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* Osvaldo Duarte

"A menina comilona" ou a arte de sentir arrepios transversais


O livro “A Menina Anolimoc” (“Menina Comilona” ao contrário), de Adnavlag Queiroz Oavlag (Galvanda Queiroz Galvão ao contrário) me impactou profundamente: a profusão de imagens, a hiper-realidade, a inteligência e concepção incomuns, tudo isso me deixou fortemente impressionado. A primeira reação foi procurar paralelos, tentando encontrar outras expressões literárias ou estilos com os quais o livro pudesse dialogar, mas fui aos poucos me convencendo de que toda tentativa de aproximação com outros discursos obrigavam-me a recuos imediatos. Cheguei a inferir (indevidamente) que o livro flertasse com o nonsense ou com a narrativa fantástica, concluindo depois tratar-se de narrativa caleidoscópica, cujas imagens brotam das criações sintáticas; da disposição parelha de termos em contraste que formam oxímoros e paradoxos; do emprego polissêmico de palavras de natureza homônima, de modo a sugerir numa mesma frase mais de um sentido denotativo, efeito que amplia as possibilidades de soluções de enredo ao mesmo tempo que cada uma dessas possibilidades pode construir redes próprias de sentidos subjetivos.

Chamou-me especialmente a atenção o modo como os procedimentos formais adotados agem contra a lógica da realidade empírica, pois ao mesmo tempo que atuam a favor de uma dimensão horizontal e sintagmática, própria da prosa e da informação social, possuem também aquela dimensão vertical, paradigmática, simbólica, que define a poesia. Ao propor-se como narrativa, o texto assume o compromisso de representar algo, um “como se”, por meio da ficção, compromisso que lhe empresta as feições de enredo e exige dele a devida obediência à coesão e às lógicas de um tempo e um espaço próprios. A linguagem utilizada, contudo, constrói um objeto crespo, cortante e avesso à efabulação, de modo que toda a lógica inicialmente proposta pela intenção sintagmática, acaba por sensualizar-se, desestruturando-se, numa espécie de delícia e volúpia das palavras.

Desse processo, resultam os simulacros de espaço e tempo, que uma vez desestruturados, agem sobre as demais categorias narrativas, determinando-as. Isso se explica pela tensão entre as dimensões acima expostas, tensão que faz com que a linguagem ricocheteie entre a prosa e a poesia e salte da representação da realidade para a imaginação da matéria, como diria Bachelard evocando o direito de sonhar, o desejo de mais ser. (1989, 1996). As transgressões ou artifícios de invenção propostos pelo texto poder-se-ia dizer, não coadunam com a imaginação formal derivada da abstração e caracterizada pela desmaterialização e pela intangibilidade. Pelo contrário, tanto a Menina comilona, personagem, como o narrador e o escritor parecem confluir para uma mesma entidade, numa convergência para o que Wayne Booth (1980) chama de autor implícito, portando-se, enfim, como inventores da própria matéria.

Para essas vozes, independentemente de se manifestarem juntas ou separadamente, tudo parece possível. Por meio da Menina se estendem “pontes sobre os muros”, se “descobre(m) sítios”, se “amplia(m) as fissuras” por onde se pode denunciar as posturas conservadoras e espiar novas possibilidades de existência. É por isso que o hiper-realismo do livro parece às vezes romper a barreira do realismo, como se dialogasse com o fantástico, já que nem a personagem, nem o narrador se incomodam se as suas ações e pontos de vista coadunam com a lógica da realidade factual. Como um palimpsesto, o texto permite sempre ver-não-ver uma escrita subjacente a ele, ampliando suas referências e possibilidades de leitura. Do conjunto de imagens resulta uma crítica equilibrada aos modos mecanicistas de produção e, ao mesmo tempo, uma mensagem de valorização a uma vivência amazônica natural – vida de água doce –, livre e clandestina. Da transgressão e experimentação linguística à fantasia excitante, tudo se encaminha para que a personagem atue como uma outra Alice, que em vez de seguir um coelho inusitado como na história de Carroll, cria ela mesma suas pontes, tentando plasmar uma nova realidade onde possa reconstruir o mundo a partir de sua planta original: a floresta, as águas, a vida.

O mote do livro são as metáforas fome e comer, definidoras da personagem. São também metáforas da procura e da transformação à medida que a Menina comilona come antropofagicamente, absorvendo-observando àquilo que não conhece ou domina a fim de tomar sentido – desaprender e aprender – de todas as coisas. A sua fome, contudo, não é extensiva. Não se trata de comer muito, mas de comer profundamente: “passos, firmes, mas parcos”. Por isso, apesar de a menina comer quase tudo, não são as coisas o que ela quer, mas o sabor-saber. A sua fome, então, não é um deglutir que devora, mas um processo de esvaziamento semântico dos signos que é imediatamente preenchido por sentidos novos e inusitados.

Não pretendo analisar o livro. Gostaria de fazer voltar o tempo, domá-lo se preciso, e deixá-lo seguir bem lentamente de modo a apreciar e recuperar os gestos e os silêncios. Só assim, numa conversa em que não se mede as horas ou palavras poderia mostrar a rede complexa de sentidos que percebo e que vivencio com o livro. Sem dizer, mostraria o porquê (e quanto) gostei dessa Menina comilona e como passei a desejar o livro com aquela sofreguidão de um amor clandestino. Vejo-o a todo tempo como uma insinuação, sedução e antecipação de algo que está por vir. E sinto tanta força nele, tanto engenho, que o imagino como centelha de uma centena ou mais de páginas. Quero dizer que adoraria vê-lo retomado numa narrativa mais extensa. Pode-se preservar a estrutura de conto, pode vir a ser novela, talvez romance. Sinto apenas que há energia, viço e fogo, tudo represado nele e pronto para que ele se emprenhe. A própria narradora nos dá pistas sobre isso quando lembra o Catatau, o Ulisses, a Macabéa, como se ao vê-los, visse a si mesma refletida. Veja-se que tudo lhe serve de exemplo, tudo é apanhado em sua virgindade e condensado em experiência:

Devorava Alice, Carroll, Borges, Barriga, Rilke, Baudelaire, Zumbi, Dalcidio, A Senhora D, Clarice, Rosa, catatau, haikais de Leminski, frases, martelados pensamentos, pessoas, igarapés, procuras, procuras ensimesmadas, feixes.

Nesse particular, A menina não esconde a sua ascendência. Seu discurso descende dessa família de centauros. Diz-se Penélope, mas não uma Penélope que espera. Uma Penélope que faz o seu próprio périplo pelo Brasil, pela Amazônia, roçando pedras, excitando águas de igarapés, fazendo jeitos para maçarandubas, dizendo eu volto: não vá. Há uma eroticidade que não é possível apanhar com o corpo, uma verve de estado amoroso, qualidades únicas de uma menina, cuja lascívia está no pulmão que engole os ventos, na pele que absorve o sol, no corpo que se banha par ter-se na agua, como fonte.

Lembro, a propósito, de um poema de Carlos Drummond de Andrade (2002, p. 820-1), dedicado à Clarice Lispector, que poderia muito também ilustrar a sua personagem Menina: veio de um mistério, partiu para outro./Ficamos sem saber a essência do mistério/ Ou o mistério (...), diria, repetindo e parafraseando o poeta, é a própria menina viajando nele, pois a Menina comilona vive de ampliar

as fissuras, (...), sua procura delirante, sem nome, assim, assim, diante de arbitrárias direções, salta......! Absurdos são traços moventes, (...), ela opta pelo desvão, o diverso e o mesmo, como diria Macabéa, o imponderável nas vitrines. Isso você já disse, ela me diz, peço pra ela novas impressões, ela corre enquanto chove. Molhada, sorri.

Macabéa, protagonista de A hora da estrela é duplamente lembrada no texto. Citada textualmente, é lembrada também por contraste, pela linguagem e pelos paradoxos irônicos. Macabéa, diz Clarice, "Ela falava, sim, mas era extremamente muda" (1999, p. 29) e, se pensava, era para admitir que “tudo o que acontecia era porque as coisas são assim mesmo”. A menina comilona, por sua vez, quer trespassar o mundo pelo avesso, sem insulamento, sem reservas, sem dificuldades para enunciar. Seu périplo é uma forma de dar respostas aos porquês, às normas que constituem a realidade empírica. Essas respostas se dão pelos intensos fluxos de imagens capazes de esvaziar conceitos consagrados e propor novos modos de ver e sentir o mundo. Sua aventura por terras e paisagens novas só é possível porque a menina se deslumbra e enxerga o mundo como se o visse pela primeira vez. Um exercício de descoberta interior e de re/conhecimento.

Eis aí um livro que não faz concessão à leitura mediana; que sabe do seu poder e não se intimida em incitar o leitor para seus desatinos. Em todo o percurso, de modo quase subliminar, a mulher é posta como “a pergunta” e “a resposta” em suspensão, tudo sintetizado nesta frase: “Pegava um espelho, contava miçangas, estrelas, sapos cururus, sonhava sem adormecer.” (p. 18). Sim, é esse estar acordado o que interessa. Esse jeito de vivenciar que reverbera e emprenha imaginação.

* Osvaldo Duarte é Professor universitário, poeta e crítico literário

P.S.: Como disse a certa altura, não pretendia fazer análise, mas acabei por citar algumas obras ao fluir espontâneo das ideias. Então, para adensar a conversa, relaciono abaixo os textos lembrados ou referenciados:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Visão de Clarice Lispector. In. [Discurso de Primavera e algumas sombras.]. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria, São

Paulo, Martins Fontes, 1989.

———. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

BOOTH, Wayne C. A Retórica da Ficção. Lisboa: Arcádia. Trad. Maria Teresa H. Guerreiro, 1980.

GALVÃO, Galvanda Queiroz. A menina comilona. Belém: Editora do Autor/Uxi.Cão. 2013, 28 p.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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