Há algum tempo um livro surpreendente caiu-me nas mãos. Intitulado “Naufrágios e Comentários”, escrito por Cabeza de Vaca, o li de uma vez, espantada e encantada, do começo ao fim.
Trata-se de um livro incomum por não se enquadrar em gêneros literários convencionais; mas também é incomum por tratar dos feitos incomuns de uma personagem incomum: o próprio Cabeza de Vaca, autor. Esse personagem estranho e forte foi o primeiro homem e, ao que eu saiba, o único, a atravessar o que hoje chamamos de Estados Unidos, de leste a oeste, à pé. Ainda à pé, andou descalço, nu, até o México, perfazendo 18 mil quilômetros. Tempos depois fez outra jornada à pé, de Santa Catarina, no Brasil, até Assunção, Paraguai, desta vez acompanhado de uma tropa bem equipada. Tudo isso entre 1527 e 1542, logo depois da “descoberta do Brasil”.
Suas impressões sobre a América são narradas em meio ao relato muito conciso de suas aventuras. O livro tem a forma de um relatório; não há rebuscamento formal e nem preocupações literárias. Cabeza de Vaca simplesmente relata, em sucessão vertiginosa de fatos, sua aventura pioneira. Sendo assim, o texto parece ter um fôlego só. Deve ser lido de uma vez, sem trégua. Só assim caminha-se junto com Cabeza de Vaca, e só assim não nos perdemos, como muitas vezes se perde o próprio personagem em meio à vastidão de seu cenário. E as soluções são heróicas, porque naquela época ainda existia o jeito certo de ser herói: lendo o livro é que descobrimos que jeito é esse.
Apesar de ter sido um representante da civilização que exterminou nações inteiras na América, Cabeza de Vaca viveu num tempo em que esta atrocidade ainda não era prevista, a não ser... por ele próprio. Não que ele tenha previsto o genocídio da maneira exata, mas ele pressentiu o desastre da atuação dos “descobridores” europeus. Porém suas soluções, conselhos, ações ou mesmo sua experiência, nunca tiveram força para mudar o rumo da colonização da América. Cabeza de Vaca foi a voz da utopia, sensatez e consciência em meio à inaptidão geral para “descobrimentos”. Agora, por esse livro, somos nós os descobridores desta voz.
Um ponto interessante que devemos observar no livro é a visão específica de Cabeza de Vaca em relação aos indígenas e seus costumes. Trata-se de uma visão anterior à de Rousseau e o seu bom selvagem, e depois à de Montaigne, tão lembrada , admirada e degustada ainda nesses nossos tempos. Saboreamos Montaigne com uma certa vaidade, gostando do que ele fala sobre isso. E ele nos fala dos canibais, por exemplo, já numa época em que a Europa propagava uma autocrítica ao mesmo tempo gloriosa – por não descartar sua superioridade como civilização – e autodestrutiva, adotando modismos e derrubando tradições seculares. Uma Europa que, no entanto, se esqueceu do seu próprio canibalismo. E é Cabeza de Vaca que nos relata meio como denúncia, meio como comprovação das misérias pelas quais passou, como os europeus em terras americanas comiam a si próprios quando estavam morrendo de fome, chocando os nativos com este tipo de procedimento.
A experiência de Cabeza de Vaca ainda é norteada por uma mentalidade medieval, diferentemente da de Montaigne ou Rousseau. Assim sua conduta ainda é baseada na honra. Trata-se de uma mentalidade de antes das “luzes”. Os indígenas são vistos meio que de igual para igual; está-se aqui ainda longe da “superioridade” indígena entrevista em Montaigne, e ao mesmo tempo também está-se longe do senso comum da “inferioridade” indígena que se tornou predominante em nossa cultura, dentre outros preconceitos civilizatórios.
E no entanto, o livro de Cabeza de Vaca fala pouco dos costumes dos nativos da América: fala muito da saga do próprio Cabeza de Vaca. E a partir das suas narrativas, seguimos imaginando que sonho é esse de habitarmos tão diferentemente essa terra há tão pouco tempo igual a esses relatos nem tão antigos. Imaginar outra terra aqui mesmo! Essa é a grande paisagem não detalhada, mas abundantemente imaginada por nós ao lermos o livro. E tudo isso sabendo que com certeza Cabeza de Vaca não imaginou um futuro em que se concretizasse essa nossa terra de agora. É realmente interessante que possamos agora refazer o caminho de Cabeza de Vaca, imaginando tudo o que poderia ter sido e não foi, sobre essa nossa terra. E ao mesmo tempo é escandalizadora a percepção de que isso que está sendo lido nesse livro, um dia não foi signo ou símbolo: que um dia existiu um Cabeza de Vaca de carne e osso. É estranho descobrir que o começo de um símbolo foi algo que pode ter acontecido entre um sonho de conduta e a confirmação de um passado histórico tenebroso em que se constitui a história desta América “que se tornou”.
Foto: Walter Antunes