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Foto do escritorLuama Socio

Os desafios de ensinar a escrever


Nunca me esqueço quando, ao replicar ao meu comentário sobre a falta de ideias próprias numa redação sua, um aluno do terceiro ano do Ensino Médio me perguntou: “mas como eu faço para pensar por mim mesmo”?

Isso me mostrou claramente que, ao passo que os professores sabem que devem estimular contextos de referencialidade para que os alunos tenham subsídios para produzir discursos, o esforço em direção a esse estímulo, à medida que é realizado através dos convencionais exercícios de leitura e debate a partir dos textos das apostilas e livros didáticos, raramente conduz a um resultado satisfatório, principalmente ao nível de conteúdos dos discursos produzidos pelos alunos.

A razão para isso todos os professores sabem qual é: simplesmente os alunos não se interessam pelos assuntos dos contextos referenciais propostos. Portanto eles não pensam nada sobre eles e assim não têm nada para escrever. O desafio para o professor, nesse caso, é “fazer os alunos se interessarem” por aquilo.

Aqui a tarefa do professor será a de encontrar esses pontos de interesse nos alunos. Mas frequentemente os adolescentes parecem “não se interessar por nada”. Essa situação demonstra claramente que os exercícios de escrita devem estar associados a atividades que promovam o auto-conhecimento nos alunos, no sentido de conduzirem os alunos ao desenvolvimento da consciência da própria faculdade de percepção, que então irá se associar à linguagem. Em poucas palavras: os alunos devem ser conduzidos a “perceber que percebem”.

À parte todas as considerações de cunho psicológico e pedagógico que podem ser feitas no tratamento desse tópico, podemos ainda considerar que, geralmente, nos casos de falta de conteúdo nos discursos, há essa espécie de alheamento da auto-percepção, no sentido de que o ponto de vista do sujeito não se articula ao contexto proposto. O ponto de vista do sujeito-aluno é simplesmente pressuposto pelo professor, quando o que ocorre frequentemente é que ele de fato é inexistente.

É interessante lembrar as filosofias de Kant e Foucault sobre a ligação da linguagem com a noção do ponto de vista (do eu). Kant diz na sua Antropologia que o ser humano se distingue das outras espécies animais porque possui a capacidade de ter o “eu” em sua faculdade de “representação”. Depois Foucault vai dizer que nosso ponto de vista é um discurso entre outros discursos, entre outros pontos de vista. Somos sujeitos na medida de nossos discursos. Todos esses conceitos de “representação”, “sujeito”, “eu” e “discurso”, apoiam-se numa existencialidade linguística que subjaz ao nosso modo de vida.

Certa vez levei os alunos para observarem uma árvore florida, munidos de caderno e caneta para fazerem uma lista de palavras que deveriam ser utilizadas na composição de um texto e vários alunos, na frente da árvore, “não viam nada”. Então, pacientemente, ia estimulando seus olhares, e eles iam descobrindo que viam muitas coisas, muitas palavras: flor, cor, amarelo, inseto, listras nos insetos, antenas, pio de passarinho, pétalas, etc. Ora, é claro que os alunos já “conheciam” as palavras. Mas de certa forma elas estavam totalmente separadas da experiência da própria “percepção da percepção”, separadas da possibilidade de se articularem com um ponto de vista. Daí a dificuldade na produção discursiva.

A escrita é geralmente essa atividade cerebral que se prolonga pelos braços, mãos, dedos, imprimindo um código de linguagem num suporte-tela de papel, computador ou outro material, com o objetivo de registrar a expressão de algum pensamento, algum discurso. Do ponto de vista puramente técnico da expressão escrita, a articulação rítmica entre o movimento físico e a elaboração mental necessária a esse labor, será sempre uma espécie de arte em desenvolvimento, no escopo da qual incluem-se infinitas metodologias.

Obviamente a condição prévia para a escrita é o conhecimento de um código e, em Educação, quando a questão é o ensino e aprendizado da escrita, o início da abordagem passa pelo desenvolvimento da capacidade de utilizar a Língua comum na modalidade escrita que, no caso do Brasil, é a Língua Portuguesa.

Supõe-se que essa capacidade vai sendo desenvolvida, do ponto de vista motor, a partir dos estímulos da fala, simultaneamente aos estímulos dos sentidos, em que o aprendizado da Língua vai se dando na modalidade oral. Ao passo que a oralidade vai se expressando, concomitantemente ocorre uma espécie de estruturação linguística no nível mental a partir da qual poderá haver uma base para o posterior desenvolvimento da habilidade da escrita.

Os inícios da aprendizagem da escrita envolvem o conhecimento das regras específicas de funcionamento da Língua para a modalidade escrita, que são totalmente diferentes das regras da modalidade oral, porque concernem a uma diferente estrutura técnica, embora sejam estabelecidas correspondências necessárias entre os códigos de uma e de outra.

Um lindo livro que exemplifica um possível desenvolvimento da escrita durante a adolescência é “Minha Vida de Menina”, de Helena Morley. O livro é o diário de Helena dos seus 13 aos 15 anos, entre 1893 e 1895 em Diamantina, Minas Gerais. Embora o gênero seja narrativo no geral, a escrita do início é muito poética, no sentido de que se expressa mais pelos substantivos em sobreposição de imagens independentes do que por um encadeamento lógico, convencional, tanto gramaticalmente quanto ideologicamente. Mais para o final, Helena já se expressa como a jovem correta, que segue as regras necessárias a uma moça de juízo e, portanto, nos aparece um pouco mais sem graça, no sentido de ter perdido aquela primeira “poesia”.

Podemos ver nesse livro como a escrita vai expressando as linhas de organização do pensamento que, por sua vez, é construído também pela Língua, no seu aspecto verbal linear. A grande vivacidade, principalmente dos textos iniciais, deve-se à típica espontaneidade das crianças que se sentem livres para expressarem o que sentem. No entanto, o texto só foi possível porque, mesmo aos 13 anos, esse sujeito, esse ponto de vista, está articulado à percepção fazendo uso das palavras que lhe acorrem no exercício da arte de escrever. A menor vivacidade dos textos finais deve-se provavelmente à mudança de foco perceptivo do ponto de vista, que passa a ser a típica esfera psicológica de preocupação dos adolescentes com a proximidade das responsabilidades da futura vida adulta

É curioso perceber também que os textos finais, menos “espontâneos”, são melhores estruturados no que concerne à ordenação gramatical. A jovem encaminhando-se para a vida adulta se preocupa agora com o discernimento entre verdadeiro e falso, com a responsabilidade por escolhas, características dessa fase da vida. Podemos entender esse processo como uma exemplificação de uma certa justificativa escolástica de origem aristotélica, que identifica o julgamento da verdade do conhecimento com a análise das proposições.

A escrita expressa o juízo à medida que segue as regras gramaticais de forma convencional, o que nos faz perceber que parece que não somos nós que pensamos, mas sim que a Língua é que pensa em nós, coisa que já foi dita por mais de um filósofo. Talvez isso ajude a explicar grande parte das “rebeliões” linguísticas em que se apoiam várias técnicas da escrita criativa, perpetradas por poetas de todas as épocas.

Então, se o conhecimento das regras da Língua bastasse para que as pessoas desenvolvessem a habilidade da escrita, os professores de Língua Portuguesa e redação não teriam tanta dificuldade para ensinar seus alunos a escreverem os textos necessários à sua formação escolar, uma vez que já estão alfabetizados e familiarizados com as regras da Língua há longo tempo.

Seria interessante considerar como as estratégias de desenvolvimento da capacidade cognitiva, associadas ao “aprender a pensar” a partir das operações clássicas do pensamento, como raciocinar, formular juízos, fazer análises, classificar, caracterizar - como por exemplo, aqueles apresentados pelo grupo RATHS, no livro “Ensinar a Pensar” - nascidos dessa espécie de aristotelismo, levam-nos a uma impressão de “neutralidade” do sujeito diante dos dados da percepção. O vago valor dessa “neutralidade”, juntamente com a capacidade de um “pensar lógico”, embutido nas propostas didáticas de redação aos alunos do Ensino Médio é muito valorizado pelos professores.

Posto isso, aqui instala-se uma contradição que, não obstante, apresenta-se como desafio no ensino da escrita escolar. Trata-se de um desafio que desdobra-se ao nível da necessidade de conciliar o desenvolvimento de um ponto de vista específico no aluno, mas que ao mesmo tempo seja convencional, como que destituído de “personalidade” e, ainda por cima, que seja interessante, ou que expresse inteligência aos olhos de um possível leitor, que frequentemente é o próprio professor. É nesse ponto que entra a necessidade de uma paciente sensibilidade, por parte do professor, quanto aos meandros do desenvolvimento do pensamento no aluno, entrelaçados com os modos culturais de percepção. São os dados desses meandros que deverão direcionar as atividades pedagógicas em cada caso.

Ilustrações: Acima, Detalhe do óleo sobre tela "O Tempo", 1925, de Henrique Bernardelli, acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo; abaixo, fotografia de Walter Antunes, de frase escrita numa rua do centro de São Paulo.

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