando nas portas das casas. A cada dia, Tomás contraía mais alguma coisa da vida: doía-lhe o peito em nostalgias das coisas inexistentes, dava-lhe a febre das palavras inauditas e chorava pelo irreversível. Foi se consultar, "doutor, diz-me que coisa é essa que me sacode inteiro, estrebucha como um peixe no anzol fora da água, esse som aqui dentro, que mais parece um pássaro engaiolado". O doutor auscultou o seu peito, examinou os olhos dele, tirou a temperatura, mediu o peso, ouviu suas histórias e convicto lhe sentenciou "o senhor tem alma e sofre de querências." "É grave doutor?" "Irreversível seu Tomás, viverás para sempre com isso até que suspire o último ar, somente posso dar-te o paliativo da dormência, para diminuir os sacolejos e olhares das coisas." No entanto, logo depois que Tomás saiu do consultório, viu uma criança chorando a perda da vida que não teria, aconchegou-se a ela e contou fábulas da sua vila e acarinhou o coração da pequena que lhe sorriu e se aninhou nos braços mais suavemente. Decidiu que morreria de calmarias ainda que tivesse os sobressaltos constantes das tardes lúgubres e das belezas que atingiam o peito causando tumultos na inconstante alma. Ao cabo das noites, abriu-se um buraco negro nesse mesmo peito que a tudo sugava para a sua alma, que dilatava aos olhos fantasmagóricos de suas companhias, às vezes engasgava de tanta coisa que lhe ia por dentro, e os outros achavam que era quase translúcido e grave como um profeta. Por fim, um dia a alma se despedaçou toda e Tomás suspirou o último ar de uma noite fria de inverno, nos braços sepulcrais das companhias envoltos nas belezas das coisas que vira e sentira em sua vida. Thiago da Silva Prada, nascido em 1985 na cidade de São Paulo, a Grande Esfinge devoradora de Homens. Tem uma queda pelo Romantismo, se debate com os monstros da Razão, mas cumprimenta os que estão debaixo da cama. Formado em Psicologia, com pós em Filosofia Contemporânea e Mestrado e Doutorando em Ciências Sociais, apaixonado por Literatura e Cinema, é professor, palestrante, escreve por necessidade existencial e é leitor por ofício de vida. Publicou dois livros de poesias, “Os Céus de Van Gogh” e “Da Noite Sem Fim – poéticas sobre tristezas e assombros” pela Caligo Editora e o livro de mini contos "As Feridas do Cotidiano & Algumas Belezas Frágeis", através da Editora Penalux, do qual o conto acima faz parte. Compre o livro pelo site da editora Penalux: www.editorapenalux.com.br/autor/MzQz/Thiago_Prada Saiba mais sobre Thiago Prada: Linkedin: br.linkedin.com/in/thiago-prada-3920863b​ Lattes: lattes.cnpq.br/0379461783029607 #ThiagoPrada #ThiagodaSilvaPrada #AvidadeTomásquemorreucomaalmaàflordape #Literatura #Literaturabrasileira #Contobrasileiro #Contobrasileirocontemporâneo #Minicontobrasileiro #EditoraPenalux #Asferidasdocotidianoealgumasbelezasfrágeis #KATAWIXI #KatawixiLiteratura #Katawixi

  • Das bibliotecas e livros e seus efeitos anímicos

    As bibliotecas das pessoas e dos escritores permitem deduzir afinidades e gostos, influências e inspirações; todavia, a menos que haja anotações e referências, não saberemos bem o que foi lido e apreciado, repelido ou assimilado. É rara a casa que não tenha a sua estante de livros, poucas as pessoas que não recorrem aos livros para aprender, comungar ou evadirem-se. E se houve escritores que tiveram poucos livros, ou que leram com dificuldade em bibliotecas públicas ou de outros, muitos há que se viram rodeados de boas companhias, podendo navegar em diferentes cursos psico-energéticos e atingir certas intuições, compreensões e visões novas, originais, que acabaram por se incorporar nas suas almas e escritos e eventualmente em quem os ler… Assim, cada casa, cada pessoa deveria ter uma razoável biblioteca para a evolução pessoal sua e da Humanidade, ainda que, nos tempos modernos, os computadores e a internet sejam por vários modos, nomeadamente por possuírem já descarregados ou reproduzidos milhares de livros, excelentes bibliotecas globais, ainda que virtuais e logo com certas limitações… Em verdade, os livros, com todas as suas sutis particularidades, desde os autores aos assuntos, das datações às dedicatórias, das encadernações e ilustrações às anotações ou marginália, do tato ao cheiro do papel, são preciosos companheiros para quem quer aprofundar os mistérios e maravilhas do universo e da humanidade e, particularmente, para os estudantes, pensadores, escritores, historiadores, investigadores, criadores, comunicadores. Todos nós sabemos quanto podemos receber psico-somaticamente ao manusear e ler com atenção, gratidão e amor qualquer obra que a sabedoria dos séculos nos lega, ou nos permite aceder, e com ela viajar no tempo e nos mundos psico-espirituais nos quais tantas riquezas há para suprir as necessidades da Humanidade, ainda tão mergulhada na ignorância, na violência, no egoísmo, no sofrimento, ou manipulada para tal por forças anti-culturais, anti-libertadoras... Podemos dizer então que cada livraria ou biblioteca, ou livro é uma mezinha, um medicamento para harmonizar e curar, um fermento de transformações, uma semente de novas manifestações luminosas e benéficas, uma defesa face à invasão manipulante e massificante que nos rodeia... O livro no seu suporte de papel, pergaminho ou papiro, pela sua durabilidade e pela sua proximidade e intimidade, será sempre então um dos melhores instrumentos de harmonização e elevação humana e como tal o presente ideal que as pessoas oferecem e acolhem, lêem e anotam, criticam ou amam. Quando entramos na casa de alguém muitas vezes a nossa primeira impulsão é ver as obras contidas nas estantes, o que essa pessoa leu ou mostra, e a partir até de uma mera vista de olhos (se for de conhecedores) poderemos intuir algumas das características das pessoas que os juntaram, leram, possuíram, amaram... Constituirmos a nossa própria biblioteca, e saber ordená-la, e ter mesmo em destaque ou mais fácil acesso as obras que mais nos tocam ou com as quais mais trabalhamos, ou os autores com quem mais sintonizamos, é então importante, construindo-se assim ilhas valiosas coesas no mundo sutil da Grande Biblioteca Mundial, às quais podemos até convidar a desembarcarem pessoas amigas a fim de desfrutarem da sabedoria e dos prazeres que tais fontes vivas nos transmitem. Todos sabemos como algumas bibliotecas se transformaram em quase ilhas utópicas, até no sentido que pela sua singularidade, beleza e raridade não podem ser facilmente acedidas, reforçando-se assim a sua aura, a que hoje as imagens livres virtuais na Web ainda mais realçam, ainda que desvendando-a incompletamente, sem a verdadeira energia do local e dos livros palpitantes ao vivo... A Biblioteca de Mafra, a da Universidade de Coimbra, a da Academia de Ciências de Lisboa, a Vaticana, a de Paris, a do Escorial, e outras famosas, serão algumas das mais notáveis. Mas não devemos menosprezar as apenas nascidas da bibliofilia de alguma alma mais entusiasta, outras nascidas de legados post-mortem, destacando-se nestas as que tendo pertencido a escritores ou investigadores, e não foram dispersas em leilões ou passadas a diferentes instituições, conservam a sua autonomia, diríamos mesmo a sua individualidade, especialmente quando se mantêm no local onde sempre estiveram, rodeadas da memória sutil dos momentos em que as mãos do escritor ou dos seus amigos manusearam os livros, dialogando-o com eles e de mais vida e alegria os inundando... Não há ainda máquinas digitais que consigam medir a intensidade vibratória que cada livro de uma biblioteca ganhou pela passagem nas mãos, pela leitura, pelas anotações, pelas trocas psico-energéticas desencadeadas a partir do tabuleiro de xadrez da impressão invertido na cabeça das pessoas e sentido e compreendido na alma em compreensões, intensificações e iluminações… Alguns de nós, todavia, já terão certamente feito uma contemplação por momentos de uma estante a certa distância antes de se aproximarem e acolherem o livro que lhes pareceu mais vibrar ou os chamar. Certamente quando temos seis ou sete prateleiras à nossa frente deveremos escolher uma e depois até ir passando os olhos pelas lombada dos livros vendo-os a vibrarem e tentando discernir qual é o mais palpitante e tremeluzente que se quer dar às nossas mãos, para depois identificarmos quem o escreveu ou mesmo o anotou e quer diálogos, continuadores, e logo mais luz e amor no planeta. Talvez o melhor ainda seja depois dessa passagem ou entrada dos olhos-mente num um-a-um, ficarmos numa percepção desfocada de todos e abrir mais o coração e tentar sentir qual é o que mais nos envia os seus raios, qual é o que mais nos impacta invisivelmente e nos quer fazê-lo arrancar do seu pouso à sombra, quem sabe se já longo, e trazê-lo a mais luz solar e amorosa que o ambiente e os nossos olhos, almas e mãos nele introduzem, deles acolhendo tantas potencialidades "suaves, deliciosas, exultantes", três palavras que eu retiro agora da obra que me atraiu de uma estante, as Anotações críticas ao Novo Testamento síriaco, por Egidio Gutbirii, de 1706, impressas em Hamburgo. Mas vendo melhor o livro, e temos um belo exemplo da riqueza dos livros, da sua capacidade de serem espelhos do passado para o futuro, dou-me conta que a obra tem outro frontispício, começando portanto tanto no fim como no princípio do volume, no lado final, se o manusearmos da esquerda para a direita, surgindo o começo do Novo Testamento em síriaco e latim. Os livros são então boas novas, trazendo sabedoria que se acrescenta a nossa, e em certos casos, os mais frequentes, os livros sendo já escritos sobre outros livros, introduzem-nos numa cadeia de elos de sabedoria quase infinita, adentrando-nos no vasto campo bibliográfico mundial. E, assim, sobre a informação e ambiente passado que alguém num presente trabalhou, recriou, descobriu e passou ao futuro, nós agora, os leitores que de novo o retomamos, reatualizamo-lo de um modo ou outro mais luminoso neste presente e para um futuro bastante perene… E tal circulação de saber, energia e graça realiza-se seja pelo que sentimos, anotamos, mencionamos, ou mesmo aprofundaremos e escreveremos já posteriormente e independentemente, cada livro do passado sendo como uma semente lançada de uma planta madura e estática mas que se multiplica e vai renascer em outros espaçoa e tempos e de novo dar cores e perfumes, ideias e impulsões. Realcemos as palavras e estados de alma recolhidos há pouco nas três palavras, a suavidade, a elevação e a delícia. Possam os livros intensificar tais efeitos em nós e gerar frutos de vida eterna, ou seja, que iluminem mais as pessoas, as façam reintegrar-se harmoniosamente neste planeta, sistema solar e humanidade em história e evolução, de modo a que levemos o que se leu e amou em nós no corpo espiritual ou de glória, esse com o qual avançamos mais ou menos conscientes, aqui e aquém, rumo a melhores comunhões seja com os outros seja com Divindade, na Unidade amorosa, suave, deliciosa, elevante. Pedro Teixeira da Mota é escritor e mora em Lisboa Blog: pedroteixeiradamota.blogspot.com.br/ Facebook: facebook.com/pedro.teixeiradamota.5 Youtube: youtube.com/channel/UCTQwHXL9Ltw56J_hmNLLMeA #PedroTeixeiradaMota #Culturas #Culturadolivro #Livros #Aimportânciadoslivros #Bibliotecas #Culturaportuguesa #KATAWIXI #Katawixi

  • Mandalas da meia-noite

    As mandalas são essas belíssimas representações do centro do eu humano em processo de irradiação cósmica, expansão de formas, expressões em eclosão ao infinito do círculo. Há sete anos, em dias determinados, sempre à meia-noite, o fotógrafo Walter Antunes realiza uma mandala. A imagem é produzida com a câmera do celular e é imediatamente comunicada ao mundo pelo Instagram do fotógrafo. Muitas dessas mandalas surgem de um ponto secreto e escuro. Na maior parte das fotos mandálicas o fundo é preto. Elas fazem parte de um trabalho mais amplo incluindo outras formas, com título emprestado de uma música de Jimmi Hendrix: "Burning of the midnight lamp". A combustão da lâmpada solitária da canção é metaforizada pela luz cristalizada nas linhas e cores místicas e universais das mandalas. Embora produzida na solidão, como sugere a música, essa fotografia dirige-se instantaneamente ao mundo, simplesmente porque exprime a natureza da vida como arte e, consequentemente, beleza compartilhada. Essas formas circulares e artisticamente ramificadas estão relacionadas às antigas sabedorias orientais como representação da psique compreendida como totalidade cósmica. Com a realização desses desenhos de luz, o fotógrafo capta e realiza intuitivamente a vocação íntima de sua alma. Não por acaso as mandalas de Walter Antunes são expandidas do escuro para o claro no limiar da noite para o dia, como uma mensagem do oriente oculto ao ocidente materializado. Em uma análise do antiquíssimo texto chinês alquímico “O segredo da flor de ouro” - traduzido e interpretado para o ocidente por Richard Wilhelm – C.G. Jung explica: “De acordo com a concepção oriental, o símbolo mandálico não é apenas expressão, mas também atuação. Ele atua sobre seu próprio autor (…). É a participação de uma área sagrada interior, que é a origem e a meta da alma. É ela que contém a unidade de vida e consciência, anteriormente possuída, depois perdida, e de novo reencontrada”. Por trás de qualquer forma, qualquer luz, há o ponto extremo, centro do círculo, misterioso nada, a partir do qual tudo explode. E para cada formação pode haver uma explicação. Esse ponto surgiu da flor, aquele outro da fruta, alguns vieram de um teto. O ponto é "depois", tecnicamente. Ou seja, o ponto fotográfico referencial no sentido físico, foi uma coisa. E o ponto humano, localizado no artista, eclode na imagem, a qual é sua atualização, e esse ponto é "antes". Nós, olhando a imagem, somos "agora". É por isso que o desconhecido, o mistério no centro da mandala, é também conhecido, e se irradia. “O movimento circular também tem o significado moral da vivificação de todas as forças luminosas e obscuras da natureza humana, arrastando com elas todos os pares de opostos psicológicos, quaisquer que sejam”, explica C.G. Jung. A palavra mandala tem origem sânscrita e contém em seu significado primitivo os conceitos de “essência” e de “conter” ou “ter”, e é comumente traduzida por “círculo”, “circunferência”, “totalidade”, “plenitude”. Walter Antunes é fotógrafo há 20 anos, dedicando-se principalmente à fotografia artística. Ao longo de sua carreira realizou mais de 40 exposições individuais com temas relacionados tanto ao mundo das artes quanto a assuntos relacionados à ecologia, cultura popular e comportamento. www.instagram.com/walterantunes/?hl=pt-br www.walterantunes.com/ #WalterAntunes #Fotografia #Fotografiabrasileira #Mandalas #Mandalasdameianoite #LuamaSocio #KATAWIXI #Katawixifotografia #Katawixi

  • Ritos de passagem segundo Laz Camargo

    Marco Fronteiriço Cicatrizes são ritos de passagem, marcas como portais, divisórias de realidades paralelas, testemunhas do tempo e da transcendência do tempo. La Camargo diz: “O processo de cicatrização é uma reparação tecidual que substitui o tecido lesado por um tecido novo. A reparação envolve a regeneração de células, a formação de tecido de granulação e a reconstrução do tecido. Esses eventos não acontecem isoladamente, e sim, sobrepondo e se completando. Essa cicatriz que se transforma em uma memória conta uma história, uma origem e seus desdobramentos. Cortes, cirurgias, envelhecimento, infância, ancestralidade, maternidade, puberdade, queimaduras, doenças, afetos... tudo passa pelo corpo.” São imagens sobre essas ideias e coisas que vemos na arte de Laz Camargo, reunida na série “Cicatrizes”. Sorte ou Azar Na elaboração de sua obra a artista reúne uma multiplicidade de vozes e acontecimentos cicatrizantes: “Ouço as vivências de outras pessoas sobre ritos de passagem. A arte deve proporcionar reflexão”. Evidenciando materialmente, artisticamente, as fronteiras, é como se nessa arte houvesse ao mesmo tempo o escancaramento da cicatriz como uma mera aparência da multiplicidade avizinhada na organização do mundo. A linha cicatrizada entre os seios, o espaço entre os pulmões, a divisão dos saberes entre arte e educação: tudo isso é evidenciado para mostrar que os dois lados da fronteira existem numa inerente importância de plenitude e não estão realmente separados. A cicatriz é a estética. Ritos de Passagem O tema dessa arte é universal e antigo, mas como tudo o que é importante, deve ser ressignificado continuamente. Aquilo que é sofrido e ultrapassado, aprendido e marcado numa trajetória de vida, nem sempre é devidamente conscientizado. Numa cultura em que os ritos de passagem tradicionais – tais como a passagem da infância para a vida adulta - não são existentes nitidamente, um trabalho como o de Laz cumpre uma função propulsora de aprendizagens nesse nível. “Meu trabalho tem um fundo didático importante no sentido da humanização da arte contemporânea. A troca pedagógica alimenta reflexões. A educação comum não acompanha os movimentos artísticos. Sinto que é necessária uma orientação ou ativação do olhar do público. É preciso sempre tocar no ponto que transcende as convenções”. Cicatrizes da Infância Quelóide Passagens e Encruzilhadas (detalhe) As peças elaboradas na série “Cicatrizes” são descontínuas, como a vida é descontínua. Cada peça completa o conceito do tema como uma face do corpo de um cristal sendo lapidado. A ideia de linearidade, que geralmente se espera nas construções da arte convencional, é substituída por uma complementação poliédrica. O centro do trabalho é o próprio corpo concreto da artista, que por sua vez é composto de vozes múltiplas. A natureza concreta e poliédrica, no entanto, se espalha na pluralidade de materiais e diversidade de composições. “Sou fascinada pelos processos. Uma reflexão me incomoda e inicio processos. As persistências afloram. Não fico experimentando muito. Os materiais vão surgindo, a obra vai adquirindo vida. Gosto de passear pelos afetos, que são importantes porque o processo gera respostas a eles.” Pergaminhos Contemporâneos Descontinuidade Laz Camargo nasceu em Guiratinga, Mato Grosso. Atualmente vive e trabalha entre Guiratinga e São Paulo. É graduada em Artes Visuais pela Faculdade Paulista de Artes. Expôs “Cicatrizes” no SESC Rondonópolis entre Abril e Maio de 2018. Participou das exposições: “Arte-Educação: Tradição e Ruptura” na galeria Mario Schenberg na Funarte-SP. “R I Z O M A Mostra nômada Multimídia Internacional de Arte Contemporânea” na Secretaria de Cultura em Pelotas – RS. “Mulheres Visíveis” no Espaço Cultural Rogério Telles Scaglione – SP. “Mostra Sem Censura” em Florianópolis-SC em 2017. Em 2016 participou como artista da Residência Artística e Ateliês Educativos pelo Ministério da Cultura – SP. Atualmente trabalha como artista-educadora no Coletivo Amuela. Links: www.instagram.com/lazcamargo/ www.facebook.com/lazcamargo #LazCamargo #Artebrasileira #Artecontemporânea #Artebrasileiracontemporânea #Katawixi #Katawixiarte #LuamaSocio #Cicatrizes #Artesplásticas #Arteeducação #Artesvisuais

  • O Corpo da atualidade na Arteterapia

    “Neste instante, esteja você onde estiver, há uma casa com o seu nome. Você é o único proprietário, mas faz tempo que perdeu as chaves. Por isso fica de fora, só vendo a fachada. Não chega a morar nela. Essa casa, teto que abriga suas mais recônditas e reprimidas lembranças, é o seu corpo.” Essas palavras de Thérèse Bertherat, criadora da Antiginástica ®, citadas em seu livro de 1976, O Corpo Tem Suas Razões, mostram-se, ainda, surpreendentemente atuais e, até, revolucionárias. Nessa era de celulares e de redes sociais, o indivíduo encontra-se cada vez mais “conectado” com o Mundo e cada vez menos, consigo mesmo – espelho de uma sociedade que busca transformar seus cidadãos em meros consumidores alienados de seus verdadeiros desejos e anseios. E tal sociedade trata o corpo como um objeto ou, como diz Thérèse, como um “corpo-carne”, algo a ser domesticado. Em Mulheres que Correm com os Lobos, Clarissa Pinkola Estés nos diz: “Está errada a imagem vigente na nossa cultura do corpo exclusivamente como escultura. O corpo não é de mármore. Não é essa a sua finalidade. A sua finalidade é a de proteger, conter, apoiar e atiçar o espírito e a alma em seu interior, a de ser um repositório para as recordações, a de nos encher de sensações – ou seja, o supremo alimento da psique (...).” (ESTÉS, 1994) O sujeito distanciado de si mesmo é o que vive o corpo “separado” da mente. Mas essa separação, na verdade, não existe. É Jung quem nos lembra que: “A distinção entre mente e corpo é uma dicotomia artificial, um ato de discriminação baseado muito mais na peculiaridade de cognição intelectual que na natureza das coisas.” E Thérèse Bertherat concorda: "Nosso corpo somos nós. É nossa única realidade perceptível. Não se opõe à nossa inteligência, sentimentos, alma. Ele os inclui e dá-lhes abrigo. Por isso tomar consciência do próprio corpo é ter acesso ao ser inteiro... pois corpo e espírito, psíquico e físico, e até força e fraqueza, representam não a dualidade do ser, mas sua unidade." (BERTHERAT, 1986). Tratar o corpo como um objeto de adequação social a uma imagem imposta externamente, desconhecê-lo, leva-nos não somente à frustração, mas também a um vazio, a uma insatisfação interna, a um perder-se de si mesmo e a um consequente adoecimento do indivíduo. É preciso, portanto, ouvir o corpo, senti-lo, respeitá-lo, liberá-lo. Torná-lo autônomo. Conhecer o próprio corpo é ter autonomia. E esta tarefa também pertence à Arteterapia. Em Grupos em Arteterapia, Angela Philippini explica que o fluir e o pulsar naturais do corpo são comunicações vitais do caminhar da energia psíquica, bloqueados frequentemente pela vida cotidiana. Assim, o arteterapeuta deve procurar formas para liberar este fluir e este pulsar, através de, por exemplo, exercícios de consciência corporal, para a expressão da criatividade do indivíduo. “O processo criativo, quando ativado de maneira adequada, restaura, resgata, recupera, reorganiza, redireciona e libera o fluxo de energia psíquica em prol do bem-estar e da expressividade de cada indivíduo.” E manter-se criativo é fundamental para a autoestima, a saúde, a vitalidade e a inteireza psíquica (PHILIPPINI, 2011): "Estar bem consigo mesmo equivale a estar bem com o próprio corpo. Tal como na expressão francesa - être bien dans sa peau(literalmente, estar bem na sua pele, logo, no corpo inteiro) - que significa estar à vontade, sentir-se à vontade consigo mesmo. Esse é o corpo que se quer: aquele no qual estamos confortáveis e com o qual podemos nos relacionar livremente com os outros. Um corpo autônomo, dono de si, da sua pele, que nos leva aonde precisamos ir e para onde nos conduz nosso verdadeiro desejo. E esse é igualmente o corpo que o trabalho de Arteterapia pode ajudar a alcançar." (PHILIPPINI, 2011). No dia 25 de agosto passado, como parte do “Ciclo Conhecer Cultura Holística”, no espaço Riserva Zen, no Rio de Janeiro, apresentei o workshop “O corpo na Arte (terapia)”, no qual expus algumas das ideias acima abordadas e propus uma vivência de corpo e arte. O trabalho corporal teve dois momentos: com os participantes deitados no chão e depois em pé, num círculo. Deitados, pedi-lhes que observassem os pontos de apoio do corpo no chão, a respiração, o movimento das costelas e a localização do diafragma. Com movimentos simples, os músculos das costelas e do diafragma foram alongados, para uma respiração mais livre e completa. Depois, em pé, os participantes levaram sua atenção para os seus pés, o apoio destes no chão, o movimento do corpo a partir dos pés como ponto central de apoio, imaginando seu corpo como o de uma árvore que balança com o vento. Esse foi o momento de sensibilização. Após o trabalho corporal, sentados, os participantes fizeram uma breve imaginação de seu corpo-árvore para, enfim, desenhar esta árvore, com materiais de colorir (giz de cera, lápis de cor, lápis comum, caneta, canetinha hidrocor, cola glitter colorida) em papel A3 ou A4. Depois, falaram sobre sua árvore e sua vivência. Alguns relataram surpresa com os movimentos novos e inusitados que haviam sido pedidos e como tinha sido agradável mexer no corpo desta maneira diferente. Disseram que haviam conseguido respirar plenamente, como nunca antes. Outros falaram da sensação de equilíbrio e movimento sentidos no trabalho corporal. Outros remeteram sua árvore à infância e suas lembranças peculiares. Muitos perceberam pontos em comum da árvore desenhada com o seu corpo, sua vida no momento atual e/ou com o trabalho corporal que haviam feito. Todas as árvores tinham vida, movimento, eixo, equilíbrio e refletiam um corpo que havia podido experimentar essas e outras sensações durante a vivência corporal e artística proposta. Trabalhar o corpo e propor uma atividade artística logo em seguida amplia as possibilidades de expressão do indivíduo: sensações, dores, lembranças, sentimentos que surgem no trabalho com o corpo ganham espaço para se manifestar na expressão artística. E a proposta de liberação da respiração e de músculos que frequentemente estão contraídos ou mesmo retraídos permite que conteúdos inconscientes venham à tona e tenham oportunidade para se concretizar através da arte, para que, assim, possam ser trabalhados terapeuticamente, levando o indivíduo a um maior autoconhecimento. Referências Bibliográficas BERTHERAT, Thérèse .O Corpo Tem Suas Razões – Antiginástica e Consciência de Si. São Paulo: Martins Fontes, 1986. ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que Correm com os Lobos – Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. JUNG, C. G. Fundamentos da Psicologia Analítica , Volume XII. Rio de Janeiro: Vozes, 2004 PHILIPPINI, Angela. Grupos em Arteterapia – Redes para Colorir Vidas. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2011. Sobre a autora: Isabel Cristina Pinto é arteterapeuta (Curso de Arteterapia Danielle Bittencourt); formada em Antiginástica ®Thérèse Bertherat , grupo BR1; formada em Jornalismo (ECO – UFRJ); pós-graduada em Língua Portuguesa (UERJ) e em Língua Inglesa (PUC/RJ); possui Complementação Pedagógica em Língua Inglesa (PUC/RJ); professora de Inglês e Francês e graduanda em Psicologia (Universidade Veiga de Almeida/Barra da Tijuca). Contato: bel.antigin@gmail.com Leia mais a respeito do assunto em ; flaviahargreaves.blogspot.com/2018/09/o-corpo-da-atualidade-na-arteterapia.html #IsabelCristinaPinto #Arteterapia #Terapiacorporal #Corpo #Educação #ThéréseBertherat #Katawixi

  • Sobre a Arte e a consciência de Ser

    As práticas artísticas são essencialmente educativas porque constituem cultivo da expansão de habilidades do ser a partir do próprio corpo engajado numa vontade - cumprida ou rejeitada -, e consequente capacidade intelectual organizando a elaboração do projeto artístico. Pelas retomadas, interrupções, distâncias e intenções renovadas, típicas de qualquer fazer artístico, estende-se a cultura de sensações e fazeres. Um mundo se forma, se sustenta e se defende. Na educação de crianças e jovens trata-se do estabelecimento de uma espécie de reino, em que a identidade do eu estabelece-se como um ponto de partida porque tem sido ponto de chegada em suas obras. Os exercícios estéticos são propícios ao jogo identitário na medida em que propõem as práticas e conceitos de repetição e diferença no escopo do método. Nas atividades artísticas evidencia-a o aprendizado a respeito da própria percepção pelas movimentações entre as geometrias e sequências. É como se dá, basicamente, a aprendizagem na música, dança, ou na disposição espacial em desenho, modelagem, etc. Ocorre aqui, privilegiadamente, a movimentação do indivíduo no eixo espaço-tempo possibilitando a compreensão de suas próprias forças e habilidades dentro da cultura humana básica do corpo individual. Daí o indivíduo se expande para o grupo e depois para a sociedade em geral. A exemplificação da ordem sucessiva é um importante critério estético. Ela é uma das etapas primitivas do método artístico. Em música e em cores exprime-se nas escalas cromáticas, por exemplo. O percorrimento variado, pela dança, escultura ou quaisquer outras artes, em escala planificada, é uma espécie de jogo, o qual constitui o próprio território criativo disposto para a realização da obra. A ordem sucessiva, como conceito estrutural para todas as artes, possibilita a leitura da homologia entre as várias artes e a ampliação criativa da expressão em qualquer uma delas. Nesse sentido, por exemplo, a dança é obviamente uma escrita. Mas mais que isso, ela pode ser uma aceleração, uma condensação. Na dança da colheita de maçãs, por exemplo, os movimentos são geometrizados (aqui entra a habilidade do desenho) e, para quem a vê, magicamente não se evidenciam as relação entre o corpo e as maçãs porque estas estariam invisíveis, embora elas se expressem e sejam compreendidas. Isso ocorre porque a estrutura do método que possibilita a expressão do ser como arte é tão harmônica e verdadeira, que torna possível o espetáculo. Aceleração, condensação, geometrização, repetição, enfim, organização do movimento, ao se realizarem na arte, comunicam-se como ser no mundo. Desse ponto de vista a estética é um fator, em si, acelerador da sensação do tempo de vida partilhado por todos. Uma imagem condensa um dia, um momento. E esse objeto-imagem, que é mais duradouro do que o próprio momento, faz com que sonhemos uma vida duradoura, estetizada e, portanto, urgente, porque os momentos do sentimento interno de si sobrevoam, atrasados, a contextura dos objetos estéticos tão sobrecarregados de significados e se colocam em relação com o outro. É assim que a arte amadurece a vida. E preparar o amadurecimento é um dos motivos da educação. Pela prática de uma técnica artística também se aprende a necessidade da espera durante o trabalho em direção a um resultado desejado. Trata-se de um processo que possibilita, entre outras coisas, aprender internamente a identificar a sensação de regulagem entre sentimento, intelecto e vontade. A percepção da dimensão interna nesses níveis é análoga à compreensão das escalas. Apossar-se desse tipo de realização psicológica é um fator desejável no desenvolvimento de uma personalidade. A dimensão psicológica impulsionada por um projeto e sua consecução expande o sentimento de um ser, ou centro do sentimento de ser. Essa centralidade, ou unidade, é fator de equilíbrio na dinâmica existencial e constitui, ela própria, uma obra. Um aspecto importante na cultura da educação pelas artes é observar a singularidade de cada ser na interação com a técnica e o instrumento. Aqui, a relação de cada pessoa com sua arte é única. As regras estéticas são ao mesmo tempo provisórias e definitivas. Provisórias porque a adequação na utilização é sempre imperfeita, e definitivas porque voltam incessantemente a ser repetidas culturalmente. Porém a rigidez quanto à fixação das ordens possíveis dos desenvolvimentos educativos equivale a uma rigidez estética no resultado artístico. O aprendizado consiste na cultura do desenvolvimento de capacidades. Esse é o básico do método em educação. Mas obviamente não há metodologias definitivas, por isso o educador sabe que sempre estará em jogo, na existência do desenvolvimento de seu trabalho, alguma causa, denominada método, se este for conscientizado. E então o que é ser consciente neste caso? Significa poder? Ou é possível ser consciente sem poder? As duas coisas devem se complementar aqui. O método existe na esfera do poder, da regra para o direcionamento, comunicação e convivência, mas no âmbito da consciência sem poder, que deve também existir, o educador duvida do método, entra em confluência com a atitude contemplativa e vislumbra um ser humano exato, justo e pleno em sua própria liberdade, e aí abandona qualquer método. Porém sempre volta a ele, porque em sua posição, seu papel é proteger os desenvolvimentos a partir de um fazer e em tantas outras vezes sua necessidade é direcionar alunos, classes. A esse tipo de ideia educativa há a crítica da insuficiência. Obviamente outros tipos de desenvolvimentos são efetivamente necessários a uma educação completa. Unilateralidades no contexto educativo resultam no incentivo à formação de personalidades egoístas e inflexíveis, as quais terão como consequência as várias dificuldades de se adaptarem a novas circunstâncias de vida. A prevenção para isso é uma educação que cultive a capacidade de maleabilidade na experimentação da harmonização entre as partes e ritmos do ser. A dimensão do aprender é inesgotável porque, enfim, aprender significa ir com o outro. Entregar-se a outros limites que não os próprios. Nesse caso, o outro, se expressa pelas práticas da arte. Pelo lado das reflexões sobre a opressão, isso poderia ser considerado elemento de deformação, mas pelo lado das reflexões a respeito dos desafios às potencialidades realmente existentes no ser humano, aprender é um constante estímulo à vitalidade. É daí que surge a figura do educador ou professor. Com alguém ensinando, estimulando, vai-se mais longe no desenvolvimento de algo, de um ser, de um fazer. Mas o professor também segue aprendendo. Do momento em que ele encontra o aluno, ele passa a aprender com ele. Com os limites do aluno, o professor aprende os limites do método e assim cria alternativas e soluciona enigmas em favor do desenvolvimento do aluno. Para esse professor, educar é uma arte. Esse professor ou educador é artista, e seu aluno também. Os dois amadurecem juntos, realizando a obra da criação. #Educação #ArteeEducação #FilosofiadaEducação #Educaçãobrasileira #LuamaSocio #Katawixi

  • Há um incêndio no mundo

    "Caos na UERJ", da série Os cães estão à solta Há coisas tristes sob as cores fortes. Há um incêndio no mundo. Essa parece ser a mensagem de vários quadros de Renan Henrique Carvalho. Olhamos suas pinturas e percebemos uma familiaridade com todos esses assuntos urgentes e cultivados sobre as trilhas da violência com todas as suas estéticas na onipresente cultura de massas através de seus noticiários, filmes, séries, livros, músicas; junto com todos os muros, ruas, pessoas, sentimentos, sofrimentos e a política e a cidade, o planeta com suas estruturas e desestruturas, objetos, guerras, organizações e desorganizações. Mas o traços ali nos quadros são marcas de uma mão humana pertencente a um indivíduo de fora da massa. Diferente do hipnotizado homem comum, há um artista que sente intensamente tudo o que pinta. E assim as imagens que esse artista produz despertam sentimentos fortes em que vê. "É sempre bom ganhar um beijo de boa noite" Muitas das obras de Renan Henrique Carvalho são realizadas com os materiais convencionais da pintura mas obviamente o convencionalismo aqui pertence mais à esfera prática do ofício do que à questão de se cultivar cânones estéticos e ideológicos: “nas minhas referências busco os artistas desconhecidos das estórias em quadrinhos, dos mangás, dos videogames, dos filmes. Para mim a questão principal não é o que é arte e sim o que podemos fazer com a arte. Mas acredito que o contexto em que vivemos se caracteriza por uma elite que denomina o que pode ser arte e o que não pode ser arte. Pela própria história da arte podemos observar esse movimento, que nos alcança até hoje, da valorização da cultura europeia”. "É sempre um prazer", da série Exército dos inocentes Claro que pode-se dizer, sem medo de errar, que todos nós, massificados, estamos saturados das imagens da violência naturalizada pelos meios de comunicação. Mas os quadros de Renan, superando justamente essa saturação, falam dessa violência que se tornou banal tornando-a, de repente, terrivelmente impactante e significativa através das cores fortes que é o sol do Rio de Janeiro. A carioca luz dourada, com seu peculiar tom de nobreza desprezada, é despejada como que aos baldes sobre todos os desperdícios de beleza das cenas da cidade em vários quadros do artista. Ele diz: “para mim, a questão estética do trabalho sempre será a menos importante. Desenvolvo os quadros pensando na narrativa, em como vou atingir quem eu quero atacar; como vou passar para a tela o meu cotidiano, o cotidiano da minha cidade. Acredito que a beleza do trabalho não consiste na questão visual, mas sim no olhar do artista sobre o espaço-tempo em que vive.” Quadro da série Os cães estão à solta "Guerra no CIEP", da série Os cães estão à solta Apesar de muito jovem - Renan tem 19 anos - o pintor tem o entendimento técnico da utilização das cores altamente desenvolvido. Ele também domina o desenho com desenvoltura expressiva suficiente para prender o olhar do público. Sua arte, como objeto visual, é tão bem determinada, que uma das maiores influências estéticas do seu trabalho, nomeadamente os videogames, são considerados imagens inerentes à realidade: “o videogame, que é um dos aspectos pictóricos que procuro por nas telas, é um modo de fazer paralelo com o jogo da vida, em que a ação determina o futuro. Acredito que a realidade em que vivemos se relaciona com isso”. Quadro da série Os cães estão à solta Renan diz que o que aprende como aluno da faculdade de Artes Visuais da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) vai além das matérias convencionais: “o contexto político da UERJ é importantíssimo para mim e para o meu trabalho, contexto esse que não se apresenta apenas nas aulas, mas principalmente no convívio e conversas com outros estudantes. Escuto todo tipo de história de todo tipo de gente. Busco colocar no meu trabalho esse conhecimento antropológico adquirido. Acredito que a minha narrativa possui um pouco de cada uma dessas histórias que ouço”. "Hora de dormir" "Os cães estão a solta Acolitando seu juramento Pelejando contra a choldra Sem ponderar Os cães estão a solta" Há muita coisa importante nesse mundo, coisas graves, coisas às quais devemos prestar atenção. É isso que esses quadros dizem. Quanto à personalidade do artista, Renan Henrique Carvalho diz: “minhas ambições não são direcionadas para aspectos monetários ou midiáticos, busco apenas ter tranquilidade para fazer meus trabalhos sem compromissos, conviver com pessoas que admiro e ocupar o máximo do meu tempo fazendo coisas que realmente gosto”. Para conhecer mais sobre o trabalho de Renan Henrique Carvalho: Facebook: www.facebook.com/renanhenriquecss?ref=br_rs Instagram: www.instagram.com/__renanhcarvalho/?hl=pt-br #RenanHenriqueCarvalho #Artebrasileira #ArtesPlásticas #LuamaSocio #Katawixi

  • "Um pouco de tudo, talvez"

    "Um pouco de tudo, talvez", é um filme escrito e dirigido por Gilberto Alexandre Sobrinho, que também assina a fotografia, sobre o modo de vida e aspirações de jovens meninas brasileiras da cidade de Codó, no Maranhão. "Este filme é o resultado do encontro e a mensagem que as meninas queriam compartilhar com o mundo mais amplo sobre sua vida, seus desafios, suas esperanças e aspirações", diz Gilberto Sobrinho. A realização do filme foi fruto de um projeto de vídeo participativo que ocorreu como parte do projeto AHRC GCFR da Universidade de Leeds "Troubling the National Brand and Voicing Hidden Histories". No Brasil, a Prof. Stephanie Dennison e Inés Soria-Turner, do Centro de Cines Mundial e Culturas Digitais, trabalharam com o Prof. Gilberto Sobrinho (Universidade do Campinas) e Viviana Santiago e sua equipe no Plan International Brasil para organizar duas semanas workshops com um grupo de jovens de 16 a 18 anos de Codó. Assista: www.youtube.com/watch?v=P4yEzjeNobg #Umpoucodetudotalvez #FilmeBrasileiro #GilbertoAlexandreSobrinho #Katawixi

  • Uma beleza possível tanto quanto inesperada

    Nas imagens produzidas por Ivana Almeida não há referencialidade, mas tampouco uma abstração vazia. O sentido é dado pela geometria inexata em combinação com a sensação das texturas. Há uma harmonização inusitada de elementos que são próprios da fotografia e que é propícia à fruição do meio digital. Nas redes sociais, limpas de quaisquer arestas físicas, em que não há sobras de formas, essa fotografia da Ivana se imiscui como uma lembrança da realidade oculta mas nem por isso faltante. Diferente de ver uma bela paisagem, que nos deleita pela evocação da amplitude, essa fotografia nos faz relembrar tudo aquilo que existe como necessidade, engrenagem, ligação, mas que está provisoriamente esquecido,relegado, imobilizado. Recortes de superfícies mínimas, ordinariamente desprezadas. Contraste entre texturas ou planos. As formas sempre elementares, desconectadas de objetos, delineadas pela relação geométrica. E as coisas intensificadas, como uma ajuda, um realce aos outros elementos. Madeira, metal e luz parecem ser os elementos preferidos na composição da imagem. Ali está a dureza, ou a possibilidade de uma aspereza. De qualquer forma, conceitualmente há essa “brincadeira” entre a evocação de uma sensação talvez incômoda ou desagradável, caso se entrasse em contato com o objeto fotografado, em contraste com sua irrelevância ou pequeneza. Algumas imagens nem mesmo conduzem a objetos, são verticalidades de algum material plástico sujo ou limpo, sobre uma superfície enrugada, por exemplo. Cascas, pétalas, fios elétricos, fitas plásticas, fêixes, simetrias do inexato e do fragmentário, palimpsestos banais. São formas de coisas que não foram feitas para serem vistas e que abruptamente emergem. Um cano mal tapado, fragmentos de raízes, buracos de tijolos faltantes numa parede, rachaduras, reentrâncias de folhas secas. Há uma exatidão na abordagem da beleza. Embora saibamos que as imagens são recortes de objetos ou contextos mais amplos, nada falta à fotografia. O que vemos está sempre completo: uma beleza possível tanto quanto inesperada. Há aqui um ver o oculto, como uma espécie de visão do investigador do inútil. Não há fantasia. E também não se trata de “detalhe”. São apenas limites criando imagens das ninharias, das irrelevâncias. Sem recortar e mostrar o sulco do arame na madeira, os fios soltos de alguma armação sobre o fundo vermelho da parede, a ferrugem por baixo da tinta, o contraste entre a textura vegetal e o chapisco mineral, ninguém veria essas coisas. Apesar de mostrar tudo isso. Apesar de destacar o irrelevante, nada sai de seu lugar. Não há outra transformação. Não há outra coisa a partir de outra coisa. Ivana não deforma, altera ou transforma, ela vê. Ivana diz: “Minha fotografia é essa forma pictórica em relação com aspectos transitórios, efêmeros e de duração na contemporaneidade. Partindo de um levantamento de referências conceituais no campo da pintura e da fotografia proponho relacionar minha prática de imagens produzidas na ruas a obras de artistas como David Hockey, Georgia O’Keeffe, Mark Rothko, Francis Bacon”. Para saber mais sobre Ivana Almeida: ivanaalmeida.wordpress.com/ www.instagram.com/milkingastone/ morrendosegredos.com/ #IvanaAlmeida #MorrendoSegredos #FotografiaBrasileira #Fotografia #LuamaSocio #Katawixi

  • O centro como suporte para o conceito de desenvolvimento

    Roselena e Walker Dante prosseguem sua conversa infinita sob as árvores do jardim: Roselena - Como é o desenvolvimento do corpo humano? Eu mesmo respondo: da cabeça aos membros, chamado céfalo-caudal. A cabeça é o centro, a partir do qual se iniciam os movimentos. E então, também, em outro ponto substancial da doutrina do funcionamento do corpo animal, mais precisamente no nível do controle muscular, tudo ocorre a partir do centro do corpo em direção às extremidades, chama-se a isso direção próximo-distal. Walker Dante - Como é o desenvolvimento do círculo na matemática? Eu mesmo respondo: para se encontrar a circunferência, o ponto fixo é o centro, correlato conceito do raio. E o círculo, advindo dessa ideia, está dentro da circunferência formando ele próprio novo centro ao infinito sob algum ponto de vista. A inalterabilidade da fórmula do diâmetro demonstra a primazia do centro como ponto causal tanto em fenômenos geométricos quanto em suas metáforas. Agora você pode me dizer como é o desenvolvimento na arte. Roselena - O desenvolvimento de qualquer arte é uma sucessão de escolhas de um sujeito-centro a partir do qual o objeto estético aparece. Esse objeto é efetivamente um prolongamento para fora das extremidades dos sentidos, por parte do artista, para que, com isso, crie-se mais uma vez objetos de sentido. Na verdade muitos outros afazeres, além do que chamamos arte, seguem essa mesma lógica do fluxo egoico. Mas com a palavra arte, dizemos que faz-se isso com a consciência de uma projeção harmônica, ou bela. A arte é uma circulação energética simbólica proposta pelo artista. Pode-se considerar também aqui, o conceito de arte, como uma universalidade do ser-no-mundo humano. Nesse sentido então, todas as ações humanas deveriam ser a Arte da própria existência. É esse o sujeito como criador. Walker Dante - Agora você foi fundo… embora você não tenha falado, a sua explicação evoca a ideia de semente, ovo, explosão pelo ponto, mitologia... química. O centro como motor da pluralidade é também o número tomado em sua dimensão fundamental mística enraizada na noção de unidade e totalidade. Todos os números são Um=1. O centro é uma positividade em qualquer ocasião do binarismo de todos os fenômenos pensados. Esse tipo de pensamento está associado também a uma fundamentação analógica de visão de mundo, ao cosmos, o eterno grande espelho da criação com suas correspondências e gradações. Tal visão de mundo é considerada ultrapassada pelo rompimento da modernidade com suas visões de pluralidade ao infinito como ensina Foucault em “As Palavras e as Coisas”. Em nível fenomenológico pode-se observar que a dependência a uma tendência vai desencadeando ou condicionando situações que, de outro lado, também aniquila possibilidades à medida que avança escolhas. Isso não quer dizer que realmente há algum ultrapassamento como resultado de um novo mundo, esse da física quântica, do binarismo e da “criatividade” técnica. Prosseguem existindo a semente, o ovo e a pedra. Mas me conte mais sobre o centro. Roselena - Podemos "sentir a sensação” (desculpe a redundância) de mudança de estado de corpo ou dimensão física graças à noção de centro. Essa é a área da metafísica, misticismo e percepções para além dos cinco sentidos. Das vibrações cromáticas depreende-se a centralidade da luz, por exemplo. Goethe mostra que todas as cores estão na luz. A luz é o centro. Por sua vez cada cor é um centro em si. Todo o vermelho do universo está aqui, agora, e ele é revelado em formas, abundantemente ou não. Pelas formas do vermelho depreende-se o próprio vermelho como fato da luz, centro a partir do qual qualquer vermelho revela-se por sua vez. Walker Dante - Você me fez lembrar que vi hoje de manhã, na rede social mais utilizada, uma comunicação popular sobre genética. Divulgou-se que determinado tipo de câncer tivera origem num “tropeiro do século XVIII”, atingindo sua ascendência até o momento em que uma pesquisadora sobre o câncer descobriu a verdade, ou seja, justamente isso. Ela descobriu que o raio de uma roda científica que ela mesma, como aluna, estivera controlando no laboratório pós-humanista, ligava-se aos fatos de doença de câncer naquela família. O tropeiro era o centro, a partir do qual irradiou-se o câncer através dos séculos. Roselena - Agora do ponto de vista psicológico, eu acho que muito do que faz o sujeito, entre a atitude “instintiva”, pura, e a consciência luminosa, é um trabalho de preenchimento, ocupação, justamente do círculo a partir do centro da personalidade básica: respostas a estímulos pré-projetados. Mesmo que o projeto não seja algo necessariamente bem delineado como objetivo. O projeto não precisa ser uma imagem específica, mas sim apenas a meta do preenchimento. Algo escrito por Hegel ilumina os meandros do centro como sujeito além, é claro, de iluminar sempre, com isso, o grave problema da identidade. Vou pegar aqui a seção 18 da Fenomenologia do Espírito: “… a substância viva é o ser, que na verdade é sujeito. (…) Como sujeito, e a negatividade pura e simples, e justamente por isso, é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto. Só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e não uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim”. Walker Dante - Já que você foi tão longe, me atrevo a associar essa conversa com a questão política-estatal apenas para ilustrar mais um caso do centro como conceito-suporte para pensamentos explicativos ou analíticos. Aparece com grande clareza, até mesmo como “raia teórica”, o estruturalismo "cepalino” (referente a Cepal, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe da ONU), eminentemente econômico, utilizando-se da baliza do “enfoque da dependência” para a ideia de “desenvolvimento, mudança social e estrutura política” em vários tópicos, dentre os quais a importantíssima questão de “metrópole e satélite”. Todas essas ideias, a meu ver, estão enraizadas na noção de centro. Vou ler um trecho que consta de um livro organizado por Octavio Rodriguez sobre o assunto: “No que diz respeito ao âmbito político, parece ser que no enfoque sobre a dependência que a concebe como relação estrutural interno-externa subjazem os pontos de vista longamente elaborados na Cepal, sob forte influência das ideias básicas e institucionais de Prebisch (Raúl Prebisch, economista argentino e o mais destacado intelectual da Cepal). De fato, tais pontos de vista se assentam na colocação de um referente de acordo com o qual certas condições de proporcionalidade na expansão das diferentes atividades produtivas têm de ser cumpridas para que o desenvolvimento da periferia prossiga; e se apoiam, também, no estabelecimento das desproporcionalidades que dificultam o cumprimento daquelas condições e, portanto, do próprio desenvolvimento. (…) o crescimento para fora, a industrialização substitutiva, o posterior entorpecimento desta última. Pois bem, o enfoque de F.H. Cardoso e Falleto assume a consideração destas pautas e aceita a sucessão, isto é, personifica com base nelas. O que se configura como uma amostra - ao que tudo indica convincente - de qual é a conceitualização tacitamente adotada por esse enfoque em matéria econômica”. Pois então, a mim esse tipo de discurso me parece uma tentativa de naturalizar o fenômeno da dominação econômica por meio da simbologia universal das palavras "referente", "dependência", "periferia", as quais dependem do conceito de centro. E claro, por se tratar aqui de política, não consigo deixar de enxergar um certo despudor na naturalização da intenção exploratória, a qual com certeza vela uma ameaça terrível de guerra no sentido mais primitivo possível, ou seja, no sentido material e real, entre as classes e entre os estados. Ao evocar a forma redonda (com centro, raio, periferia e direção) para a situação política, evoca-se sempre o totalitarismo global. Roselena - Mas para te tranquilizar um pouco digo que também ocorre com grande clareza muitas variáveis da imagem da centralidade no livro “A Natureza do Espaço" de Milton Santos, criticando justamente essa naturalização política e econômica. Não vou salientar a tese da obra de Milton Santos, mas apenas quero te mostrar que, aqui, também explica-se a questão da dominação a partir da ideia de centro. Por exemplo, vemos os raios da centralidade constituídas por sujeitos da intenção, convertidos em escalas, nesse trecho do fim do livro: “A ordem global funda as escalas superiores ou externas à escala do cotidiano. Seus parâmetros são a razão técnica e operacional, o cálculo de função, a linguagem matemática. A ordem local funda a escala do cotidiano”. É preciso notar que a imagem do centro, nessa obra de Milton Santos, já é abordada a partir de uma imagem mais moderna, retirada do método da técnica hegemônica, que é a computação e também, pasme, a teoria quântica. Walker Dante - Então só te digo mais seis coisas: 1 - a quebrada também é sujeito; 2 - eu não vou na sua casa pra você não ir na minha; 3 - o que é o centro ?; 4- até bem pouco tempo refrigerantes e sabonetes industrializados eram coisas supérfluas; 5 - o movimento = a percepção; 6 - ser é ser percebido. Bibliografia “Fenomenologia do Espírito”, Hegel. “O estruturalismo latino-americano”, Octavio Rodriguez “A natureza do espaço”, Milton Santos balgidoquiage.wordpress.com/2014/05/02/principio-do-desenvolvimento-humano/ Resenha sobre “Lógica e filosofia da linguagem”, reunião de escritos de Frege: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142014000300023 Explicação circunferência, círculo e diâmetro: mundoeducacao.bol.uol.com.br/matematica/circulo-circunferencia.htm #Filosofiabrasileira #LuamaSocio #Filosofia #Centroeperiferia #Katawixi #MiltonSantos #Hegel #OctavioRodriguez

  • “Do Amor”, a matéria resistente segundo Ana Rüsche

    Fusionar uma narrativa tênue, mas bem formada, com frases dramáticas, poéticas e filosóficas contando as impressões subjetivas saborosas, ironicamente didáticas ou reconfortantes de uma história nada heroica, continua sendo uma façanha de alquimia literária. Esse livro da Ana Rüsche, “Do Amor, O dia em que Rimbaud decidiu vender armas” traz à tona uma destreza textual conquistadora da atenção bastante rara. O próprio livro é um bombom para quem lê. Gostoso. “Alguns instantes mais tarde, na calçada ante o bombom e o ponto de ônibus, desembalo o celofane em 27 segundos de malícia e ruídos que embalam o coração. Mordo.”, diz a narradora depois de mostrar versos que fizera “a partir de uma aula sobre Blake”. Um certo tom de paródia, em degradée, confere ao livro aquela atração peculiar dos sabores picantes. O exagero patético do romantismo pós-burguês da juventude do começo do século XXI que por sua vez leu e aprendeu aquelas coisas de duzentos anos atrás com Stendhal, Kierkegaard, sem falar de todos os livros daqueles americanos malditos da primeira metade do século XX: “Sim, fui muito vadia durante esses poucos primeiros meses de paixão extremada, como se com as pernas abertas para outros conseguisse tirar aquele ranço melancólico dos ossos”. Agilmente, aquilo que seria só romantismo em outros tempos… imiscui-se num sentimento político aberto. O território do poder longínquo da dimensão social como horizonte político de se viver na cidade do ano 2000 acrescenta dimensões de meandros expandidos na vida da personagem narradora. “Novamente os pensamentos são como serpentes inquietas nos cabelos de Medusa, com a óbvia diferença que meus olhos não possuem poderes de empedreirar heróis e de minhas entranhas não sairão cavalos alados - esta América Latina vai irregular, com certezas e turbulências, lembro do amigo com suas histórias de tangos e becos, tão próximas de sambas brasileiros, cheio do doce do açúcar e das pessoas comercializadas, histórias palpáveis, bastava estender a mão e as tocaríamos”. A consciência da literatura é um tema contíguo, desde o título do livro, citando Rimbaud. Obviamente todo esse recurso a referências literárias é mais um bonito conteúdo estilístico e realmente homenageante a todo o modernismo brasileiro. Nesse sentido o livro de Ana Rusche é algo erudito. Mas não no sentido vetusto enjoativo e empafioso. Soa mais como um estímulo à recordação da inerência do nosso Modernismo antropofágico. “Os estranhos que se banqueteiam na sala olham com gula as ancas de Penélope. Frágil responde com suas mentiras desfeitas em fios que enforcam seus dedos todas as noites. E ainda hoje estudiosos redigem dissertações a perquirir: seria Penélope fiel?" O tempo passa. Está-se na segunda década do século XXI. O que ocorre é um momento de se olhar para trás meio que de soslaio. E isso é bom: lidar assim com o passado, não o fazendo de sério, mas apenas inevitável. “Anos depois de escrever esta novela, fui efetivamente para Harar! Sim, a cidade em que, na lenda, Rimbaud se refugiou, onde largou a vida de escritor e passou a traficar armas”. Eis que a própria literatura, encarnada na narradora, percorre passos que parecem conduzir à terra mítica da estrela Rimbaud! A parte do planeta Terra que reflete essa estrela é a África, que fica do outro lado do mar do Brasil. Na mesma noite em que peguei nas mãos esse livro, li-o de cabo a rabo, num dos momentos de leitura mais divertidos que tive nos últimos tempos. Ana Rüsche tem aquele tipo de humor inteligente, irônico, que toda pessoa que se identifique com a sua personagem, aprecia e se esbalda. Claro que talvez eu seja o público-alvo de sua personagem em “Do Amor”, alguém jovem, adulta, predisposta à poesia prática, trabalhador e um pouco boêmia em São Paulo nos anos 2000. “Sim, este amor faz com que eu permaneça ali, matéria, mais resistente do que os rochedos intrépidos a apanharem vagas violentas da história”, escreve a narradora enquanto a personagem está numa boate. Essa "até agora única edição” de “Do Amor, O dia em que Rimbaud decidiu vender armas”, de Ana Rüsche, é muito bem cuidada, artesanal, costurada, com a marca do selo Quelônio. Ana Rüsche Facebook: www.facebook.com/anarusche?ref=br_rs Instagram: www.instagram.com/anarusche/ #DoAmorOdiaemqueRimbauddecidiuvenderarmas #AnaRüsche #LuamaSocio #LiteraturaBrasileira #literatura #Katawixi

  • Identidade, luta política e a ideia de democracia

    ilustração Luama O tópico da identidade no escopo da luta política é da maior importância na medida em que expressa a contraparte complementar da organização social sob a ideia de democracia, a qual implica a participação do povo no governo. Toda tentativa de dissolver esse tópico equivale a uma postura antidemocrática. Nessa dissolução estão incluídas as dissensões e confusões, nos próprios setores delimitados de lutas identitárias quando, por exemplo, rechaçam a participação, em suas lutas, de vozes aliadas não oriundas do mesmo corpo identitário. A multiplicidade de interesses num contexto cultural complexo se reflete em várias elucidações teóricas que tentam dar conta de uma realidade social de fato instável e contraditória na dinâmica entre o regime, as leis e as práticas culturais. Mas o caso é que nenhuma confusão anula a questão identitária como elemento constitutivo mesmo da democracia, refletindo condições particulares dos aspectos universais, não importando em qual grau ela se determine. O sentido da luta identitária é forjado inteiramente no âmbito do jogo simbólico das relações humanas embora sua necessidade esteja enraizada em necessidades materiais. A questão da identidade como luta política evolui de um entendimento fenomenológico, em que historicamente as identidades são identificações de sujeitos outros em contextos descritivos ou caracteriológicos, para o estatuto de objeto de intenção, de sujeitos que reivindicam a identidade como direito através do reconhecimento qualitativo do ser existente, com especificidades universais. Enquanto que no âmbito pessoal, individual, a identidade se faz por uma inevitabilidade que depois poderá ser reconhecida, pelo sujeito, como uma parcialidade numa existência talvez desejavelmente mais ampla (algumas pessoas dizem ser possível atingir uma percepção de que uma identidade é uma parcialidade frente à potencialidade “mística” do desenvolvimento da percepção, a qual liberta o indivíduo de compromissos fixos com as identidades acidentalmente agrupadas em sua psique em favor de uma maior liberdade perceptiva), no âmbito cultural a constituição identitária é elemento fundante da organização social, em que os sujeitos desempenham papéis em um grupo social, o qual é determinado justamente pelas percepções condicionadas pelas identidades. Trata-se de uma obviedade o fato da construção identitária - pois a própria “natureza” humana é tal que pode (e de fato o faz) se identificar com qualquer coisa . É assim que no âmbito social a identidade expressa o próprio corpo político, o qual reflete complementarmente essa qualidade universal humana, da disposição à identidade: se todas as coisas percebidas formam a identidade do próprio homem, todas as identidades devem ser então percebidas como tais, e incluídas, em seus interesses, na organização social, como sujeitos. A força da luta identitária deve vir de sua intencionalidade plenamente consciente, o que faz dela o elemento democrático e propriamente político por excelência. É isso que talvez torne possível o professor de direito Pedro Serrano dizer: “se o povo não cuida dos seus direitos, ninguém vai cuidar”. É possível então tocar esse tópico a partir de vários ângulos, e todos eles são desejáveis para a construção de um entendimento sobre a necessidade de tratar desse tema. É assim que emergem imbricados os aspectos históricos, sociológicos, filosóficos e sociológicos que confluem conhecimentos diversos para a questão. Na luta política pode-se dizer, grosso modo, que a questão identitária aparece como contraparte cultural da uniformização generalizada imposta pelos sistemas sociais à diversidade humana, que remonta historicamente ao surgimento dos estados, da indústria, da hegemonia técnica associada ao desenvolvimento da ciência materialista e do capitalismo, desembocando no consumismo como forma de vida privilegiada. A questão identitária reflete ainda uma estrutura interna antiquíssima dessas condições: a divisão do mundo entre senhores e escravos. Assim, num país em que o estado, estruturado formalmente, garante os direitos a toda sua população, a luta política identitária apenas aparece como contraditória quando não se reconhece que essa luta reivindica a garantia da diferença inserida na estrutura de igualdade de direitos. Essa luta, como uma espécie de sintoma de saúde social num esforço de correção ou cura das injustiças, é a única alternativa que expressa um vislumbre de verdadeira humanidade na finalidade da convivência social. A despeito de todos os totalitarismos, jamais poderá ocorrer o apagamento das diferenças ou sua total subjugação. A aspiração ao universalismo do humano no sentido do “poder do negativo" é uma quimera e um horror do ponto de vista real e material. Essa posição pode ser exemplificada nas palavras de Douglas Rodrigues Barros, em “Contra o retorno às raízes: identidade e identitarismo no centro do debate”: “Noutros termos, não há possibilidades reais de superação das tendências racistas do capital no jogo que ele próprio impôs. Por outro lado, a particularidade do negro tem em si a potencialidade de suplantar essa condição não aceitando os termos postos a partir da reivindicação de sua própria particularidade”. Em uma sociedade como a brasileira, em que a “democracia tateia”, justamente a luta identitária é importante para a garantia de um mínimo grau de equilíbrio humanista, já que os direitos sociais, invariavelmente, são o resultado de lutas das minorias identitárias. Mesmo assim a democracia continua sendo uma tendência entre outras, num contexto desfavorável e historicamente determinado, como lembra Marilena Chaui em entrevista a Juca Kfouri em 17 de Abril de 2018 na TVT: “O direito não se refere ao que é específico, como uma carência, e nem se reduz ao privilégio. O direito é sempre universal. Ou ele é o mesmo para todos ou, quando se tem as minorias, ele é universalmente reconhecido por todos como um direito. O direito se opõe à carência e ao privilégio. Ora, uma sociedade que é feita de carência e privilégio está impossibilitada de construir a democracia”. Por outro lado, sob o ponto de vista da democracia consolidada de países “de primeiro mundo", ou seja, para um certo ponto de vista que assume a civilização contemporânea como expressão do fracasso do humanismo, a luta política identitária não seria mais do que um sintoma do irracionalismo disfarçado de inteligência, o qual se caracteriza pela enunciação do morto. A enunciação substitui o perdido pelo vazio fantasmagórico das palavras agora desvinculadas de sentido real. Na medida em que é enunciada, a questão identitária já é uma questão dissolvida. “O direito assume irresistivelmente essa curva maléfica que faz com que, se uma coisa é evidente, todo o direito seja supérfluo; e, se a reivindicação de direito for necessária, a coisa está perdida: o direito à água, ao ar, ao espaço atestam a extinção progressiva de todos esses elementos. O direito de resposta indica a ausência de diálogo etc.”, diz Jean Baudrillard em “A transparência do mal”. Sob esse ângulo a condição cultural humana, ao invés de evoluir em direção a um melhoramento de perspectivas, se agrava e se aprofunda pelos abismos da morte porque o esforço de humanismo civilizatório chega a um ponto de inversão de seus próprios valores pelo retorno do recalcado. O totalitarismo da maldade inclui assim a subversão e a confusão extremas da luta identitária, dominada na penumbra pelos poderes capitalistas, que a transforma em mercadoria como tudo o mais, iludindo os grupos de identidades diversas, vitimados de consumismo ou presos às eternas grades da escravidão, não enxergando a manipulação, pelos poderosos, dos seus desejos mais irracionais, posto que humanos. Ainda surge a falácia do “direito” à irracionalidade, expondo os limites da complexidade da entidade humana frustrada em seus equilíbrios, os quais definiriam a própria ideia de homem como senhor de seu destino pelo reconhecimento de sua concomitante e inerente liberdade no topo da montanha das forças contraditórias de sua “natureza". No aprofundamento infinito do mal o enfraquecimento da luta identitária no plano concreto inclui também, como observou Douglas Rodrigues Barros, a neutralização dos próprios elementos dessa luta na medida em que eles sofrem das contaminações imaginativas a respeito da necessidade de reforço de traços identitários uniformizadores, tais como, por exemplo, aqueles oriundos de raízes ancestrais comuns para o incremento do discurso político (como é o caso do movimento negro), gerando fragmentação e desmoralização da luta política. Ocorre que a própria compreensão do social demanda uma capacidade para o pensamento complexo. Na falta deste, a questão da identidade, no escopo da assimilação da diversidade, é alvo de reducionismos simplistas, expressivos de uma abordagem caracterizada pela simples rejeição ou negação. A identidade, como signo da unidade, irradia-se no contexto social como diversidade, através da multiplicidade. Esses são os pólos da própria ideia do humano em sua existência natural, cultural e social, e isso é a complexidade do pensamento refletida na estrutura da convivência. A ideia de identidade no âmbito político exige a maturidade e a capacidade do exercício intelectual livre de sentimentalismos. Num espectro mais amplo da subjetividade, a brutalidade dos raciocínios baseados na diferença e concomitante competitividade decorrente da subversão do “instinto de sobrevivência" tem que ser necessariamente transcendida, para que haja a compreensão da demanda pela identidade política. Pode-se enxergar, por exemplo, como início de um pensamento, o vazio identitário histórico do brasileiro, como bem assinala Darcy Ribeiro em “O povo brasileiro”, como uma marca paradoxal da formação da própria identidade e como sinal para o preenchimento desse vazio. Num passo a mais pode-se também perceber que a contradição entre as concepções brutais e a inteligência humanista no escopo da questão da identidade está relacionada com a complementaridade dos âmbitos individual e social. Do ponto de vista individual, a identidade é um processo do eu, que se caracteriza por um movimento de separatividade, controle, e poder. Do ponto de vista social, a identidade se caracteriza por um movimento de integração, partilhamento e participação. Essa contradição nos aparece como tal na estrutura dualística inerente às categorias do pensamento refletidas na linguagem e cultura. Uma alternativa lógica para o ultrapassamento dessa contradição é indicada já pela psicanálise: “Freud opõe uma radical objeção ao sujeito como plenitude e presença de si. A postura freudiana dá lugar a uma descentralização que reconduz à origem da diferença na identidade, assumindo-a como duplamente constitutiva de si. Designando o outro como condição necessária da identidade, Freud mostra que quando nos referimos ao eu aludimos inevitavelmente ao outro”, explica Mauro Maldonato em “A subversão do ser”. Porém obviamente esse “ultrapassamento" freudiano, na medida em que se inscreve na dimensão linguística e, portanto, constituindo um elemento de “experiência deformante” inerente à linguagem, além de não substituir a exposição da clássica complementaridade da dialética hegeliana do “senhor e do escravo” a respeito da consciência de si, por seu lado apenas aumenta as complexidades e os abismos que justificam a luta política identitária na medida em que reflete essa questão em nível individual. Acrescenta-se o nível social e a questão identitária segue estreitamente vinculada à paisagem econômica, a qual é condicionada por um primitivismo estrutural bem aquém da condição individual humana reconhecida pela psicanálise ou pela filosofia, como se pode depreender da leitura de Florestan Fernandes em “As mudanças sociais no Brasil”: “A minoria privilegiada encara a si própria e a seus interesses como se a nação real começasse e terminasse nela. Por isso, seus interesses particularistas são confundidos com os interesses da nação e resolvidos desse modo. Enquanto que os interesses da grande massa excluída são simplesmente esquecidos, ignorados ou subestimados. Os assuntos de mudança social entram, assim, na esfera do controle social e da dominação de classe, com uma ótica enviesada, que identifica a nação com os donos do poder”. Assim é que o pensamento complexo terá que lidar com o primitivismo configurador da situação concreta, a qual exprime a própria falta de pensamento onde ele poderia se fazer presente o que, neste caso, modificaria toda a situação. Em linhas gerais a capacidade do pensamento, esse fenômeno reflexivo linguístico da percepção, tem como uma das suas funções assimilar a identidade como a própria estrutura da forma, a partir da qual poderá originar o conceito do humano como o ser da liberdade dessa forma, pois que este é caracterizado pela incompletude do devir de sua natureza pensamental. O pensamento pode portanto conceber um indivíduo humano livre, que não esteja preso definitivamente dentro de algum "sistema" social. Apenas esse indivíduo pode dinamizar as configurações sociais. Por outro lado, se o social é encarado como uma totalidade homogênea e definitiva o indivíduo, como sujeito, pode ser considerado subversivo enquanto elemento que se opõe à coletividade. Essa contradição é dissipada quando, admitindo a realidade do ser, admite-se também todas aquelas qualidades do humano que o conduzem ao ser da responsabilidade e da razão. A principal função da razão é operar a equação das contradições, portanto assim, pela própria humanidade subentendida no exercício da razão, supera-se a contradição entre sujeito e coletividade pela construção social responsável. Há muito - desde o apogeu do Iluminismo - o direito fora postulado como um pilar da harmonia social expressando sob aspecto da “luz da razão”, a garantia da igualdade nesse plano, para que a liberdade individual, em seu próprio plano, pudesse se concretizar em qualidades específicas de talentos, traços e expressões da diversidade humana (complementarmente inclui-se também na herança iluminista o estado autoritário, o qual deve ser contrabalançado com o modelo “democrático de direito"). Nenhum humano prescinde da subjetividade. Por mais hipnotismos, repressões, irracionalidades, propagandas que existam, o fundo da subjetividade, como inteligência especificamente humana, identitária, não se extingue. E obviamente surgem da degradação dessa ideia os anti-humanismos, trans-humanismos, a bomba atômica, etc. Na contraparte, admitindo-se a constitucionalidade cósmica, tudo no homem é o outro. A própria consciência (como não cansam de assinalar os budistas), é sempre a consciência “de”. Assim, a identidade como reflexo da diferença, reverso do eu, é o próprio mecanismo consciente. Rejeitar o outro é negar a consciência; é a repressão do que “é”, do que existe. Os desdobramentos desse paradigma já foram assinalados através de outros ângulos na filosofia e na psicanálise, como indicamos acima. Trata-se de uma das elementaridades da questão filosófica da identidade a concepção da diferença, complementada pela repetição, como condição da forma e consequentemente da linguagem. Supondo uma origem, um antes do aparecimento da linguagem, a percepção humana naquele ponto apreendera o todo indiferenciado; com a linguagem e sua estrutura dualística passa a discernir, num passo adiante, as diferenças. Justamente a história desse discernimento habilita o entendimento da unidade subjacente (unidade como potência) em qualquer área do conhecimento, a qual poderá ser refletida metaforicamente na convivência social como uma escolha da consciência. Por isso o entendimento do conceito de identidade, complementar correlativo ao conceito de diversidade, liga-se à faculdade de consciência e à capacidade de escolha, duas qualidades associadas à ideia de liberdade. É necessário admitir a liberdade como uma garantia de que as pessoas possam ser o que elas realmente são. Mas se todas as ciências e linguagens já provaram a face do “mesmo” através dos caminhos da diferenciação em suas evoluções, por outro lado, claramente a maneira como as ciências e linguagens organizam a visão de mundo não favorece o embasamento lógico da igualdade no nível social porque tecnicamente esses saberes continuam produzindo suas especialidades. Essa diferenciação ao infinito é o próprio sentido da técnica. Obviamente os valores tecnicistas, preponderantes na nossa época como parâmetros de toda a inteligência, não favorecem o entendimento do fundo metafísico científico como esclarecimento metafórico para a condição psicológica que capacita o entendimento da unidade de todos os seres humanos como uma atitude benéfica do ponto de vista do convívio social. Imparcialidade, neutralidade a autonomia são valores científicos na medida em que fazem sentido no esquema sujeito-objeto. A luta identitária reivindica o reconhecimento do sujeito pelo próprio sujeito. Esses valores cientificistas, que embasam a nossa sociedade tecnicista, quando transpostos para o direito, só fazem sentido se o próprio direito for discernido como um setor totalmente especial, diferenciado, em relação aos setores econômicos e técnicos da sociedade. O próprio reconhecimento identitário, reivindicando a igualdade entre os sujeitos, só pode ocorrer apoiado num discernimento de esferas independentes autônomas, neutras e imparciais na própria organização “científica” do estado, a qual reconhecerá as relações humanas no sentido sujeito-sujeito. Formalmente vê-se que o estado se apresenta justamente assim, mas na realidade vivida seu funcionamento é amorfo e confuso e a diferenciação de suas diferentes funções não é realizada. A luta pelo reconhecimento das identidades nos aponta para esse discernimento faltante, ensejando a oportunidade de correção no sistema. A contradição aparente é que valores da diferenciação possam servir a valores da identificação. Ou seja, que os mesmos valores possam embasar objetivos, fenômenos psicológicos, políticos e técnicos, contrários uns aos outros. Portanto, a questão da identidade, para ser reconhecida como politicamente válida exige uma inteligência que transcenda a ingenuidade dualística. Uma inteligência que perceba o dualismo como uma dinâmica da unidade. Ver o mesmo através da diferença é o desafio identitário. E nisso ele é totalmente humanista e intelectual, reivindicando a ética em sua raiz. #Filosofiadalinguagem #Psicanálise #Identidade #Política #Lutaidentitária #Filosofia #MarilenaChaui #DouglasRodriguesBarros #FlorestanFernandes #Filosofiapolítica #LuamaSocio #JeanBaudrillard #Katawixi

  • Marcelo Ariel, como um pássaro, em Jaha ñade ñañombovy’a

    Assim que terminei a leitura de Jaha ñade ñañombovy’a (“Vamos nos maravilhar” em tupy-guarani), me foi inspirado talvez pela capa do livro, este explicativo poético em palavras primitivas a respeito de Marcelo Ariel, autor dessa obra: O Sol na cabeça Os Pés no animal e o Coração na flor Sua cabeça é um pássaro, não a Lua. A analogia do poeta com um pássaro também consta do título de um filme sobre Marcelo Ariel, dirigido e roteirizado por Dellani Lima, Pássaro Transparente, lançado esse ano, participante de vários festivais pelo país. Esse livro, Jaha ñade ñañombovy’a é o giro magistral de um dançarino dos pensamentos e palavras. O círculo de um visitante, um pedaço do caminho do viajante, a ardência dos maravilhamentos. Uma dança poética sobre a revelação de mapas de filiamentos poético-místicos corroborados pelas pistas de um pós-nome de Marcelo Ariel, esse “esutuareguedjinnsufinamba”. “Nosso nomadismo é no sempre e na direção de esferas cada vez mais incomensuráveis e extraordinárias”. Realiza um encontro com os amigos, evocando ao longe uma conferência de pássaros. Amizades de alta erudição. Diálogos com a sabedoria. Marcelo Ariel é o poeta místico por princípio da própria poesia que habita nele. “Somos espaços destinados à metamorfose contínua”. As imagens formadas pelas palavras desse livro tomam corpo a partir do misticismo de sonho, do viajante da luz e do escuro pelos espaços e não-espaços do conhecimento. Faz lembrar o verso de Rumi, “os viajantes da noite são cheios de luz”. “Os autênticos artistas são caminhantes”. Muitas dessas imagens são revelações, tanto das maravilhas reveladas mas esquecidas, quanto daquelas promessas ocultas propiciadas pela eterna maravilha micro-macro-cósmica. Algumas vezes integram o real na melancolia do perdido, da fugacidade. Outras vezes são um índio, um pássaro, todos os homens, ou uma fusão. Marcelo Ariel vai girando de acordo com os nomes dos sábios, dos poetas e pássaros. “As formas escondem um segredo dito para as imagens através dos sonhos”. Nesse livro, entre tantas outras coisas, aprendo tarô: “nossa tomada de consciência ou caminho, se inicia na copa das árvores de nosso ser”, escreve em “O enforcado vê o sol”; “… como diriam os surrealistas: a penetração do maravilhoso na vida." Surgem saborosos aforismos, propícios ao nosso momento, mais do que os do Blake, Marquês de Maricá ou os do Bernard Shaw (os quais são muito diferentes entre si afora os aforismos e diga-se de passagem não figuram como visitados de Ariel). Aqui estão as lições, as tristezas: “prefiro apenas afirmar que a negação e a realidade são ilusões”. Esses aforismos são metamorfoses, esperanças, chistes, choques, paradoxos, jogos, rimas, haikais, descrições, definições, a psicologia, o surrealismo, as metonímias, os contrastes, as sabedorias, os vaticínios, os enigmas, os contra-sensos, as evocações, os mistérios, as correções… Transcrevo uns: “Cidades grandes são o roubo do tempo: pequenas, a organização do tempo e aldeias SÃO O TEMPO” “Transformar o impossível em algo possível; depois esperar três semanas” “A indignação atrasada dos cordeirinhos no pântano em chamas, raposas com Alzheimer e duas pragas do Egito" “Narcisismo , narcolepsia e narcotráfico podem ser abreviadas por estas 4 letras: narc" “O ponto de convergência entre os 7.000 anos de ontem e os 10.000.000 de anos de anteontem é este momento" “No deserto da limitação da sensibilidade, o rio criado pelos profundamente sós" Pode-se dizer em palavras curtas, sobre o livro Jaha ñade ñañombovy’a, que propõe e cumpre o maravilhamento de seu título. São tantas coisas, assuntos, poesias e teatros, o leitor dançando junto com Ariel por vastidões cosmo-pensamentais englobando temas políticos, filosóficos, místicos, poéticos, históricos, numa coesão girante de mandala perfeitíssima, belíssima, estética. Certamente é um livro maravilhoso. Um tesouro em língua brasileira feito por Marcelo Ariel. É o beija-flor de um de seus aforismos: “Ver um beija-flor na chuva é o contrário de ouvir o som de um tiro" Segundo Marcelo Ariel esse livro fecha a trilogia composta por Retornaremos das Cinzas para Sonhar com o Silêncio e Com o Daimon no Contrafluxo, editados pela Patuá. Jaha ñade ñañombovy’a, de Marcelo Ariel, é editado pela Penalux, os textos são acompanhados de belas e interessantes ilustrações de Ulisses Bôscolo, apresentação de Tales Ab’Saber e prefácio de Natalia Barros. Para o livro acesse: www.editorapenalux.com.br/catalogo-titulo/jaha-nade-nanombovy-a #MarceloAriel #marceloariel #Jahanadenanombovya #vamosnosmaravilhar #vamosnosmaravilhar #LuamaSocio #luamasocio #literaturakatawixi #literaturabrasileira #literaturabrasileiraséculoXXI #katawixiliteratura #Katawixi

  • A mão dançarina do olhar escuro nos desenhos de Carlós

    O olhar de Carlós é alimentado desde sempre pelo pensamento crítico sobre o mundo, a sociedade, a política: “em casa era um crime não ser gauche”, diz, em meio a uma conversa sobre as dificuldades das ideias de liberdade, democracia e participação política nos tempos atuais: “a estrutura de manutenção de poder é tão complexa que confunde as posições na vida cotidiana”, desabafa, revelando que se interessa por midiativismo e por todas as questões associadas ao problema do atraso social: machismo, escravagismo, destruição ecológica etc… Seus desenhos expressam essa liberdade inerente do ser-artista, reivindicada pela movimentação do gesto a partir de um horizonte escuro, indeterminado quanto aos seus objetivos porém reivindicando sua identidade libertária, tudo simbolizado pela potencialidade de revelação de um negro nanquim. Ele diz que seus traços vão mais pelos caminhos do desmascaramento da forma do que pela pretensão de refletir ou construir alguma coisa bem definida. “A palavra, o desenho, não dão conta da existência”. Seu olhar é um trânsito no escuro: “a ideia de consciência é uma sombra”, declara. O estilo de Carlós é fortemente influenciado pela técnica da gravura: “fiz muitos cursos e numa época da minha vida estive ligado a um ateliê de gravuras em Recife em que as artes plásticas eram levadas a sério”. Por fim, chega à conclusão de que o artista não passa de um “bufão da corte”. O impulso para o desenho faz parte do simples cotidiano de Carlós. Ultimamente tem desenhado bastante as gatas que ficam por ali, rodeando à sua volta: “o desenho tem um diálogo com milhões de coisas da minha vida. Por um lado é desenho de observação no sentido de que tenho carinho pela figura, mas ao mesmo tempo tenho o cuidado e a intenção de não atingi-la.” Esse distanciamento da figura como resultado do olhar concomitante ao gesto do desenho que, como um par, realiza uma dança com a figura, é o contraponto da rigidez do estilo-gravura da forma: “não consigo pensar no que eu capto, é a mão que guia. Não vejo o que eu gostaria de ver. Sempre me surpreendo com o meu próprio trabalho”, diz. O trabalho de Carlós pode ser acompanhado no Instagram: @carlois www.instagram.com/carlois/ contato: carlois@gmail.com #Carlós #Desenhobrasileiro #Artesplásticasbrasileira #Artebrasileira #Arte #Carlósartistabrasileiro #LuamaSocio #Katawixi

  • O Novo de Novo

    Muitas vezes quando se pensa que se está fazendo o novo acaba-se por descobrir que o novo já foi feito antes. Mas o novo sempre vem. Sempre acontece o novo de novo. * O Novo de Eugene Atget * O Novo de Karl Blossfeldt #KarlBlossfeldt #EugeneAtget #fotografia #Katawixi

  • Educação sem liberdade é pura contradição

    Não existe desenvolvimento sem liberdade. A liberdade é o próprio objetivo da educação já que o homem é justamente o ser em processo, essencialmente inacabado, o qual apenas realizará suas potencialidades em circunstâncias favoráveis ao seu desenvolvimento. Essas circunstâncias estão representadas no conceito de educação. A supressão da liberdade conduz ao atrofiamento, ao subdesenvolvimento e, em nível coletivo, a uma cultura de morte. O subdesenvolvimento é observável e extrapola o contexto oficialmente educativo, podendo ser considerado tema de psicologia social, além de ilustrar juízos a respeito de paisagens sociológicas derivadas da ausência ou presença de trabalhos educativos desenvolvimentistas e humanizados. As sociedades altamente desiguais, divididas em classes, como a brasileira, caracterizam sempre o atraso cultural e humano em relação direta com a falta de liberdade dos indivíduos. Paulo Freire, em 1970, analisa e ensina justamente a respeito desse contexto em sua obra mais influente, a “Pedagogia do Oprimido”, em que propõe reflexões e processos para a liberdade significando o sentido da vida. Ele diz: “Tal liberdade requer que o indivíduo seja ativo e responsável, não um escravo e nem uma peça bem alimentada da máquina. Não basta que os homens não sejam escravos; se as condições sociais fomentam a existência de autômatos, o resultado não é o amor à vida, mas o amor à morte”. Quando se fala em liberdade como prerrogativa da condição humana, todos tendem a concordar com sua elementaridade, como se a condição de liberdade fosse inerente ao ser humano, existente como uma qualidade natural, indissociada de seu ser. Porém quando o assunto passa a se relacionar com a educação institucionalizada, emerge toda a confusão, inconsciência, irreflexão e hipocrisia diante do tema. Entre os professores, levantam-se inúmeras objeções, restrições, argumentos paradoxais relacionados à prática da educação sob a ideia de liberdade. Há aquela clássica proposta geralmente colocada aos professores como início de reflexão em reuniões de formação, capacitação ou treinamento: qual deve ser o papel da educação, moldar o aluno ou conduzi-lo a desenvolver suas potencialidades? Ao que se seguem inúmeras respostas, que são dadas de acordo com o alinhamento psicológico ou liberdade subjetivos dos presentes, geralmente clevando à conclusão coletiva de um meio-termo entre “molde” e “liberdade”. Destarte, pensar o ser humano como um objeto que pode ser “moldado”, “libertado” ou “dirigido” chega a ser um lugar comum nas reflexões dos professores entre seus pares. Aqui bem se vê o falso início da questão da liberdade em educação. Ela não pode se dar, verdadeiramente, numa relação sujeito-objeto. Então, o que é essa liberdade? Por incrível que pareça: liberdade é justamente aquilo que extrapola tudo o que está posto, na estrutura da escola, como cultura a ser transmitida, reproduzida, replicada, a qual constitui o conteúdo de responsabilidade dos adultos, a ser incutido nos alunos. Paulo Freire ensina muito bem que o “método pedagógico”, no sentido de técnica de manipulação do educando, deve ser substituído pela consciência, a qual se caracteriza como o “estar com”: é aí que se dá uma relação verdadeiramente humana, entre pessoas livres, entre sujeitos, em lugar da opressora relação sujeito-objeto. Os sujeitos da educação, “ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes”, escreve Paulo Freire. Essa questão passa por uma compreensão de que a educação deve incluir a atenção para com o processo de autoconhecimento, para o desenvolvimento de consciência de cada um dos integrantes dos momentos educativos. Não se trata de entender a palavra consciência apenas na acepção de percebimento e funcionamentos dos sentidos físicos na apreensão do mundo externo, mas sim no sentido de estimulação de uma visão integrada da vida, para além da avidez, busca de poder e domínio como ingredientes da formação da personalidade. Trata-se de despertar a inteligência, estimular o desenvolvimento baseado em movimentos de compreensão e integração, fazer emergir a percepção de que os próprios seres humanos são o ambiente em que vivem. Tudo isso deve substituir o esquema tradicional de servilismo e dominação baseado na imposição da fragmentação psicológica e social que caracteriza a feição cultural de nossa infelicidade. Repressão e padronização são o oposto de liberdade, portanto frequentemente o contraste com a autoridade que os representa é o exercício da liberdade no contexto da escola. Assim, na prática, a ação do professor, em direção ao desenvolvimento da liberdade deve ser sempre direcionada ao estímulo ao invés da contenção. Como fazer significar a relação entre as ideias de educação e liberdade? Obviamente um professor que educa seus alunos para serem livres deve, ele mesmo, ser livre. Isso exclui, por exemplo, a clássica postura autoritária, e exige uma ampla criatividade no ensinar, nascida da observação das necessidades do aluno e de uma disposição, do próprio professor, em aprender. Os métodos, as atividades, a própria ocupação do espaço e a organização no tempo na escola devem nascer da relação professor-aluno. Relação sem medo, sem expectativa de resultados rigidamente projetados. O professor que nunca está a aprender, aquele mandão, sabichão, será o professor que quer o aluno a imitar-lhe ou obedecê-lo, apenas. Já o professor que está aberto ao aprender é o professor criativo. O estilo da criatividade varia, porém esse professor, apenas por ter uma consciência desenvolvida, será criativo espontaneamente, como reflexo da própria liberdade de seu ser. Até mesmo “tecnicamente" ele será um professor melhor do que o professor puramente autoritário. À primeira vista essa posição parece ser oposta àquela que postula a educação como uma ação fundamentalmente preparatória para o futuro. O discurso “futurista" é um chavão na educação e tem sua razão óbvia assim como sua desrazão. Porém na verdade, apenas a concepção da educação para a liberdade é que pode almejar um futuro verdadeiro para os seres humanos. Os discursos baseados na projeção para o futuro, com vistas ao sucesso através da competitividade direcionada a um mundo externo congelado - pelo aprendizado de fórmulas prontas - em que o aluno irá “entrar”, na verdade supõem esse mundo como algo estático, dado e acabado, o que obviamente não corresponde à realidade. Justamente pela ênfase no ensino da técnica e da reprodução de modelos perpetuam-se os defeitos culturais, dentre os quais distingue-se o núcleo do comportamento social da cultura de morte: a opressão dos mais fracos pelos mais fortes, o servilismo do povo aos senhores, mandatários e patrões. Eis de onde se parte e onde se chega com a educação que se faz “moldando” os alunos. Através do típico paradoxo da dinâmica da realidade para além da rigidez dos conceitos ortodoxos, a própria cultura humana, de um modo geral, é ameaçada de extinção se faltar liberdade. Em lugar de cultura humana tem-se uma cultura de morte, que tem como resultado e até mesmo como objetivo, a produção da morte sob várias formas, por meio de vários sistemas conhecidos por todos nós: guerra, miséria, capitalismo, escravidão, massificação, etc. A liberdade é necessária à transformação da cultura. Sem possibilidade de transformação, a organização social vai se tornando inadequada à sobrevivência dos indivíduos. A ação autoritária e simplesmente reprodutiva, no campo da educação, recrudesce a entropia e a decadência da própria cultura que ela almeja estabilizar. Portanto educação sem liberdade é pura contradição. foto: Walter Antunes #Educação #Cultura #Escola #Filosofia #FotosdeWalterAntunes #Pedagogia #Sociologia #Filosofiadaeducacão #Liberdade #PauloFreire #LuamaSocio #Katawixi

  • Poemas de P. Claudine Hoffmann em Matadouro Imperfeito

    Demorar depende do morrer. Ainda respiro com o poema pendurado no gancho esquerdo das promessas. Percorro o susto metálico dos pássaro-caça: “de onde veio a bala?” Um último canto esvazia para sempre os pulmões em miniatura: escultura plumas e pele. - Para onde vai a queda? *** Não moldar-se nas armadilhas. De todas expedições da alma fica a amplitude do resto: oceanos que armazenei em pavimentos sem certeza. Os navios sempre maiores do que a minha natureza. À mesa, camarões condenados amparam-se até o fim da fome. Matadouro Imperfeito, de Patrícia Claudine Hoffmann, está disponível na loja virtual da editora Letradágua: (47) 3278 6335 e 98897 5551 letradagua@gmail.com #PatríciaClaudineHoffmann #Poesia #Katawixi

  • Tristeza não tem fim ou sim?

    Roselena e Walker Dante, mais uma vez sentados em confortáveis cadeiras dispostas estrategicamente no quintal após um longo almoço, não conseguem conversar de outra coisa a não ser sobre o Brasil… que os tem deixado muito, mas muito tristes mesmo: Walker Dante - Tem aquela música… “o trópico tropica, emaranhado no trambique, a treta multiplica*…” Roselena - Esse sentimentalismo não resolve nada, embora não seja de todo mau desabafar inteligentemente, poeticamente, musicalmente. W. D. - Então o que é esse Brasil que nos entristece? Sempre apenas uma abstração? Roselena - Temos que entender o processo, a estrutura, o sistema. O irmão do João Cabral mostra isso naquele “O negócio do Brasil”, o próprio pai do Chico Buarque também, naquele “Raízes do Brasil”. Depois tem o Darcy Ribeiro em “O Povo Brasileiro” e outros mais. A minha conclusão sobre a nossa tristeza é que isso que a gente chama de Brasil é uma coisa que tem dono, e este não somos nós, o povo. W. D. - Cada uma dessas coisas que você falou, processo, estrutura, sistema, são diferentes umas das outras. Meu descontentamento recai justamente no problema da passividade desse povo, que parece que vem desde sempre aceitando que o Brasil não é dele, prosseguindo cego, escravo, conformado em não participar do poder de transformar o sistema numa totalidade social mais justa. Assim essa coisa de “entender” é que não resolve nada! Entendimento é mais uma qualidade psicológica que política. Roselena - Estou começando a temer por sua saúde mental. A ação deve seguir o entendimento! Você não vê que as pessoas são enganadas pelas palavras, pelos discursos? Os políticos simplesmente iludem o povo com as palavras. W.D. - Mas simplesmente acreditar no entendimento me parece totalmente ingênuo. Basta tentar, com vistas a demover alguém de um posicionamento político irracional, argumentar com informações corretas sobre o erro de tal posicionamento. Simplesmente não se convence a pessoa a mudar de opinião. A maioria das pessoas não consegue ser livre diante da repressão generalizada. Roselena - Pois então continua enigmática a possibilidade de transformação social, tão necessária e urgente, já que vemos que o país está literalmente andando para trás. W.D. - A estrutura está dada, o sistema se discerne, o processo se realiza. Sabemos do inconsciente, da análise e da performance envolvidos na questão social. Nenhum desses conceitos se relacionam obrigatoriamente. A relação que você faz entre esses aspectos é apenas o esforço harmônico da sua mente inconformada com a desigualdade de poder na sociedade. Mas já que você quer: no caso do Brasil, “o povo” só participa - e olha lá! - do “processo”, a saber, no caso político, da “eleição”. Roselena - Pois é isso mesmo, justamente a “eleição” é a ferramenta do sistema que cabe ao povo utilizar para alcançar, a partir daí, uma possibilidade de mudança na estrutura. W.D. - Mas você é esperançoso mesmo. Como é possível a transformação social num sistema estruturado justamente na ausência do conceito de povo? Para a classe dominante o povo não existe! Essa classe é composta sempre do mesmo tipo através dos séculos: agentes da exploração de riquezas da terra, visando ao mercado externo. Para esses agentes é sempre uma vantagem tática manter as massas exploradas em perene situação de pobreza ou, melhor ainda, em miséria extrema. Roselena - A possibilidade está em eleger candidatos oriundos da representação dos interesses do povo. Isso, obviamente, se tal representação não for esmagada pela classe senhorial proprietária durante o processo eleitoral. Penso que, justamente, se é a palavra, o discurso, que tem o poder de enganar o povo, é também a palavra que pode revelar o descalabro da desumanidade da classe dominante brasileira ao mundo. Talvez o medo da opinião externa coloque um freio à audácia totalitarista dos mandatários. O próprio Darcy Ribeiro assinalou a “sensibilidade" dos ricos “brasileiros" frente a má opinião internacional sobre eles. W.D. - Fatos expressivos da audácia totalitarista, exploratória e repressiva, difundidos discursivamente pelo mundo é que não faltam, a começar pelo golpe de 2016, que derrubou a presidente eleita… Roselena - A lista é longa: continua em curso a tentativa de fraude às eleições deste ano, mesmo ainda longe de sua data, na tentativa de impedir a candidatura Lula, teoricamente o representante mais forte dos interesses do povo, à presidência; o atual governo, através de todas as suas frentes (executivo, legislativo, judiciário, e com o apoio dos grandes meios de comunicação) tornou irrelevante a Constituição, desmontando sistemas de saúde, educação, previdência social; abriu as áreas de infraestrutura, tais como portos, aeroportos e rodovias ao capital privado, além de promover sistematicamente a destruição da Petrobrás; até a água está sendo vendida (porém ainda não conseguiram vender o ar), e junto com tudo isso promove-se sistematicamente espetáculos de repressão militar… W.D. - Não tenho condições de discordar inteiramente da possibilidade de fazer da palavra um instrumento democrático e político. Porém isso continua me parecendo incrivelmente insuficiente e fraco diante das circunstâncias políticas. Porque, além do mais, isso que é o Brasil, ou seja, nesse caso apenas uma simples presa do capitalismo, parece se coadunar com a realidade global, embora baseada sobre estruturas diversas de acordo com a peculiaridade de cada lugar. Diz-se que a concentração do capital, hoje, assumiu um estágio nunca dantes visto. Em todos os setores importantes da economia, apenas uma ou duas empresas controlam o mercado mundial. Diante disso, que solidariedade o discurso de protesto democrático poderia angariar, ao se propagar pelo mundo, visto que o “projeto social-democrata" parece estar se dissolvendo como uma mera fantasia ideológica em todo o mundo? Roselena - Pois então se os argumentos apocalípticos baseados na perspectiva econômica hegemônica forem os únicos válidos, quanto aos rumos da história social, damos aqui, agora, o próprio mundo como acabado. Porém a questão é que esse ponto de vista, que me parece eivado de um cientificismo positivista, contém correspondentemente o clássico obscurecimento ontológico - e diga-se de passagem, isso denota uma flagrante má fé -, o qual favorece um “inefável nada" (como diz Adorno) no ponto de partida da análise da questão. O “capitalismo” vira uma abstração indomável, magicamente dominante e invencível, harmonizado com as massas que se sentem “socialmente supérfluas, nulas, apegando-se mesmo assim ao sistema que, querendo subsistir não pode deixá-las morrer de fome”. Um grande respeito ao Capitalismo não te parece também meio ingênuo, insuficiente e meio “fraco” como posicionamento político? W.D. - Ah! Então agora você está concordando com o meu “dane-se o entendimento”! É isso que eu quis dizer. Muitas vezes, sob uma espécie de “entendimento" esconde-se um servilismo que, por vezes, apenas mascara uma sentimento de impotência. Roselena - Finalizo minha participação nessa conversa, confiante no ser humano como tal, na glória de seu poder, citando o Berkeley, para que você tire suas conclusões: “poderá haver um povo trabalhador que seja pobre e um ocioso que seja rico?” W.D. - E eu replico o Adorno (será o Betinho?): “quando, numa sociedade em que a fome seria inevitável, aqui e agora, em face da abundância de bens existentes e evidentemente possível, e da mesma maneira existe a fome, então isto exige a abolição da fome pela intervenção nas relações de produção. Esta exigência brota da situação, de sua análise em todas as dimensões, sem que para tanto se precisasse da universalidade e da necessidade de uma representação de valor”. Referências: * “Tristes Trópicos”, música de Itamar Assumpção que faz trocadilho com o título da obra de Lévi-Strauss: https://www.youtube.com/watch?v=jh-HWGecr20 “Introdução à Controvérsia sobre o Positivismo na Sociologia Alemã”, ensaio de Theodor Adorno. “The Querist”, texto anti-metalista para uma Irlanda livre do jugo Inglês, de G. Berkeley. #Filosofia #Política #Brasil #Democracia #Eleições #Eleições2018 #Katawixi #LuamaSocio

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