São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, é um lugar de História viva, com seu conjunto de ruínas das missões jesuíticas, a paisagem natural e uma aura de enigma. Passeando por entre aquelas centenárias paredes, a antiguidade parece um conceito longínquo se comparado com a atmosfera de vivacidade do lugar, por incrível que pareça. Essa estranheza, de um contraste sutil, inexplicável, entre o que sentimos e o que sabemos, já faz a viagem até lá valer a pena.
Talvez esse contraste se dê porque, de certa forma, o projeto jesuítico não triunfou, não se concluiu como a utopia “de criar uma sociedade com os benefícios e qualidades da sociedade cristã-europeia, mas isenta dos seus vícios e maldades”, como destacam tantos autores que se debruçam sobre este fascinante tema. Assim, deparamo-nos com uma proposta inacabada, porém encaixada num tempo passado.
Antes de chegarmos a São Miguel das Missões, passamos por Santo Ângelo – uma das Sete Missões, cidade muito bem organizada: parques infantis em perfeito estado repletos de crianças, ruas limpas, um memorial à Coluna Prestes que iniciou sua jornada neste lugar para mudar o Brasil - e isto já é uma outra história; um monumento a Sepé Tiaraju, líder indígena da resistência das Missões; e uma estátua para Santo Ângelo. A bela igreja dessa cidade procura ser uma réplica-homenagem das igrejas das Missões. A igreja original dessa Missão foi totalmente desconstruída ao longo do processo de colonização.
Chegando à noite em São Miguel, fica-se deslumbrado. Assiste-se a um fantástico teatro de luz e som, sentados na arquibancada de frente para a igreja. Na ocasião em que lá estive pela primeira vez, esse teatro foi incrementado pelas forças da natureza: o céu relampejava em meio a uma furiosa ventania.
Espetáculo enorme: espaço, natureza, ruína, história. O áudio muito bem produzido, com as vozes de atores renomados, apresenta o drama da resistência dos povos das Missões à expulsão dos jesuítas pela Coroa Portuguesa por volta de 1750. O som, a música, as palavras, que surgem de todos os lados, combina-se com o jogo de luzes coloridas, que vão sendo projetadas representando as emoções da história. O cuidado técnico que os funcionários dispensam a esse espetáculo é milimétrico. Impressiona pela alta qualidade.
A alma se comove com a imagem da síntese da arquitetura das ruínas, imóveis, e as vozes e luzes em movimento. A vida e a morte ao mesmo tempo. História presentificada.
De dia, caminhando por entre as ruínas, o contraste em plena luz do sol é entre as sombras, umidade, ângulos da arquitetura, e os pássaros, plantas, visitantes e alguns descendentes dos guaranis, vendendo belos objetos, cantando antigas canções.
As ruínas de São Miguel das Missões são consideradas as mais importantes dentre as ruínas dos Sete Povos das Missões porque é a mais conservada de todas. A igreja tem a parte frontal e os vãos internos praticamente intactos. As construções da povoação em volta não se conservaram porque eram feitas do material perecível típico da técnica das habitações indígenas. O revestimento externo da igreja, originalmente branco e brilhante, feito de conchas trituradas de moluscos, também se perdeu com o tempo. Agora, a cor ocre dos enormes tijolos nus, às vezes cobertos de musgo, dão um aspecto solene e venerável ao local.
Essa denominação, Sete Povos, vem da divisão que se deu entre as terras de Portugal e Espanha após o tratado de Madrid no século dezoito. Das cerca de trinta Missões existentes na América do Sul, apenas sete ficaram do lado brasileiro. As ruínas de São Miguel são declaradas Patrimônio da Humanidade pela Unesco desde 1983.
Há também no local um museu projetado pelo arquiteto Lúcio Costa, o mesmo que desenhou Brasília junto com Oscar Niemeyer. O espaço museológico foi inspirado no modelo das construções coletivas que eram as habitações originais do povoado em volta da igreja; porém, evidentemente, os materiais diferem. As esculturas, estatuetas e objetos expostos no museu são de uma beleza incrível. A maior parte das peças são imagens sacras do período missionário, obras de artistas indígenas, que atestam o alto nível da excelência artística alcançada pelos índios em diversas áreas como escultura, pintura e música.
São Miguel das Missões é um desses lugares maravilhosos do Brasil em que a intervenção das modernas técnicas museológicas e artísticas na valorização do legado histórico resulta em um espetáculo lindíssimo, grandioso e eloquente, despertando no viajante atento as reflexões sobre o que foi e poderia ter sido a história e a vida, sobre os encontros e desencontros entre a Europa e a América.
fotos: Walter Antunes