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A ciência se transformou em escrava da utilidade


A principal referência histórica das relações entre utilidade e ciência no discurso filosófico remonta à figura do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626). É de se notar que essas relações estão também intimamente vinculadas à ideia de ciência moderna, manifestada principalmente através de suas qualidades materialistas e progressistas, ou seja, à ideia de ciência tal como se configura em linhas gerais no imaginário atual.

Destacaremos, sobre Bacon, as seguintes afirmações: “erigiu como divisa a máxima saber é poder, pois o saber, para Bacon, é apenas um meio mais vigoroso e seguro para conquistar o poder sobre a natureza e não tem valor apenas em si mesmo; cultivava entusiasmo pela técnica; desejou que a ciência servisse à humanidade em geral; propôs a teoria da indução como base para o método científico e o método científico consiste na observação metódica e experimentação; defendeu que a harmonia e o bem-estar dos homens repousam no controle científico alcançado sobre a natureza e a conseqüente facilitação da vida em geral; vislumbrou que a ciência não é obra individual mas coletiva” (1).

Não obstante as controvérsias sobre a validade ou eficácia da indução como base do método científico (2) e a sua eventual substituição pela dedução, os valores da ciência anunciados pela filosofia de Bacon seguem inalterados. E mais: a evolução desta ideia de ciência em íntima conexão com o desenvolvimento do imperialismo inglês (e hereditariamente dos EUA), de seu industrialismo, de sua economia capitalista ora denominada neoliberal, de seu modelo de civilização, fez desses valores da ciência os próprios valores da sociedade da era da propaganda, do consumismo e da massificação. Pode-se afirmar então, que tais valores que, ao que parece, nasceram de uma contestação a valores anteriores, vivem, por assim dizer, o seu apogeu na contemporaneidade.

É em meio à predominância dessa mentalidade que nasce a crítica do filósofo australiano radicado nos EUA, Hugh Lacey - militante de causas ecológicas relacionadas com a tragicidade das técnicas atuais da indústria agrária -, a alguns aspectos dos valores que se tornaram senso comum sobre a ciência. Lacey tem uma vasta obra na área da Filosofia da Ciência que, basicamente, propõe a prática de uma ciência para a era da globalização sobre a base ideológica da democracia participativa, em que os projetos científicos deverão se adequar ao pluralismo de valores inerente à diversidade de contextos sociais, ecológicos e culturais existentes no planeta. Neste caso, por exemplo, nem sempre será mais útil o domínio da natureza ao invés da sua preservação. Entre as teses que Lacey propõe sobre a interação entre valores sociais e ciência, a Tese 10 expressa este pensamento nos seguintes termos:

"O objetivo da ciência é bem servido pela institucionalização das práticas científicas sempre que uma pluralidade de estratégias, associadas respectivamente a diferentes valores sociais, possa ser ativamente adotada. Isso também tornaria possível uma maior manifestação da neutralidade, faria com que mais atenção fosse dada a questões de valor suscitadas por aplicações, e – acima de tudo – promoveria o fortalecimento de instituições de participação democrática" (3).

A tradição científica que se segue a Bacon consolida a ideia de que a ciência é o meio principal do progresso da humanidade rumo ao bem-estar geral. E o faz através principalmente do que Lacey chama de abordagem descontextualizada dos fenômenos que trata.

A visão que sustenta a abordagem descontextualizada é aquela que afirma que a ciência é em si, livre de valores, o que quer significar que a utilidade da ciência é universal porque não depende do direcionamento de interesses e desejos subjetivos porque o próprio método científico garante a objetividade.

Lacey argumenta que, no entanto, a própria noção da ciência sem valores já está imbuída de valores. Estes não se evidenciam convencionalmente como valores, mas habitam o espaço da ideologia tradicional da ciência. São eles, a Imparcialidade, a Neutralidade e a Autonomia.

Esses valores, que propiciam a abordagem descontextualizada, ironicamente, ao invés de terem promovido o bem-estar geral da humanidade, acabaram por mascarar, ao longo da história, inúmeros interesses políticos e econômicos de grupos específicos aos quais a ciência tem servido.

Diante deste cenário, Lacey propõe alguns redimensionamentos filosóficos para a ciência da atualidade. Na perspectiva de Lacey o objetivo da ciência será mais o entendimento do que apenas o conhecimento, e a atenção à Neutralidade garantirá a consideração de uma pluralidade de estratégias necessária à diversidade de interesses sociais.

Mas mesmo que racionalmente possamos pensar, juntamente com Lacey, que os níveis de utilidade do produto da técnica científica para fins de valores sociais terá de variar de acordo com o contexto social, cultural e ecológico, o comprometimento da ciência com o projeto global de desenvolvimento modernizador “representado pelas instituições e valores hegemônicos nos países industriais avançados” (4) reveste toda a sua performance com o valor da utilidade direcionada ao “crescimento econômico, industrialização, transferência de tecnologia moderna, integração à economia capitalista mundial” (5). Assim, de um certo ponto de vista, todos os produtos da ciência e da tecnociência serão úteis, atém mesmo independentemente de terem sido necessários antes de existirem, pois a ciência, atrelada aos propósitos do neoliberalismo, tornou-se o principal agente cultural dos tempos atuais. Uma consideração desta situação levará à consciência de que a própria cultura do mundo globalizado é modelada em grande parte pelos processos científicos. Por este aspecto nada será então mais útil ao mundo do que a ciência, já que ela própria figura como móvel dos modos deste próprio mundo. O senso comum é apenas coerente com este estado de coisas. Neste sentido, até mesmo o tipo de pesquisa científica que teria a pretensão da grande ciência, aquela ciência “idealista”, autônoma, movida pela curiosidade inerente ao espírito científico, que pretende apenas produzir previsão e decisão sobre os objetos mais variados, sem fins sociais aparentes, estará compondo a esfera da utilidade por se considerar ela mesma contribuindo para o progresso de um todo maior que é a própria ciência-cultura.

Portanto, Lacey insiste em lembrar que a abordagem descontextualizada pode produzir ciência sem limite, mas muitas coisas ficam de fora da “linha” da abordagem. Segundo Lacey a explicação científica relaciona-se com a descrição dos fatos empíricos, porém pode também ser utilizada para confundir objetivos. Muitas vezes a explicação não aborda fatos relevantes que ficaram de fora. Escolhe-se uma coisa, ao invés de outra. Para Lacey, somente não perdendo de vista os ideais da Imparcialidade e da Neutralidade as instituições científicas terão condições de se conduzir através de uma atenção à pluralidade de estratégias, tentando superar a estreiteza dos limites da abordagem descontextualizada.

Para finalizar mencionaremos o caso polêmico, no Brasil, da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Embora cerca de 350 cientistas de todo o país tenham produzido um documento indicando desastres ecológicos, sociais e culturais irreversíveis e incomparavelmente desvantajosos para o país, do ponto de vista da sustentabilidade, em relação à possível vantagem da construção da usina, bem como a não-necessidade de um pólo gerador de energia de grandes dimensões para o local; embora o Ministério Público tenha elaborado ações jurídicas para o impedimento da obra; embora houvesse manifestações do povo, de protesto em passeatas pelas ruas das cidades do Brasil, contra a construção, a presidenta do país, juntamente com o grupo de pessoas interessadas nos lucros que a obra lhes proporcionará, seguiu firme na decisão da construção da usina. Uma ação dos mesmos moldes foi o projeto de transposição e desvio das águas do rio São Franscisco, ameaçando biodiversidades e culturas sob o conceito da sustentabilidade. Esses são alguns exemplos retirados dentre inúmeras escolhas e ações políticas desenvolvimentistas envolvendo altas tecnologias geradas por uma ciência descontextualizada, que entram em conflito com o conceito de sustentabilidade, via ausência da democracia participativa.

Bibliografia

BACON, Francis. Novo Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Interpretação da Natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

LACEY, Hugh. Valores e atividade científica 1. Editora 34: São Paulo, 2008.

LACEY, Hugh. Valores e atividade científica 2. Editora 34: São Paulo, 2008.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2007.

SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Publifolha, 1998.

WATSON, Lyall. Onde vivem as lendas. Tradução de Luiz Corção. São Paulo: Difel, 1979.

ZATERKA, Luciana. A filosofia experimental na Inglaterra do século XVII: Francis Bacon e Robert Boyle. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2004.

Notas:

1 Palavras retiradas do texto de José Aluysio Reis de Andrade sobre a Vida e Obra de Bacon na Introdução ao Novo Organum, Coleção Os Pensadores, 1979.

2 Para Popper, por exemplo, “que incoerências podem surgir facilmente, com respeito ao princípio da indução, é algo que a obra de Hume deveria ter deixado claro. (...) as várias dificuldades da Lógica Indutiva são intransponíveis. (...) conduzem a uma regressão infinita ou à doutrina do apriorismo” (pp.27-31), 2007.

3 p.30, VAC 2.

4 p. 200, VAC 1.

5 p. 200, VAC 1.

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