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- No meu corpo vulcão
TRANSPASSA Eu tenho um corpo Que transpassa as vias da emancipação Tenho um corpo, que transpassa As vias da emancipação Tenho um corpo aceso Um corpo estereotipado Queimado num sol seletivo Um corpo quente, suado, forjado pra guerra Tenho marcas de um açoite contemporâneo Corpo bronze Estampado nas prisões Tenho um sangue coagulado Convertido em lavas que correm no meu corpo vulcão Corpo sem lugar fazendo-se de escudo e templo Tenho um corpo estigmatizado Subestimado Largado em praças, sem casa, sendo caça Corpo sem trabalho, sem boa aparência Fazendo-se de lugar e templo Tenho um corpo que transpassa as vias da emancipação Um corpo... Subjugado a nada Somente um corpo que cabe nas brechas da conveniência Cabível nas estatísticas Um corpo MIXcigenado Preto no que me cabe E entregue aos conflitos do mundo. ***** Precisamos recriar nossa revolução Recriar Poemas luta Poema guerra Poema imensidão Procuramos nas linhas da memória Resgatar raízes Fortificar as bases Fortalecer os oris Em meio às avalanches de desigualdades que estão à nossa volta Soltaremos um brado de liberdade Brado de guerra Empunhamos a magia de nossos ancestrais Para sermos invencíveis E invencíveis seremos ao partilhar nossas conquistas Invencíveis seremos se estarmos juntos Junto não só na palavra sem olhar trocado Junto pra rir e pra rangir Junto para seguir Pra ser mais e mais E cada vez mais preparar nossas continuidades Embora temos muitos avanços A liberdade ainda não foi garantida E se nos constituímos quilombo Seguiremos didé Seguiremos odara Seguiremos ocupando todos os espaços. ***** AGONIZA Corta essa sua carne dura e sangre Se for o único jeito de descobrir suas estradas Ferida aberta Falsa promessa Corta Corta essa Essa falsa fortaleza Corta essas certezas Deixa jorrar esse sangue Nesse peito aberto Enfia no oco seu ego Faze o presente ser eterno Cava suas memórias E reviva. ***** Eu G O T E J O Palavras Me embrenho por dentro das minhas moradas Me afirmo astuto Olho na caça e pés firmes para o próximo passo Eu, carrego no nome a seta Eu, cravo no peito e acerto a sina de quem me segue Tem cordão de ouro na minha flecha E sobre a mata Caminhos. ***** A cara nua Olhar com brilho de chuva Um pingo de traços de atraso Um pingo de ironia na boca de café Poesia Não é só viver de sonhos É trazer os sonhos para a nossa realidade Ainda sonho com banhos de sol na laje Poesia É retratar o desespero com leveza Mas, meus traços não carregam levezas futeis Então A escrita me salva Sou quem sou Como sou Dentro e fora Inundada ou vazia Sou como sou Dentro e fora da poesia. Raquel Almeida é poeta, é paulista, filha de nordestinos criou-se no bairro de Pirituba, na favela de Santa Terezinha autora dos livros: Sagrado sopro – do solo que renasço , 2014 Contos de Yõnu , 2019 blog Raquel Almeida : rakaalmeida.blogspot.com Coletivo Literário Sarau Elo da Corrente elo-da-corrente.blogspot.com IMAGEM árvore-corpo-vulcão por Walter Antunes
- Capoeira e arte-educação: corpo, mente e emoção
As palavras arte e educação expressam bonitas ideias sobre qualidades humanas em seu domínio próprio, que é o da cultura. Somos humanos à medida que cultivamos aquilo que nos torna humanos. Entre as coisas que nos tornam humanos estão a arte e a educação, ideias dinâmicas que devem se expressar em imagens de processos e práticas em movimento e desenvolvimento. O que se move e se desenvolve é o corpo, o pensamento e o sentimento de quem cultiva a arte e a educação. Observando sua estrutura integral, a qual aponta nitidamente para o movimento e o desenvolvimento de cada uma dessas “partes” do ser humano, a Capoeira pode ser considerada uma forma bastante completa de prática cultural humanizadora. Tudo o que é música, poesia e história na Capoeira movimenta e desenvolve os sentimentos, as emoções, o coração. Ao entrar em contato com uma canção tal como “Jogo de Angola”, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, os sentimentos são mobilizados pelo ritmo do samba, que estimula o corpo simultaneamente à letra poética, que por sua vez estimula a imaginação, tendo o tema da Capoeira como elemento de ligação entre a vivência individual e todo o conteúdo histórico, cultural e coletivo relacionado à arte. Aqui o indivíduo se “sente” imerso nas emoções de alegria e tristeza, com suas variadas gradações de acordo com a vivência de cada um. Se tal riqueza de sentimentos é passível de ser mobilizada pela simples audição de uma canção gravada, quanto mais será expandida no engajamento ativo pela participação numa roda, em que melodia e ritmo fluem de toda parte. “Berimbaus, atabaques, ganzás, agogôs, pandeiros, tudo é som e movimento. (…) A música é um dos instrumentos de preservação da memória, transmitindo as tradições de diferentes épocas do passado da Capoeira. (…) as cantigas irão acompanhar e descrever - numa linguagem peculiar - as situações que acontecem na roda, quando não ocorre do canto determinar, de forma sutil, o desenvolvimento das ações. A poesia pode significar uma provocação a alguém ou uma brincadeira com qualquer dos capoeiras; pode traduzir uma advertência à forma muita das vezes perigosa em que transcorre o jogo; pode ser ainda a reverência a um orixá”, explica Camille Adorno no livro “A arte da capoeira” (p. 64). O que chamamos aqui de “música”, inclui - além da arte que contempla a produção de aspectos especificamente rítmicos, melódicos, harmônicos e timbrísticos, formando gêneros específicos -, a arte da palavra, presentificada também em gêneros diversos, desde improvisos até cantigas e ladainhas, preenchidas de poesia e história. Os sentimentos estimulados e desenvolvidos através da música e da poesia podem ser capazes de gerar a energia necessária ao desenvolvimento dos aspectos corporal e mental. Ao se emocionar o ser humano se abre para a construção do conhecimento em nível intelectual. O contato com a música aponta para reflexões sobre a importância da Capoeira como elemento cultural no contexto histórico e político concomitantemente vivenciado nas emoções. Através de reflexões impulsionadas pelo acesso a filmes tais como “Besouro” ou “Mestre Pastinha: uma vida pela Capoeira”, a livros, textos, bate-papos, rodas de conversa e leituras, desenvolve-se a habilidade de um pensamento crítico a respeito da função da Capoeira na sociedade. A construção desse conhecimento é ampla, podendo se concentrar nas especificidades culturais da própria arte, com a história e o papel de cada um de seus elementos, desde os instrumentos, gestos, origens, variações e mestres, até às importantes ligações da Capoeira com a luta antirracista pelos plenos direitos políticos à igualdade: “investigar a proveniência da capoeiragem no Brasil requer analisar a condição de vida dos negros escravos, as tradições africanas, o encontro entre diferentes etnias africanas e brasileiras, o contexto escravista, a conexão de diferentes linguagens”, explica Sonaly Torres da Silva em “Capoeira: movimento e malícia em jogos de poder e resistência” (p.29). Aqui se delineia a Capoeira como um poderoso instrumento de educação do pensar crítico, a partir do estímulo a investigações e reflexões. O conhecimento da arte, no entanto, só pode ser considerado efetivo, quando é vivenciado pelos membros do corpo visível. Ao se constituir em gestos específicos na esfera motora, na ginga, que é dança e é luta, aquelas emoções, histórias e conhecimentos da Capoeira, já contidos no corpo invisível das emoções e dos pensamentos, literalmente se materializam como forma de vida. Arte é sobretudo “vida” na acepção de emergência de “sentido”, de realização de uma forma almejada, de presentificação de uma cultura. A vivência da dimensão corporal, motora, a presença física na roda, é o aspecto acabado, “completado”, da Capoeira. Aqui o corpo individual se realiza ao mesmo tempo que também é integrado ao corpo grupal, o qual é apreendido pela noção de coletividade ao mesmo tempo que também é vivenciado por relações específicas, seja entre pares, seja entre diferentes. A prática física, na roda, é a encarnação, a vivificação, a atualização da Capoeira, em simultaneidade com as emoções e conhecimentos. Embora a Capoeira possa ser apreendida a partir de impulsos e objetivos individuais, tais como considerá-la apenas um instrumento de condicionamento físico, por exemplo, sua própria estrutura impõe a vivência como “convivência” ao praticante. Essa especificidade dá sentido e importância ao corpo físico como modo de presença, ou seja, como elemento central da cultura humanizadora. Certamente é possível assistir a alguns vídeos de Capoeira e imitar seus gestos em casa, solitariamente, mas, com certeza, isso não poderá ser nomeado de Capoeira, ao contrário de outras práticas físicas, que podem ser realizadas integralmente sem a presença de outras pessoas. Isso mostra como a Capoeira é uma arte que nasce de uma visão de mundo integral, típica da sabedoria de povos originários, em que as dimensões física, emocional e intelectual dos seres humanos são todas simultaneamente vivenciadas, estendidas à convivência em grupo, ao viver cultural, em oposição à visão de mundo fragmentária e fragmentada, a qual, por sua vez, é típica do modo de vida colonizador, europeu. Por mais que a Capoeira possa ser identificada como tal a partir das características expressões da ginga - movimentos tais como Negativa, Resistência, Meia-lua de Frente, Aú, Bênção, etc. -, ao mesmo tempo parece ser impossível determinar uma padronização para o movimento de seu jogo, o que corrobora a arte como esse espaço próprio ao desenvolvimento do corpo individual e coletivo ao mesmo tempo, ou seja, como um espaço educativo, sem que tal seja especificamente enunciado, porque a educação, numa visão de mundo integral, se faz pela abertura a uma liberdade possível a partir da determinação cultural vivida espontaneamente (lembrando aqui que originalmente as rodas de Capoeira se davam no cotidiano da cidade). É por isso que preferimos aqui chamar a Capoeira de arte, e não de esporte ou luta, embora também seja um esporte e uma luta. “Não se pode classificá-la observando somente a função técnica dentro das possibilidades e aspectos da luta. Nesse caso ocorreria uma limitação dos elementos componentes, levando a uma padronização - ou estilização - derivada do seu emprego reduzido a apenas um propósito. Seria como se estabelecêssemos uma analogia entre a ginga, na Capoeira, e as bases das lutas orientais, ou a troca de pernas no boxe. Se admitíssemos esta relação, a ginga não mais diferiria das posições de luta mencionadas, apesar da sua dinâmica e uso indispensável. (…) Existe um princípio de movimentação em equilíbrio, com as ações circulares típicas do jogo, que determina uma forma de ginga para cada jogador, atendendo a suas características e preferências. (…) As padronizações - ou estilizações - levam à diminuição do espaço reservado à arte, aos improvisos de cada jogador, empobrecendo e descaracterizando o jogo, invertendo suas finalidades”, explica Camille Adorno (p.83). A palavra jogo também é uma ótima maneira de referirmo-nos à Capoeira, mas seu significado é mais generalizante do que o de “arte”. Segundo Johan Huizinga, em sua obra “Homo Ludens”, o jogo pode ser considerado um fenômeno anterior à própria cultura e sua primeira característica é justamente a liberdade: “Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. (...) Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade” (p.12). O jogo é essa espécie de elemento contraditório no seio da cultura, já que confronta a própria noção de sociedade como a forma de vida considerada normal, cerceadora da liberdade à medida que se estrutura e se fixa em leis e regras. Talvez, por conta de sua natureza de “jogo”, a Capoeira vai se metamorfoseando livremente em estilos diferentes, partindo do tipo Angola para se ramificar em Regional e Contemporânea. Nesse sentido a Capoeira filia-se adequadamente ao significado de “jogo”, expressando, desde suas origens, justamente a liberdade inerente à vida daqueles que eram considerados escravos pelas classes dominantes escravagistas. Ao filiar a Capoeira ao significado de “arte”, no entanto, operamos uma aproximação à ideia de educação, à medida que se pode tomá-la como uma espécie de instrumento para a evolução das potencialidades humanizadoras da cultura. Portanto, embora seja bastante comum a identificação da Capoeira como uma atividade eminentemente de destreza física, essa acepção se configura extremamente incompleta porque não leva em consideração a sua integralidade. Mas considerar a Capoeira como arte, ao mesmo tempo que a vincula a uma noção educativa, garante também sua total independência e autonomia em relação a essa esfera. Isso ocorre da mesma forma em todas as artes, as quais devem ser consideradas em seu valor intrínseco, pois embora a pintura, o desenho, a escrita, constituam importantes instrumentos educativos, isso acontece porque essas artes existem em si, para si. Van Gogh, Tarsila do Amaral ou Machado de Assis foram pintores e escritores e não educadores, e suas obras são quadros e livros e não rascunhos, anotações e processos de aprendizado. Aqui novamente somos remetidos ao aspecto cultural da Capoeira, o qual se delineia mais precisamente a partir de uma visão do plano mental. Nesse sentido aprende-se que há um nível na arte que ultrapassa essa instrumentalidade a qual a define como algo a ser utilizado pelo ser humano em direção ao desenvolvimento de habilidades gerais (os objetivos educacionais). Existe um nível em que o ser humano é que será o instrumento da arte, ele é que vai alimentar e sustentar a Capoeira, criando níveis de excelência dentro de seu gênero. Aprendemos sobre isso acessando a história dos mestres e, com sorte, convivendo com algum deles. Assim, a Capoeira, como instrumento educativo, deve ser também uma porta de entrada para níveis de excelência reservados aos futuros mestres, os quais são, na verdade, os guardiães da arte. Do ponto de vista da educação, situamo-nos, ironicamente e contraditoriamente, na posição de fomento ao desenvolvimento integrado das dimensões emocional, física e mental do educando, justamente fazendo parte de um projeto de civilização baseado no desenvolvimento fragmentário dos saberes e disciplinas, ou seja, imersos em um ambiente que preconiza o contrário da expressão de uma prática cultural tal como a Capoeira que é, em si, atividade integralizadora. É a ciência da educação que olha para a Capoeira discernindo em sua estrutura o direcionamento aos aspectos físico, emocional e mental e apontando para suas especificidades, ao passo que, em sua prática, a Capoeira é a vivência simultânea desses aspectos. Nesse sentido a Capoeira vai de encontro a um certo anelo da educação, que é fomentar o desenvolvimento integral do ser humano. Podemos encontrar essa aspiração educacional em diferentes correntes teóricas, desde os escritos de Paulo Freire até a teoria psicológica de Piaget, passando pela pedagogia Waldorf - a qual concebe a arte como aspecto central e privilegiado no processo educativo – dentre outras para, por fim, a própria educação ser considerada também uma forma de arte, como diz Paulo Freire: “Para mim, a educação é simultaneamente um ato de conhecimento, um ato político e um ato de arte”. Imagem: Walter Antunes
- Internet e extinção
Walker Dante e Roselena conseguiram dar um tempo na vida online, foram pescar, e entabularam uma conversa filosófica sobre a internet... Walker Dante - Gosto da famosa definição de Marshall McLuhan sobre comunicação: "o meio é a mensagem". Se você considerar cada um dos meios que vier à mente e selecionar uma única frase que possa condensar a mensagem correspondente, veja como fica: a mensagem da música é: ouça-me; da dança: imite-me; do desenho: veja-me; da escrita: decifre-me; da carta: responda-me; do livro: leia-me; do jornal: fique sabendo; do cinema: fique aqui; do rádio: acompanhe-me; da televisão: obedeça-me; da internet: compre-me. Roselena - Boa. Para você o significado de "mensagem" tem a ver com a emissão de uma espécie de comando. E além disso você encaixou o esquema do panorama evolucionista da teoria dos meios de comunicação dentro da teoria do McLuhan. Assim o que a gente chama de internet seria o resultado da evolução das espécies de comunicação. Walker Dante - Sim, isso é uma questão de culturas, umas indo para dentro de outras e todas coexistindo de alguma forma no contexto de uma nova forma de comunicação. Roselena - Então, para você, o que define a cultura é a forma de comunicação? Walker Dante - Esse é apenas um ângulo da questão... Roselena - Esse jeito de pensar não explica uma série de fenômenos associados ao tema da questão da comunicação, que vão desde tópicos tais como tecnologia tomando o lugar da ciência, o tema da indústria, dos objetos, a economia e a política, até os elementos estéticos, organizacionais, comportamentais, imagéticos e psicológicos... Walker Dante - Claro, cada um desses aspectos pode ser investigado extensamente dentro das linhas de seus campos correspondentes, mas, o meu ponto de vista aqui, busca apontar para um comportamento humano que possa ser observado como elemento universal relativo à questão. Veja como as ações induzidas por cada um dos verbos (ouvir, imitar, ver, decifrar, responder, ler, saber, ficar, acompanhar, obedecer, comprar) também vão evoluindo, em nível de sentido do significado, desde atividades passíveis de serem completadas no nível do próprio corpo humano, para atividades que se deslocam para fora do espaço corporal individual. Proponho observarmos, nestes exemplos de verbos, o fato de que há neles, na ordem colocada, uma evolução de modos de comportamento, que vão passando da dimensão sensível para a simbólica. Quando os verbos passam a evidenciar distância, seja de espaço ou de tempo, no conjunto do fenômeno da comunicação, imiscui-se aí o paradigma da quantificação no entendimento de seu sentido, em contiguidade com a expansão do campo simbólico. A partir daí o conceito de evolução identifica-se com a intensificação dos tópicos da velocidade e do volume. Essa intensificação corresponde ao aumento da importância do campo simbólico envolvido no fenômeno. Soma-se a isso o fato de que, velocidade e volume são, para a maioria das pessoas envolvida nos processos de comunicação, algo apreendido como abstrato. Embora haja um lastro de correspondência concreta no significado dessas apreensões, relativo à infraestrutura necessária para a manutenção do processo de comunicação, isso está tão distanciado do "usuário" dos símbolos, que gera a abstração como uma realidade, ocupando o lugar daquilo que costumamos classificar como "concreto". Você consegue perceber quanta ironia há nisso? Quem diria que justamente as objetivas "qualidades primárias" da filosofia empirista é que se destacariam à percepção induzida pelas abstrações forjadas pelos jogos de símbolos na era da cibercultura... desculpe essa digressão, mas é interessante testemunhar a passagem dos atributos da materialidade objetiva para a dimensão simbólica naquele velho processo de forjar o disfarce do saque através do truque da abstração. Chegamos ao ponto em que o símbolo virou matéria de posse e domínio nas mãos das empresas que comandam a cibercultura. Nada mais é imaterial nesse mundo. Roselena - Mas aí você não está diferenciando de forma clara os meios de tecnologia mecânica, especificados pelo manuseio físico por um lado, e o desenvolvimento das tecnologias simbólicas de outro... por exemplo: a diferença que existe entre uma câmera fotográfica do século XIX e um computador do século XXI. Walker Dante - Não estou me referindo a continuidades de paradigmas científicos ou tecnocientíficos, mas sim ao esquema fenomenológico da questão da comunicação no contexto cultural. Nesse sentido, McLuhan explica que os "meios de comunicação são extensões do homem", portanto, da mesma forma que as máquinas mecânicas, tais como um trator - uma esteira de indústria, um telescópio, uma caldeira, um avião -, são extensões de braços, olhos e pernas, funcionando em velocidade e volume maximamente aumentados, as máquinas digitais são extensões das habilidades simbólicas, funcionando em velocidade e volume maximamente aumentados. Considere que, ao falar assim, estou apenas me esforçando para ser didático, pois não dá para abarcar nesse momento todos os hibridismos decorrentes das combinações técnicas possíveis entre a mecânica e a eletrônica (adicionada da cibernética digital), por exemplo, tais como as técnicas da mecatônica computadorizada, etc. Roselena - Permito-me concluir, então, que a proposição dessa sua prosopopeia inspirada no McLuhan fala da intenção e foco de um emissor ocultados pela forma comunicativa advinda do poder intrínseco dos processos de comunicação... Walker Dante - ... sei lá, mas acho que é importante perceber que a nova ordem elimina todas as anteriores. De um ponto de vista radical não há relativismo, do tipo: "sei que a internet é um mecanismo de exploração do meu trabalho intelectual, mas também, em troca, me oferece a vantagem de facilitar minha comunicação com um público que eu quero atingir". O que eu quero dizer é que, mesmo essa nossa conversa aqui, não é mais uma conversa ou um texto para ser lido. Isso aqui é a moeda com que estou comprando a internet. É assim que ela me explora: ela está sempre me vendendo e eu estou sempre pagando. Claro, em troca do pagamento tenho a convicção de que recebi "algo" correspondente ao meu pagamento... nesse ponto a internet é apenas mais um empreendimento do sistema capitalista baseado no lucro. Esse "algo", seja o que for (um espaço para publicação, um feedback, uma "amizade", um "romance" ou a sensação de estar colaborando com o acervo de conhecimentos do big data em prol do progresso da humanidade) é inevitavelmente apenas estruturante do "compre-me" e não tem relação nenhuma com a "natureza" da finalidade do fenômeno de comunicação nomeado aqui de internet. Essa cisão assimétrica entre os interesses das instâncias do processo que a gente está chamando aqui de comunicação, se aplica a todos os outros meios. O leitor está dado pelo livro, o telespectador pela televisão e o comprador pela internet. O meio de comunicação é a mensagem e a mensagem é a ordem. Essas coisas, leitor, telespectador, comprador, são dadas pelos meios. Não existiam os leitores antes dos livros. Os historiadores dizem que antes do leitor houve o "desejo" de alguém se constituir leitor. E como explicam os psicanalistas, desejo é moeda. Quem deseja mais, paga mais. Claro, essa minha frase foi metafórica, não quis confundir os verbos da ordem dos meios de comunicação mas, de um ponto de vista psicológico, podemos dizer que a ação é função do desejo e, uma certa maneira de explicar essas relações, permite ligar diretamente as ideias de desejo e moeda. Mas não entraremos nessa via. Tenha em mente a explicação dos sociólogos, economistas e políticos a respeito do capitalismo, o sistema que estrutura o lucro. Lucro é uma maneira técnica de conceituar o que na antiguidade poderia ser chamado de roubo. Você sabe, o capitalismo hoje é capitaneado pela internet. Roselena - Retiro o que eu disse... na verdade acho que não tem nada oculto na internet. A IA (Inteligência Articificial), a mais recente expressão da cibercultura, é a própria morte, e enterra quem a usa. É o próprio roubo propagandeado. No whatsapp, por exemplo, a inserção obrigatória recente, do "campo" da IA no formulário do usuário, equivale a um anúncio dizendo que estão te roubando... Walker Dante - Sim, a universalidade da internet consiste nas seguintes reduções: o único gênero textual praticado no ambiente da cibercultura é a propaganda, sua única filosofia é a do roubo, sua única ontologia é a morte e a sua única existência é a positividade. Roselena - Ao colocar as coisas dessa forma, chocantemente simplificadas, o seu "compre-me" fez mais sentido, pois o que você chama de "universalidade" são distorções que, para serem implementadas, precisam ser "compradas", no sentido de, doravante, introduzirem aquele outro sentido para a vida, tão valorizado nesses termos: a inovação. Nesse caso, vejo que o sujeito do conhecimento implícito nessa inovação é o algoritmo, essa espécie de armadilha para a captura de tudo o que possa ser considerado conhecimento no ambiente da internet. Walker Dante - Talvez seja mais correto definir o sujeito como "o capitalismo", concordando com a conclusão que depreendemos da obra da professora Eni Orlandi, que faz análises sobre o discurso do povo, antes mesmo da internet. Nesse sentido o algoritmo, a partir da internet, emerge como a principal linguagem estruturante desse capitalismo. Mas você tocou num dos pontos-chaves da ideia de "inovação" alavancada pela cibercultura. O novo campo econômico de exploração capitalista fez declinar as anteriores instituições do conhecimento. A credibilização do big data gerou a descredibilização das outras instituições. É fácil observar como o "conhecimento", migrado de todos os processos das instituições anteriores, foi barateado infinitamente através da confiança generalizada nas plataformas de extração do big data e na sua exequibilidade. Do ponto de vista do projeto transumanista, o que o big data gerenciado pelos algoritmos da IA expressa, é a pretensão do número extinguir-se a si no paradoxo da incomensurabilidade quantitativa. Esse é o ponto alto do antiquíssimo ilusionismo da aritmética na pretensão do salto para fora da crassa computadorização, o sonho da passagem da dimensão quantitativa de seus informadores para a dimensão da "singularidade". É a nova roupagem do velho truque da abstração, que pretende atingir a forma idealista de uma nova dimensão qualitativa por consequência da magnitude quantitativa. Sabemos, no entanto, que o sentido desse dualismo refere-se apenas ao nível cognitivo da ordem técnica, instrumental, metodológica ou linguística, o que exclui a possibilidade de correspondência justamente à pretensão de seu ultrapassamento no nível metafísico. No esquema da construção do conhecimento não tem como a abstração ultrapassar a "entropia" oculta no âmago do seu próprio funcionamento. A rigor, a internet, como meio de comunicação, promove a extinção de formas de vida que aparentemnte não seriam exatamente conexas ao campo dos fenômenos do processo de comunicação, ao incluí-las no funcionamento de sua economia. Mas esse tipo de estranheza pode ser comparado às estranhezas introduzidas junto às mutações culturais contíguas ao advento de quaisquer outros meios de comunicação. Portanto a IA não é um novo sujeito, mas sim o mesmo de antes, aparentemente mais forte, no entanto, porque é nosso contemporâneo, adequado ao momento do tempo histórico. Em complementaridade, o sentido de "inovação" como sentido da vida, para o usuário, equivale à potencialidade consumista inerente à cibercultura, essa cultura do controle, que, se fosse como um triângulo, seria formada pelas pontas do acúmulo, do lucro e do consumo. Roselena - É... o que mais me espanta mesmo é esse totalitarismo. A internet abrange todos os comércios, todas as relações subjetivas, todas as artes, todos os trabalhos, todas as ciências... Mas amigo, é preciso entender que todas essas questões escapam por completo aos "usuários" da internet. A maioria das reflexões e preocupações relacionadas à cibercultura está muito longe desses aspectos mencionados por você. As pessoas se preocupam em primeiro lugar em estarem inseridas nas plataformas, ou seja, em participar da cibercultura e, depois, quiçá, debruçarem-se sobre as questões surgidas através das utilizações e suas implicações no nível da relação do processo de comunicação. Walker Dante - Ora, mas esse é o padrão do nível "crítico" da massa da humanidade disposta à exploração, pelos poderosos, em qualquer modalidade de jogo de poder dentro das culturas. Os donos da banca são, desde o início dos tempos, os verdadeiros ganhadores do jogo, e o esoterismo no esquema do poder de dominação entre os humanos é, há mais de um século pelo menos, um velho tópico da antropologia. As feições do jogo são dadas pelo sonho da cultura, que, no nosso caso atual é "consumir". De uma certa forma, tudo o que pode ser pensado sobre a internet ancora-se nesse sonho. O roubo por baixo do "compre-me" e todas as fenomenologias do "vende-se" forjam os objetos das análises semióticas ao infinito disponilizadas aos leitores desse mundo em todos os subgêneros discursivos e textuais correspondentes aos sonhos de consumo. Roselena - Parece-me que o que a singularidade transumanista revela, é uma profunda perversão, constituída sobre um desejo sub-reptício do sujeito-capitalismo, qual seja, o desejo de conquista da aniquilação daquilo que seria seu objeto, disfarçado, porém, pela salvaguarda da universalização totalizante do registro proposto pelo big data como um serviço humanitário de organização e controle social necessário e saudável na era da globalização. Walker Dante - Você fica impressionada com o poder do fantasma transumano... e com razão, afinal o espírito eterno desse fantasma é o velho dragão fascista, devorador de gente. Como todo fantasma, ele quer fazer com que você acredite que a matéria da vida é a memória mal resolvida, a qual, para ser bem resolvida, deve ser organizada e registrada com a ajuda das máquinas para a manutenção de sua virtualidade utilitária. Aquilo que está fora da memória em você, aquela força nova da vida natural, horroriza-se com a perspectiva desse conceito de existência exígua, realizada nas entranhas de cabos, linhas, programas, telas, frequências energéticas de equipamentos cibernéticos... vida reduzida a registros que, com sorte, levantar-se-ão um dia como miríficas e fugazes imagens de um ser na circulação cultural do tempo, em breves momentos "existenciais". Roselena - Sim, admito que esse sistema de registros, associado à tecnologia de acesso eletrônico pelos algoritmos, gera um angustiante sentimento devido, talvez, à instabilidade da informação, que, nessas condições, passa a significar ausência de verdade em tudo o que teria valor justamente por poder ser validado por uma espécie de estabilidade pressuposta. E como nós mesmos também nos identificamos com essas informações, através dos nossos próprios registros, chegamos assim ao vislumbre do aniquilamento da nossa própria verdade existencial mediante a instabilidade de nossa própria imagem diante de nós mesmos... Walker Dante - Pois é, o objeto explorado ou colonizado é, por princípio, o morto. Porém, apesar de tudo, vive-se. Na compra da internet, nós, usuários, recebemos, por exemplo, comunicação instantânea em troca de nossa participação. Por esses dias, numa entrevista para uma organização noticiosa, a cantora e compositora Adriana Calcanhotto, na ocasião do lançamento de um novo álbum de músicas infantis, mencionou o espantoso fato do “tempo da atenção”, que está mais rápido agora, nos seguintes termos: “se você não se comunicar em um segundo alguém desiste de você”. Ou, também, pode-se receber, em troca do nosso pagamento, uma facilidade qualquer, por exemplo, o poeta norte-americano Charles Bernstein acaba de lançar um livro de poesias escrito pela IA, a qual debruçou-se sobre suas obras anteriores, devidamente registradas nos arquivos cibernéticos, facilitando o trabalho "braçal" da poesia. Através de algoritmos variadíssimos, essa IA fez novas combinações com as velhas imagens e palavras dos antigos livros de Bernstein. Depois, o poeta só teve o trabalho de escolher os melhores textos para sair no seu livro. Veja que esses são pequenos exemplos "microscópicos" dentre todas as mutações comportamentais, psicológicas, utilitárias, enfim, culturais, implementadas pela cibernética, como você sabe. Roselena - Claro, mas para mim, a substituição (que você chama de mutação) cultural, mais ameaçadora e evidente, implementada pela cibercultura, é a do pensamento, pois se o pensamento for definido, filosoficamente, como uma função da memória, como geralmente é, então os computadores alimentados pelo big data pensam melhor que qualquer ser humano. Mesmo que você venha me dizer que pensamento pode ser definido de várias outras formas, por exemplo, podemos dizer que pensamento é interpretação também e, nesse caso, as memórias vivenciadas individualmente, a alma única, contribui para a formação de um pensamento diferente daquele possível pelo computador... mesmo assim o que essa diferenciação significa? Na prática social, nada. Esse tipo de diferenciação permanece como valor banal, ilusório, restrito, inútil, precário e irrisório diante da máquina que faz agora a maior parte do serviço da organização simbólica. Ou por outra, vejamos, as tarefas de ordenação, as quais compõem o princípio técnico de grande parte das atividades humanas simbólicas, são comumente associadas (o senso comum supõe assim) com a atitude da atenção (você acaba de dar um exemplo sobre isso no trabalho da IA para o poeta). A própria atenção é atribuída, por metonímia, à qualidade dos robôs de operação simbólica, às IAs, enquanto é retirada cada vez mais do campo da atividade humana (você acaba de dar um exemplo sobre isso na afirmação da cantora). Os algoritmos fazem uma espécie de drenagem das habilidades e recursos humanos para dentro da máquina cibernética totalitarista. No entanto eles operam realizando apenas tarefas decididas de antemão, a partir de uma programação quantitativa de dados simbólicos, ordenados numericamente, como alternativa preferível às possibilidades menos quantitativas. A consequência disso é uma crescente exclusão de dados da própria possibilidade da memória, um gigantesco empobrecimento cultural. Walker Dante - Mas amiga, me parece que justamente esse empobrecimento faz parte da lógica da escassez na estrutura capitalista à qual estamos nos referindo aqui o tempo todo. Parece que a sua questão com as máquinas cibernéticas radica no fato de vermo-nos humilhados em nossas habilidades que são tomadas por elas. Entendo que, diante dessa degradação, passemos então a tentar resgatar nosso sentimento de dignidade, o qual deveria ser compatível com uma certa posição inevitável de cidadão planetário na era globalizada. Num próximo passo, começamos a nos forçar a um comportamento de nos atentar para ações que fogem ao maquinal vigente, tentando sair fora da cibercultura. Nesse caso, num nível achamos que nos safamos, mas no nível seguinte vemos que não ganhamos dinheiro do velho modo. As máquinas são as donas do dinheiro. Por isso elas não são só máquinas, no sentido de serem objetos que obedecem ao humano. Aqui estamos aprisionados na própria existência definida pelo maquínico como cultura, como já foi explicado pelo Guattari, Deleuze e outros. As máquinas da cibercultura não são nossas e não podem ser adquiridas porque o capitalismo é assimétrico por "natureza". O dono da máquina é a máquina só que não. A tecnociência desenvolvedora da cibercultura é um assunto em segredo. Os ladrões são sofisticados. Roselena - Certo... mas ainda assim, consideremos: a essência da forma é a finitude. É sabido, desde o início, que a computação é uma forma de roubo. Desde que se inventou o zero os grãos das areias do deserto passaram a não ser mais levados em conta. Resta agora confiar na criatividade humana. Para um mundo infinito há a necessária correspondência da eternidade. Walker Dante - Ora, quanta melancolia nessa metafísica gasta com o assunto das máquinas... façamos silêncio... vamos pescar. Imagem: Walter Antunes da exposição com os pés na Terra
- Petricor - O Aroma da Terra
O cheiro agradável que surge após uma chuva, especialmente depois de um período de seca, é o resultado da interação entre compostos orgânicos e a chuva, que cria um aroma reconhecível e agradável denominado petricor. Esse fenômeno é bastante comum e apreciado, e o nome deriva do grego: “petra” (pedra) e “ichor” (fluído que corria nas veias dos deuses na mitologia grega). Petricor é um fenômeno químico que ocorre quando compostos voláteis, produzidos por certos microrganismos do solo, como a geosmina, e óleos vegetais exsudados por plantas durante períodos secos, são liberados no ar pela ação da chuva. Estes microrganismos desempenham um papel crucial na decomposição de matéria orgânica, ciclagem de nutrientes e promoção da saúde do solo. Quando as gotas de chuva atingem o solo seco, formam microbolhas que aprisionam esses compostos. Ao romperem-se, essas bolhas dispersam aerossóis contendo as substâncias voláteis, resultando no aroma característico. O petricor, apesar de ser um fenômeno mais relacionado à percepção sensorial humana, tem uma importância indireta e simbólica no manejo do solo, especialmente em práticas agrícolas e ambientais. Embora o cheiro em si não tenha um efeito direto no manejo do solo, os processos ecológicos que o geram são indicativos de aspectos importantes da saúde e qualidade do solo. Solos que liberam petricor após a chuva geralmente têm um bom equilíbrio de umidade e estrutura, permitindo a respiração dos microrganismos e a presença de matéria orgânica. Esse equilíbrio é essencial para a retenção de água e a prevenção da compactação, fatores que influenciam a produtividade agrícola. O petricor tem uma conexão cultural e psicológica que pode ajudar agricultores e manejadores de solo a desenvolver uma sensibilidade maior para a saúde do solo. O reconhecimento desse fenômeno pode aumentar a conscientização sobre a importância de manter solos saudáveis e equilibrados. Afonso Peche Filho Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas www.iac.sp.gov.br
- Gestão do carbono na propriedade agrícola
A gestão do carbono em uma propriedade agrícola está inserida como ação cotidiana que se traduz em práticas concretas e dinâmicas. Longe de ser apenas um conceito teórico, a gestão do carbono não só é essencial para mitigar as mudanças climáticas como possibilita efetivamente uma agricultura sustentável. O carbono no solo é fundamental para a saúde e a produtividade agrícola, além de exercer um papel essencial no equilíbrio ambiental. É um componente vital da matéria orgânica, melhorando a capacidade de retenção de nutrientes no solo para disponibilizá-los de maneira sustentável ao longo do tempo. Solos ricos em carbono também têm uma maior capacidade de retenção de água, o que é crucial para a produtividade, especialmente em períodos de escassez hídrica. O carbono é fundamental para a formação de agregados do solo que mantêm sua estrutura e porosidade, sendo também uma fonte de energia para bactérias e fungos, que desempenham funções essenciais, como a decomposição da matéria orgânica e a ciclagem de nutrientes. A gestão do carbono na propriedade agrícola pode ser abordada por meio de quatro atividades principais: sequestro de carbono, redução de emissões, manutenção do carbono no solo e comprovação para certificação. Essas atividades compõem o que pode ser denominado de “Modelo de Gestão do Carbono”, específico, de cada propriedade. O sequestro de carbono refere-se à captura e armazenamento de carbono atmosférico no solo e na biomassa vegetal. As plantas absorvem CO₂ durante a fotossíntese e parte desse carbono é transferida ao solo por meio de raízes, resíduos vegetais e matéria orgânica. Práticas como o cultivo de plantas de cobertura, sistemas agroflorestais e rotação de culturas aumentam o sequestro de carbono, acumulando-o no solo de forma estável. A redução das emissões de carbono e de outros gases de efeito estufa, como o metano e o óxido nitroso, é essencial para minimizar o impacto da agricultura no clima. Cobertura permanente do solo, aplicação racional de fertilizantes, manejo adequado de resíduos em sistemas de compostagem e o uso de energia renováveis ajudam a diminuir as emissões de gases associados às atividades agrícolas. Agricultura com essas características, evita a liberação de carbono e de outros gases que contribuem para o aquecimento global. A manutenção do carbono no solo é o processo de preservação do carbono já acumulado pela natureza e pelas práticas agrícolas, evitando sua liberação rápida para a atmosfera. Técnicas como o plantio direto e a cobertura permanente do solo protegem a matéria orgânica e minimizam a oxidação do carbono. Com isso, o carbono permanece estável no solo, melhorando sua estrutura, fertilidade e capacidade de retenção de água, criando um ambiente ideal para o desenvolvimento da vida no solo. Essas três atividades: sequestro, redução de emissões e manutenção do carbono formam a base da gestão sustentável do carbono, promovendo ambientes mais produtivos, resilientes e alinhados com a conservação ambiental. As atividades de comprovação para certificação incluem diversas práticas que documentam, quantificam e validam o sequestro de carbono, a redução de emissões e a manutenção de carbono no solo. Essas atividades, quando bem documentadas e verificadas, formam uma base para a obtenção de créditos de carbono, possibilitando ao agricultor não apenas contribuir para a mitigação das mudanças climáticas, mas também gerar uma fonte adicional de renda. A certificação é o processo final em que uma entidade externa verifica e atesta as práticas e resultados de captura de carbono, formalizando os créditos de carbono obtidos. A gestão do carbono, quando praticada de forma integrada e contínua, promove uma agricultura regenerativa e ecológica, onde o solo, o clima e os recursos naturais da propriedade interagem para criar um sistema equilibrado e produtivo. Esse ciclo virtuoso traz não apenas benefícios ambientais, como a mitigação das mudanças climáticas, mas também fortalece a resiliência da propriedade, aumenta a qualidade do solo e melhora a produtividade, transformando a gestão do carbono em uma aliada essencial para o agricultor do futuro. A figura em anexo esquematiza a gestão do carbono na propriedade agrícola. Afonso Peche Filho Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas www.iac.sp.gov.br
- Orquestra dos Músicos das Ruas de São Paulo
MÚSICA E MAGIA FOTOS POR WALTER ANTUNES Quando a música é verdadeira e inteira, realiza a magia da existência. Brilhante e plena por si mesma. A fotografia reflete. Orquestra dos Músicos das Ruas de São Paulo FOTOS EM 12 de julho de 2024 sexta-feira Galeria Olido São Paulo Livio Tragtenberg concepção, direção musical, clarone Emerson Boy voz, cavaquinho, sax alto Luís Rodrigues tuba Celso França percuteria Esteban Pascual sopros Rajana Olba alaúde Felipe Martins sanfona Peneira repente Sonhador repente Gabriel Moreira harpa
- Geovana
Gostamos de ser capturados pela sagacidade do tom de Geovana. Sentimo-nos vingados, como brasileiros, por essa inteligência rescendente de um timbre que evoca tudo o que soa perspicácia e irreverência na herança africana de nossas irmãs. Ninguém resiste ao charme, espontaneidade e doçura dessa voz que atravessa firme as décadas ingratas da história do samba na indústria musical brasileira. Uma voz que canta a liberdade sexual na gostosa e viciante "Quem tem carinho me leva", surgida no meio dos anos 1970, e a liberdade fraternal na comovente e não menos viciante "Caminhar", de agora, dos anos 2020. Dessa voz não se diz coragem porque sua força é pura naturalidade e a sua música puro desembaraço. Geovana é ela mesma o sol brilhante que "ilumina a cabeça desse povo" que tem a felicidade de ouvi-la.
- Via Sat
É descoberta. É invenção. Não é mistura. Não é resumo. Tudo pulsa verdadeiro, inteiro e vibrante. Não há facilidades ou ondas para surfar. Um álbum que anos antes de ser lançado já era cantado por multidões na praça. Cantado pelo povo, povo de verdade, povo com sangue nas veias. Um álbum extremamente procurado e raríssimo de ser encontrado, aí sim isso é resumo, não da música, mas da política e caminhos ou descaminhos do Brasil. Neste álbum, pedra rara e visceral, Pácua, Maureliano e todo o Via Sat descobrem o mundo e inventam o Brasil, um Brasil verdadeiro que é feito de inteireza, não de metades, não de meias verdades.
- O espírito rio do barqueiro
O NASCIMENTO DE DEUS No ventre da manhã formou-se o belo Trazendo fagulhas de pontas cortantes Com frente pagã ergueu-se o menino Revendo figuras de velhos amantes A dança dos homens é vista sem Falo Embrião cortado com força dos dentes O grito dos mortos é dito no calo O uivo dos vivos é visto de frente Adulto imortal, rebelde e valente Poder descomunal latente ao Tao Cristianizou o pagão dos nascentes No molde da beleza reafirmou o mau Na brisa tangente ressuscitou o crente Com preço informal o mataram de repente A LUTAR Ente Rios e riachos Corta uma linha em passos De pessoas insaciáveis Famintas de terra viva Divididas a força e aço Entre grandes nortes Há pessoas soltas sem marco Pesadas cordas de fadiga Cantando ao barulho do motor Entenda a cantiga! Entre o dono e o senhoril Há um malandro, marmanjo Gargalha à altura do cio De fato um homem viril Sujeito de vergonha vil Entre Sul e Norte Há um homem eterno Cabra de força, materno De braços divididos a ferro De ombros maiores que terno Entre Brasil e Brasis Há vagantes, parceiros, revoltos Para o homem de terra viva Restou um lar, um sonho, cantar O canto sem calar O sonho sem vagar Um lar a cavar Eis o sonho do campo Uma cova De luta A Lutar O FIM DA TERRA Roubaram as minhas terras Meu teto Meu leito Minha família Meu sagrado Devolveram quintais papéis que não sabia ler Não quero saber ler dessa forma Roubaram meu conhecimento Minhas técnicas Meu modo de sobrevivência Zombaram do meu viver Do meu ser Do meu querer Agora retiram novamente O que nunca pode ser dado Não foi doado Arrancado Levaram os meus papéis Destruíram meu quintal O Sol há de brilhar todos os dias DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS Entre os dois Há espaço! Há relativismo. Não existe, entre os dois, Pequenez e nem grandeza Entre os dois Há espaço! Há relativismo. Existe, em cada um, Singularidade semelhante Peculiaridade relativa Entre os dois Há espaço! Há relativismo. Atingir ambos com flechadas Torná-los diferentes Vê-los iguais MORTE SÃ Nos dias dos mortos eu não consigo dormir É noite e o vento sopra mais uma vez Na minha casa as luzes querem se apagar Já está tarde para ir ao encontro com meu avô Todos partiram, sempre estive só em minha casa Nasci só, mudo as mobílias de um lado para outro Permaneço no quarto, vou ao banheiro, vou à sala É noite, Dia dos Mortos, o vento sopra. Permaneço intacto deitado no chão da sala Percebo meu corpo, percebo o Corpo Já não sou mais nada, nunca fui nada Sinto as paredes, sinto os cômodos, sou Casa. Já não é mais tarde, posso ir ao encontro do meu avô Leve, sereno, meu corpo se desfaz, eu me desfaço Sinto a presença de nada, sinto-me como no ventre - Vovô, ensina-me a ver poesia? SERTÃO Naquele mato, feto em construção Há bichos no átrio, comunhão Onde homem vira pedra Pra falar com o Caramulhão É na pegada da sorte Que homem velho faz rebuliço Corre na ventania da morte Grita antes do grito Dizem que viver é sorte Viver é sertão em rito Recai sobre a pele escamada A força da noite de luz O couriço já não sente nada Desencarna em vida, reluz A força criadora do viver Nos vértices dos reviventes Se não há poder maior Que morrer sempre à frente Não se sabe o que é sertão O ser que transmuta gente FOTÓGRAFO Escreve com delicadeza silhuetas poéticas de presença Faz da memória um acontecimento futuro Comprova em um click o sentimento disperso Alegria, sorrisos, verdades Reproduz no cerne do momento A faísca de esperança Desperta a certeza de fazer da vida Uma representação da Beleza O fotógrafo é aquele que revela O imperceptível O perceptível O percepto Pinta um quadro com cores de tempo Pincela um azul tão quente a ponto de queimar a presença Na busca de reviver A alegria de outrora Toma o espaço como o seu Molda com as pontas dos dedos Traços, cores, linhas, retas E assim refaz um lugar inimaginável Nos corações daqueles que acreditam Daqueles que sentem A Realidade O ESPÍRITO RIO DO BARQUEIRO Não há diferença entre o rio e o barqueiro, em outra perspectiva, é mesma coisa. O barqueiro toma como sua casa o barco. O corpo sente na travessia os dedos respirarem, leva o motor para lá e para cá. Olha para o Rio, água, água, água, corpo. Existe um corpo, Corpo-Rio que não faz parte do barco. Existe um espírito, sol, rio, corpo. Sente na casa o espírito. Morar na casa é viver constantemente o corpo não percebido. Sentido. Perguntem ao barqueiro, perguntem ao Seo Pedro Você conhece bem o rio? Você conhece bem o seu corpo? Poemas e Fotos de Léo Daniel Léo Daniel Maranhense, viveu parte da infância e adolescência em Goiás. Adentrou à vida adulta na região do Bico do Papagaio, lugar onde se formou em Letras pela Universidade Estadual do Tocantins. Mora em Imperatriz, Maranhão, faz mestrado em Letras pela UEMASUL. É professor, pesquisador e amante da fotografia e literatura. contato: leodanielsilva@gmail.com
- O inacreditável olhar do que não é cego e finge não ver
o choro alimenta um joão a risada dá comida pra uma hiena que comendo a mão até o cotovelo ri que comendo a mão até o cotovelo ri hiena ria, hiena ria, hiena ria, hiena ria ria, ria, ria, ria, ria, ria, ria (Virna Lisi, Hiena Ria em "O Que Diriam os Vizinhos?") Alguém pode dizer “é o domínio total da máquina, da grande engrenagem sobre a humanidade”, outro alguém ainda diria “sempre foi assim”. Independente da frase de fuga o que vemos é a inação da quase totalidade das pessoas. A opção por não se fazer presente de forma plena, não exercer seu poder político (talvez dizendo aqui: “mas eu não tenho poder”), não lutar pela vida, pela própria vida. Tudo poderia estar na grande prateleira de livros dos inúmeros momentos de hipocrisia coletiva na história como apenas mais um volume, mas essa já não é mais uma possibilidade, a humanidade enfim encontrou o seu limite. Limite de se esquivar, de se esconder, de não se fazer presente nas decisões de toda a humanidade. Nunca antes vivenciamos um momento como o atual, onde a possibilidade de toda informação e conhecimento acumulado pela humanidade está na palma da mão, sem a necessidade de algum talentoso vidente para fazer a leitura dos segredos contidos nas linhas do destino. Durante séculos esse foi o escape mais fácil: dizer das dificuldades do trânsito das comunicações, da falta de conhecimento do que se passa até mesmo ao imediato redor para justificar a inação, o não se mover, o não se importar, o esquivar-se. Sim o limite chegou e não há mais como dele se esconder. A humanidade está diante do dilema de tomar para si a responsabilidade de ação plena sobre a sua vida presente em todos os níveis de existência ou manter-se boiando na atitude irresponsável e assistir ao não futuro dessa vida. A enciclopédia da destruição infinita No anedotário enciclopédico que dominou durante séculos a propaganda da máquina de destruição também conhecida por seu mote principal “tomar para si aquilo que não é seu”, fomos todos alfabetizados para crer no dogma de que certas coisas são infinitas, entre elas a natureza e as gentes. Não importava quantas árvores fossem derrubadas, a floresta era infindável. Não importava quanto dos povos nativos fossem exterminados de uma terra, eles sempre continuariam a existir. Extinção não é uma palavra recorrente na enciclopédia dos donos da grande narrativa que fez o mundo todo se acomodar em torno da lógica do falso desenvolvimento predatório e aniquilador que nos trouxe ao atual momento limite. Quando muito extinção aparecia como a ocorrência de um mero acidente de percurso do processo. A recente pandemia experimentada pelo mundo, que muitos ainda tentam provar que teria sido produzida a partir de laboratórios, não trazia o risco da extinção de toda a humanidade, mas serviu com perfeição ao propósito de fazer as pessoas temerem por sua própria extinção. Utilizada no volume e pressão corretos essa ameaça de extinção individual é uma ferramenta perfeita para a nova acomodação das individualidades no novo cenário que há muito vinha sendo desenvolvido dentro do princípio fundamental do jogo de exaltação das individualidades e o completo apagamento do coletivo. Os dez mandamentos Então temos no imediato momento de pequena pausa na pandemia que é estabelecida como ameaça à sobrevivência do indivíduo e não da humanidade, o aprofundamento da nova ordem como mandamentos pregados no estábulo da fazenda dos animais: 1 você é importante 2 você é o que importa 3 fale sempre de você ao mundo como se você fosse uma grande estrela de cinema, pois você é importante 4 não existe mais vaga de trabalho no mundo para ninguém, mas você tem que manter as suas oportunidades 5 para o sucesso do mandamento quatro, mantenha o foco em você apenas 6 se te disserem que tudo está ruindo, não acredite, priorize você, pois você é importante 7 se você perceber que tudo está ruindo, não acredite na sua própria percepção, mantenha o foco em você, pois isso é o que está escrito no primeiro e no segundo mandamentos 8 qualquer coisa que faça você questionar as evidências ou fatos e enfraqueça o seu rendimento na manutenção das suas oportunidades, num mundo onde não existem mais vagas de trabalho, deve ser combatido com pílulas de prazer, até que você retome o foco em você, você é o que importa, você é o importante 9 independente do que aconteça, faça sempre propaganda positiva de você mesmo, lembrando que isso manterá as oportunidades para você, lembrando que você é importante, lembrando que você é o que importa 10 siga sempre todos os mandamentos, do contrário há de encontrar a ira do sistema que cancelará você, que apagará você, você é o importante, você é o que importa, você deve continuar sempre existindo Cancelando o conhecimento Todo o verdadeiro conhecimento humano, todo o desenvolvimento humano real, todas as legítimas tradições humanas, como alguns preferem chamar, adequadamente programados e cancelados pelo terror promovido lentamente, passo a passo e por fim revelado na trégua ameaçadora da pandemia. Então com os pulmões cheios do fôlego causado pelo medo, as ovelhas balem alto: “1% manda, 8 bilhões obedecem”. A prateleira da presença-ausência O limite da humanidade está no Congo, está no Sudão, está na Palestina. As guerras e o genocídio de povos narradas através de releases e legitimadas por autores falaciosos sob contratos e por imagens do cinema, assimiliadas ao longo de séculos, implicam na aplicação da reverberada auto-indulgência salvadora, sempre a mesma: “não sei sobre o Iraque” “não sei sobre o Vietnã” “não sei sobre o Afeganistão” “não sei sobre Toussaint Loverture” “não sei sobre os Aweti” “não sei sobre a Namíbia” “não sei sobre o embargo contra Cuba” “não sei sobre o marco temporal” “não sei sobre o paralelo 38N, não sei sobre o paralelo 11” “não sei sobre Belo Monte nem Brumadinho” “não sei sobre Sykes-Picot” “não sei sobre os milhões de habitantes da América antes da invasão de Colombo” “não sei sobre os Rohingyas” “não sei sobre a Síria” “não sei sobre Raoni” “não sei nada sobre os Uigures” “não sei nada sobre o holocausto Armênio” “não sei sobre a Líbia” “não sei sobre Canudos” “não sei sobre a perseguição de mil anos aos judeus na Europa” “não sei sobre o Haiti” “não sei sobre o Curdistão” “não sei sobre a invasão do México, das Filipinas, do Japão” “não sei sobre os Katawixi” “não sei sobre os Yazidis” Tudo cabe, caberia, dentro do esquadro do papel do novo escravizado, amedrontado pela trégua da pandemia, distraído através das infindáveis diversões eletrônicas que recebe para se manter operante para o sistema, entretido pela sua ração diária de falso pão e de cerveja - sim, a cerveja e o futebol são a bebida do escravo há milhares de anos - se não fosse o limite a que chegamos. O fim do mundo civilizado na Palestina O limite na Palestina é a nova forma de fazer as coisas pelo 1% que domina os oito bilhões da humanidade. Os ataques ao Líbano, Síria e Irã, procurando atrair outras forças para um conflito generalizado, as versões unilaterais de propaganda que tentam difundir a falácia de um perigo ao mundo pelos Houthis do Iêmen e pelo Irã como fizeram através de extensa propaganda contra o Iraque em 2003 e o Afeganistão em 2001, os massacres feitos pelos milicianos sionistas na Cisjordânia e em Jerusalém ocupada contra os palestinos, tudo integra a tradicional estratégia do colonizador que lucra com a guerra e lucra sobretudo com o roubo das riquezas de cada lugar, executando o “tomar para si aquilo que não é seu” como feito nos últimos cinco séculos na América, África e Ásia. A incessável destruição vista por toda a África através da implosão dos frágeis estados nacionais, eles mesmos originados e moldados pelos colonizadores com fins de perpetuação da colonização, com ininterruptos conflitos étnicos e religiosos que produzem o deleite da mídia do auto-proclamado mundo livre, fomentados o tempo todo pelos países ocidentais, permite a eficácia das operações dos saqueadores das riquezas naturais de todo o continente. Somália, Líbia, Congo, Sudão, dezenas de outros países em ebulição para serem submetidos aos interesses dos países colonizadores através de suas “empresas e agências de cooperação e desenvolvimento”. Tudo isso ainda se enquadra com facilidade dentro da estrutura colonialista tão conhecida do mundo com milhões de africanos no processo de extermínio nesse momento. Já em Gaza está acontecendo agora o limite e o fim da civilização como fomos condicionados a acreditar que seria possível existir. O genocídio atual após cem anos do cerco minuciosamente planejado e executado ao povo palestino pelo plano britânico-sionista, após o genocídio da Nakba de 1948, após o confinamento e o apartheid das décadas seguintes ao 1967, é a síntese e o aperfeiçoamento de toda a ampla coleção de atrocidades realizadas em diversos momentos da humanidade. Se anteriormente essas atrocidades eram relatadas por viajantes ou historiadores, restando a cada indivíduo a reflexão e o cálculo do tamanho da barbaridade cruel, em Gaza temos a transmissão ao vivo, 24 horas por dia, do equivalente aos cercos de cidades medievais por exércitos sanguinários, do extermínio instantâneo de vilarejos inteiros pelos norte-americanos no Vietnã, o equivalente à Hiroshima e Nagazaki, equivalente às grandes marchas da fome contra os indígenas nos Estados Unidos, contra os africanos na África, contra os povos nativos na União Soviética. O mundo todo assiste a execução a cada minuto de crianças, mulheres, idosos, de toda a população de Gaza, forçada a deixar seus lares ancestrais, a se deslocar a cada minuto enquanto os bombardeios milimetricamente planejados matam o povo, destroem casas, escolas, igrejas, hospitais, mesquitas, museus, universidades, todo o registro do passado da vida em Gaza, toda a perspectiva de presente e futuro. O mundo todo vê em transmissão ao vivo a tortura promovida pelo exército de Israel estruturado e financiado pelos governos dos Estados Unidos e dos países europeus (Alemanha, Inglaterra, Itália e outros), um exército que tortura, mutila, faz retrato das vítimas pisoteadas, zomba da intimidade de lares palestinos e se apossa de pertences íntimos dos aniquilados. Crianças, mulheres, idosos, civis: duzentos mil assassinados, mutilados, torturados, esmagados em Gaza, assim como no Sudão, no Congo, na Síria, na Líbia, no Afeganistão. Com a única diferença que ao contrário dos outros genocídios em curso, grande parte das cenas do genocídio do povo palestino está transmitida ao vivo nos stories das redes sociais de entretenimento. Diante desse espetáculo sórdido e imoral, síntese do aperfeiçoamento das atrocidades dos mais cruéis momentos da humanidade, o mundo assiste calado: a hipocrisia dos seus líderes e governantes, o silêncio cúmplice das nações árabes, a não manifestação da maioria da população mundial, a inação da ONU e de todos os organismos internacionais. Na Palestina está assassinada toda e qualquer ideia de civilização e cooperação entre os povos que possa um dia ter sido propagandeada como possível e existente. O próximo alvo Utilizando da lógica de destruição de um povo originário está aberta a temporada da caça individual em todas as partes do mundo: em breve, em qualquer momento, em qualquer lugar - pode ser tomando café da manhã na padaria da esquina - qualquer um pode ser o alvo a ser atacado e eliminado instantaneamente por qualquer força de extermínio fardada ou não, que se arrogue julgadora-executora, se valendo de qualquer mandamento auto-impresso, sob o olhar atônito, mas concordante, de todos os outros da vizinhança, que hão de dizer e pensar diante das ações dos autômatos exterminadores: “deve haver alguma razão nisso tudo” e “antes ele do que eu”. Ainda assim o cidadão padrão injetado-inserido do “mundo global digitalizado-totalizado civilizado”, líquido ou não, criptografado ou não, desempregado-empreendedor ou não, nômade digital ou não, sentindo-se confiante e protegido no seu castelo de garrafas de cerveja ou de diversões eletrônicas ou com a posse de inúmeras armas de fogo legalizadas ou mergulhado profundamente em alguma teologia do domínio ou qualquer outra falácia mal impressa, entre um grito e outro de gol, poderia dizer: “e eu com isso?”, mas a fantasia hipócrita não é mais uma possibilidade de fuga ou sobrevida, no máximo é apenas violenta aberração reverberativa. O fim da vida humana na Terra O ponto de não retorno da floresta amazônica, que para a ciência de encomenda, jamais chegaria, foi enfim listado para 2050, em seguida antecipado para 2029, agora pode ocorrer a qualquer momento. Os indígenas e os povos da floresta lutam a sua mais importante batalha pela salvação da Amazônia e da vida enquanto o mundo assiste e aplaude o avanço da destruição pelos velhos negócios dos fazendeiros colonizadores, o início da exploração de petróleo na foz do rio Amazonas e a construção com apoio dos governantes de estrada de ferro dentro da floresta para escoar as próprias riquezas da terra. O gelo da Antártida assim como a floresta Amazônica, sempre esteve na lista de coisas infinitas das enciclopédias. Após décadas de negacionismo por grande parte do mundo acadêmico quanto ao derretimento provocado de forma direta pela ação humana, a Antártida também se aproxima do seu ponto de não retorno. No mundo com a informação impressa na palma da mão, não há quem não saiba o significado do ponto de não retorno. O degelo do “gelo permanente” do Ártico e das cordilheiras, a destruição das barreiras de corais estão próximos ou já ultrapassaram o ponto de não retorno. Toda a destruição da natureza no planeta pela ação humana, dia a dia, de cada ponto interligado, está prestes a produzir um novo planeta inabitável para a humanidade. A destruição do equilíbrio das correntes marítimas, o fim da água doce, a extinção das florestas que ainda restam, prestes a aumentar as temperaturas para um nível impossível para o ser humano sobreviver, seja pelo calor intenso, seja pela destruição total de qualquer forma de cultivo de alimentos. A ONU, a instituição que não consegue deter o genocídio dos povos pela expropriação colonialista, afirma que a humanidade tem apenas os dois próximos anos para salvar o planeta. Então o cidadão do mundo que não se importa com a destruição da civilização, talvez possa querer se importar com a destruição da vida na terra ou escolher ser como um rato numa caixa de ratos de laboratório, sempre tentando se esconder para ficar por último para ser usado nos testes ou como gado bovino na fila do abatedouro, tentando driblar a fila e se colocar na última posição de abate. A dúvida é se a sua voz ainda poderá dizer: “E eu com isso?” Dependendo das escolhas, não haverá cápsula do tempo com recorte dos feitos humanos, bunker com design futurista, nave espacial, tutorial de dancinha frenética, mini-diário de nômade digital, hieróglifo em pirâmide ou relato de alguém a seu neto que dará conta de narrar tão singular experiência coletiva e individual do homo sapiens no planeta azul. link para site: Walter Antunes foto: Oráculos (exposição Oráculos / Walter Antunes)
- Uma Necessidade Urgente
A abordagem relacionada com bacias hidrográficas imediatamente remete às questões com água. Mas outros pontos têm o mesmo peso e importância, como a cobertura vegetal. Os ecossistemas naturais são responsáveis pela regulação climática, polinização, abrigo da fauna, dispersão de sementes, controle natural de pragas e doenças, recarga hídrica e, principalmente, por uma significativa contribuição para melhoria da qualidade das águas de superfície que chegam ao leito dos rios. Além de tudo, estão ligados aos aspectos culturais e ao bem-estar da população. Pela legislação, as áreas de preservação permanente e reserva legal teriam que manter mais de 20% da área da bacia com cobertura natural nos biomas brasileiros, com exceção da Amazônia, onde essa porcentagem é maior. Se tudo fosse ao “pé-da-letra” era para todos os cursos d’água estarem protegidos e os fragmentos interligados, estabelecendo uma “rede de proteção” e conectividade. Um grande problema é que esses fragmentos apresentam uma progressiva redução da quantidade e do tamanho ao longo da bacia. Grande parte destas áreas sofre com problemas de fragmentação e degradação, o que resulta numa preocupante perda da diversidade animal e vegetal. O que aparenta é que os “Povos das Bacias Hidrográficas” menosprezam os fragmentos florestais remanescentes. Pouca ou nenhuma atenção vem sendo dada às consequências do processo contínuo de perturbação das áreas protegidas por lei. Na realidade, os fragmentos florestais, principalmente localizados em propriedades particulares, são abandonados e sofrem todo tipo de perturbações. Seria necessária uma atenção no sentido de ampliar a revegetação das Áreas de Preservação Permanente – APPs, e alocar as Reservas Legais, nas propriedades que ainda não a possuem. Nas proximidades dos fragmentos florestais, enriquecer e conectar a vegetação existente. Estas ações, permitiriam um menor efeito de borda nos fragmentos florestais e propiciaria uma maior permeabilidade do fluxo gênico na paisagem. Entender a conectividade dos fragmentos é necessário para aumentar a qualidade da polinização e dispersão de sementes, bem como para fomentar o deslocamento da fauna ao longo de toda bacia. Ações como essas, associadas a iniciativas de prevenção e combate a incêndios, enriquecimento vegetal e diminuição no uso de pesticidas, vão ao encontro da melhoria na qualidade dos fragmentos florestais e de toda a água produzida no interior da Bacia Hidrográfica. A figura acima destaca diferentes formas de fragmentação e perturbação em um trecho da Bacia do Rio Pardo – SP. Afonso Peche Filho é Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas Thiago Pinto Pires é Engenheiro Florestal – Chefe de Divisão do Jardim Botânico de Jundiaí
- Téo Azevedo
Sabia do nome, não sabia das histórias. Não sabia da lenda. Foi assim que conheci o Téo Azevedo em 2002 numa noite paulistana em um restaurante nos Campos Elíseos: ele estava terminando de jantar, eu chegava com amigos para prosseguir a conversa interrompida no estabelecimento anterior - uma mistura de café, lanchonete, boteco - frequentado por nós quase todos os dias, onde como já era costume, a casa acabara de nos mostrar a tabela com o horário de funcionamento e pedir para que fôssemos embora mais uma vez. Quando fomos apresentados, ele como o Téo Azevedo, eu o jovem produtor cheio de fôlego para furar as muralhas da burocracia musical estagnada, Téo apertou a minha mão de um jeito que se manteria o mesmo por vários anos em nossos encontros. Um jeito desconfiado e escorregadio que contrastava com a conversa franca e direta. Só muito tempo depois fui entender que aquele era o verdadeiro aperto de mão do calango, já por natureza escorregadio e arisco, aperfeiçoado pelo trânsito nos caminhos irregulares de um Brasil inteiro. Notei quando Téo abriu o porta-malas do carro para me entregar alguns cds e cordéis, que as caixas de discos dividiam espaço com dezenas de dicionários. Dois meses depois desse primeiro encontro, tínhamos uma apresentação para o Téo na feira do livro em São José do Rio Preto. Durante as conversas tive que convencer o Téo de que Barretos não ficava no caminho do show, ele queria passar por lá para tomar um café na casa de Gedeão da Viola a quem tinha confiado seu sobrinho Rodrigo Azevedo para fértil período de aprimoramento das artes da viola. No camarim antes da apresentação, disse ao Téo que não precisava me agradecer no palco. Não adiantou. Ele não só agradeceu como o fez cantando numa quadra de repente. Foi nessa noite que fui entender a história do "Cálix Bento" e o Téo. Aos poucos fui descobrindo histórias e mais histórias sobre o Téo que pareciam impossíveis de terem sido vividas pela mesma pessoa numa única vida. A cada história descoberta eu me envergonhava pelo tamanho da minha ignorância. Ainda criança, com nove anos, Téo começou a cantar calangos em feiras no sertão mineiro como atração para a venda de um misterioso elixir, terminava sempre a apresentação cantando com uma cobra enrolada ao pescoço. Ele e seu parceiro pernambucano Antônio Salvino, o dono do elixir, viajaram por centenas de cidades por vários anos, até que um acidente com o caminhão em que estavam colocou fim à parceria. Téo foi sozinho aos 16 anos para Belo Horizonte, lá trabalhou de diversas formas para sobreviver, virou boxeador tri-campeão mineiro de boxe, cantava seus repentes e vendia os seus cordéis nas feiras livres, antes de conseguir gravar os primeiros discos impressos em materiais pouco duráveis, aqueles que permitiam tocar a música três, quatro vezes no máximo. Foi em 1965 que gravou "Deus Te Salve, Casa Santa" (Cálix Bento) alterando a melodia da tradicional música e acrescentando mais três estrofes. Em Belo Horizonte além de se apresentar tocando os seus repentes em praças, circos e casas de shows, produziu discos de outros artistas, criou um estilo novo para dançar gafieira “o puladinho”, fundou uma escola de samba, foi aclamado como o melhor compositor mineiro pela crônica local. No início dos anos 1970 Téo já estava morando em São Paulo, havia se mudado em 1969, se apresentando em praças e palcos em que conseguisse algum espaço. Dessa época é o convívio com Guaiatã de Coqueiro e muitos outros artistas que procuravam caminhos para a sua arte na capital paulista: Maxado Nordestino, Deodato Santeiro, Coriolano Sérgio, Venâncio, Alceu Valença, Sebastião Marinho. Numa noite foi chamado para substituir um grupo de samba-rock numa badalada casa de shows, Téo estava receoso da sua música tão brasileira do sertão não ser bem recebida pelo público “moderno e exigente” da casa, ainda assim foi convencido a se apresentar. Era para ser uma única noite, ficou dez anos consecutivos tocando praticamente todos os dias no lugar. Em 1974 Téo Azevedo lançou o álbum “Grito Selvagem”, um dos primeiros discos que mistura música popular brasileira com soul, rock, samba-rock. Um disco que foi redescoberto e passou a ser cultuado pelos colecionadores de raridades nos anos 2000. Com “Ternos pingos da saudade”, música em parceria com o poeta Cândido Canela, Téo venceu de forma absoluta, em 1978, o Primeiro Festival de Música Sertaneja realizado pela Rádio Record de São Paulo, então a líder absoluta da chamada música sertaneja-caipira. As evidências mostram que a vitória do Téo contrariou o "mainstream" daquele momento no mundo sertanejo, que torcia para que o vitorioso no festival fosse escolhido dentro do padrão de “dupla sertaneja” que a indústria tentava impor. No mesmo ano Téo lançou o clássico álbum “Brasil, Terra da Gente”. Um dia encontrei o Téo por acaso no Anhangabaú, ele estava saindo de uma livraria e carregava uma pesada sacola. Paramos para tomar café, eu curioso, perguntei o que era aquilo, ele estendeu as mãos e me deu o pacote dizendo: “me falaram que meu nome está aí”. Abri e vi: era uma gigantesca edição do Dicionário Cravo Albim de música popular brasileira. Páginas e páginas tentando contar sobre o Téo. Naquela edição somente havia para Luiz Gonzaga e Tom Jobim tantas páginas dedicadas a um único artista como aquelas páginas que falavam do Téo. Naquela altura eu já sabia de algumas histórias. Não sabia da lenda. Não sabia que Téo é a pessoa que mais produziu discos no Brasil: mais de três mil álbuns de diversos artistas. Não sabia que Téo tinha escrito o Dicionário Catrumano. Não sabia que Téo foi o primeiro a aparecer falando, cantando, escrevendo sobre o pequi e a magia entrelaçada da vida do sertanejo com a ecologia e o equilíbrio do planeta. Não sabia da parceria de Téo com Luiz Gonzaga nos anos 1980, Luiz que um dia viu numa feira no sertão mineiro o menino Téo cantar na década de 1950. Não sabia que Téo tinha escrito e publicado dezenas de livros sobre plantas medicinais e cultura popular. Não sabia que Téo tinha milhares de composições suas gravadas, que ele é um dos três compositores mais gravados no país. Não sabia que Téo foi preso aos 17 anos por se apresentar como repentista em Belo Horizonte e que só foi liberado após apresentar e cantar sua defesa em forma de repente dizendo “que é um crime prender um cantador”. Não sabia que o Téo nasceu no dois de julho, a data em que os baianos finalmente expulsaram o exército português e que muitos consideram o verdadeiro dia da independência do Brasil, feita pelas mãos do povo. Não sabia que Téo tinha milhares de cordéis escritos por ele. Não sabia que esses cordéis eram estudados em universidades americanas, europeias e até no Japão. Não sabia que o Téo saiu da escola depois de completar a primeira série e foi trabalhar engraxando sapatos, carregando malas, capinando hortas, cantando nas feiras, para poder ajudar a sua mãe Dona Clemência e seus irmãos, após a morte de seu pai por febre tifóide no interior de São Paulo. Não sabia dos encontros e parcerias do Téo com Tião Carreiro, Antunes Filho, Zé Coco do Riachão, Rubens Avelino, Charlie Musselwhite, Jackson Antunes - este último que quando criança viu o Téo já adulto cantando numa feira, o que o inspirou ainda mais em ser um artista. Não sabia da misteriosa e inusitada festa particular com Téo tocando com Bobby Keys, os Rolling Stones e Bob Dylan em 1998. Não sabia das caminhadas de Téo com Carlos Drummond de Andrade pela praia em Copacabana no Rio de Janeiro, para conversarem sobre parcerias, poesia e a vida. Uma outra noite encontrei o Téo por acaso e ele me deu alguns cds que tinha acabado de produzir e lançar. Outros que ele estava relançando. Havia entre os discos o “Blues Matuto”, então Téo me contou do seu encontro com o Blues Etílicos. O convite inicial foi para uma breve participação em uma única música num show da banda. Mas os músicos e o público não deixaram Téo sair mais do palco e a pequena participação virou quase quatro horas de desafios e improvisos e uma parceria nova. No fim da noite Téo se lembrando de outros discos me levou até o carro, porta-malas aberto, me entregou outros cds. Ali estavam outros inúmeros dicionários, novos e usados. Desta vez perguntei o motivo daquilo. Então Téo me contou: ele vivia comprando dicionários em São Paulo e toda vez que viajava para o norte de Minas Gerais (Alto Belo, Montes Claros), ele levava aqueles dicionários, entrava nas cidades pelo caminho e deixava um dicionário na escola pública ou na prefeitura de cada cidade, fazia isso há mais de vinte anos, me explicou que muitas cidades não tinham visto nunca um livro. Era uma noite de inverno paulistano de 2005. Quando São Paulo completou 450 anos, Téo produziu por conta própria um album-síntese da metrópole contando a história da cidade de modo poético, misturando repente, samba, rock, embolada, música caipira, jazz, hip hop, com dezenas de músicos convidados, antes que toda essa mistura virasse moda. Estava o Moisés da Rocha, o Téo e eu tomando café no início da noite numa lanchonete frequentada por músicos, compositores, artistas, num entrocamento que anteriormente ficava no centro de vários estúdios e gravadoras - os estúdios e gravadoras todos fecharam, mas as pessoas continuavam a frequentar o lugar para saber das produções dos outros artistas. Téo falou de Guimarães Rosa, ele que já tinha feito vários trabalhos sobre a obra do autor de “Grande Sertão: Veredas”, aguardava ansioso, após anos de espera, pela autorização da família do escritor para o lançamento do álbum ao qual tinha se dedicado tanto e tão carinhosamente. Na casa do Téo em São Paulo numa tarde para organizar alguns arquivos, eu vi sobre a mesa uma porção de partituras alinhadas, perguntei do que tratava e mais uma vez tive uma lição e descoberta: as partituras eram uma parte dos cem chorinhos que Téo vinha compondo e que foram lançados em seguida com diversos músicos e intérpretes convidados sob o conceito de “Choro do Cerrado”. Foi por essa época que notei que o aperto de mão do Téo havia mudado comigo. Não era mais aquele toque fugidio, era agora um aperto de confiança. A conversa continuava franca e direta. Um dia o Téo apareceu com uma caixa e uma carta, era o comunicado da sua vitória no Grammy que ele estava recebendo pelo seu disco: “Salve Gonzagão, 100 anos”, dentro da caixa estava o troféu do Grammy. Eu já sabia de algumas histórias. Não sabia da lenda. Não sabia que Téo era filho do mitológico “Tiófo, tocador de um braço só” - lavrador, aboiador, ferreiro, tropeiro, folião de reis, repentista e cantador que perdeu um braço durante um trágico acidente de caçada. Finalmente a autorização um dia chegou e o Téo pôde lançar “Mineirada Roseana”, uma grande homenagem a Guimarães Rosa. Encontrei o Téo e ele estava com um braço enfaixado, perguntei o que tinha acontecido e ele me contou sobre a noite anterior voltando para casa nos Campos Elíseos. Três caras o abordaram, ele conseguiu - talvez se lembrando dos tempos de boxeador - se livrar dos três e fazer o facão que um deles segurava cair no bueiro, foi quando apareceu às suas costas uma mulher com um pedaço de madeira que o nocauteou. O paraíso dos Campos Elíseos grego-paulistano já não era mais tão paraíso nem feito de muita honradez. Eu não sabia ainda sobre o Téo e o Terno de Folia de Reis de Alto Belo. Durante a pandemia sem a possibilidade de trânsito e estando no norte de Minas Gerais, Téo me contou por telefone que estava gravando uma dúzia de discos novos por lá e que tinha aproveitado o tempo com artistas e parceiros locais para filmar o longa metragem “U ômi qui casô cua mula”, baseado num cordel seu, publicado em 1981. O filme logo apareceu em cartaz. E o Téo completou 80 anos, compondo e gravando novas músicas. Escrevendo e contando novas histórias e novos livros. Colocando tudo na mala e saindo pelo Brasil de praça em praça, espalhando essas músicas suas, essas histórias de tantos artistas e tantos brasis, sempre o Téo independente de tudo como o país o ensinou a ser. E tudo parece sempre uma sequência do menino cantador que caiu da boleia do caminhão, do menino cantador que caiu no mundo: a mesma feira na mesma praça para o artista brasileiro vender o seu elixir. Então eu já sabia mais das histórias. E um pouco da lenda. Num telefonema para preparativos de uma sessão de fotos para livro e disco, eu disse para o Téo que ele não precisava levar muita coisa para fazermos as fotos: apenas duas camisas diferentes, o chapéu e a viola. Ele disse que já tinha separado a viola e que ia levar uma “rozini”, eu entendi ”rosinha”. Disse para o Téo que viola rosinha não ia combinar não. Téo começou a repetir do outro lado da ligação “é rozini”, “é rozini”, eu dizia para ele “rosinha não”. Até que Téo falou alto “é rozini seu moço”. Então eu escutei. Então eu entendi. Ligações de longa distância, almanaques ligeiros, transmissões digitais, nunca foram, não são e nunca serão a melhor forma de conversar com as pessoas, de descobrir histórias e tentar aprender sobre as lendas, sobretudo as lendas vivas. fotos: Walter Antunes imagens da galeria: acervos diversos sobre as histórias do Téo Azevedo