A angústia sentida pelo Professor que se vê num dilema entre escolher uma conduta que contemple o Sistema ou uma conduta dirigida às necessidades do Aluno é um daqueles lugares-comuns da profissão de ensinar em escolas.
E esses “lugares-comuns” devem urgentemente ser encarados de frente. E devem ainda, ser como que “desembaraçados” por entre o embaralhamento de conceitos confusos e sentimentos de frustração que geralmente estão misturados na Alma do Professor.
Assim talvez, ao final de um esforço de desembaraço, o dilema se revele uma falsa questão.
A causa do dilema está no fato de que o Professor se vê distanciado, enquanto indivíduo, tanto da “filosofia” do Sistema quanto da cultura de seu Aluno. Ele se vê como alguém à parte, diferente de um e de outro.
Mas se, na realidade, na história desse momento, esse Professor está atuando, ele obviamente não está à parte de nada. É preciso resgatar então essa espécie de autoconsciência que permite à pessoa lembrar de si e do que significa seu posicionamento profissional diante do grupo de trabalho presentemente.
É comum esquecermo-nos do papel profissional que nos impusemos. Mas este é o mundo dos adultos, o que quer dizer que fomos nós que escolhemos nossa profissão, seja por opção ou por falta de opção. Junto com esse primeiro esquecimento, também esquecemo-nos das relações do nosso papel com os outros papéis, das outras pessoas, implicadas na nossa posição no contexto.
Nos esquecemos do nosso papel porque o dia-a-dia profissional não é fácil. Lida-se com pessoas, e isso significa principalmente vivenciar durante o tempo todo uma série de impactos e trocas emocionais desgastantes até que, por fim, ao nos desdobrarmos energicamente, colocando a nossa vida nessa profissão, perdemo-nos por entre esses impactos e trocas, sobrando-nos frequentemente um resíduo de angústia que se racionaliza pelo dilema: entre o Sistema e o Aluno.
Se quiser “sair dessa”, o Professor encara o óbvio, assumindo o Aluno e, junto com ele, o Sistema, ou muda de Sistema, de Aluno, ou até mesmo de profissão.
Encarar o óbvio pelo lado do Sistema passa por autoconhecimento e responsabilidade. Encarar o óbvio pelo lado do Aluno passa pela presentificação da percepção de que o Aluno é o centro do processo de aprendizagem e que o afeto é o suporte desse processo.
Essas obviedades assim o são porque são pressupostas pela “realidade” teórica e prática do contexto escolar. Com ou sem consciência plena dessa realidade, o Professor é o adulto responsável pelo ensino e o Aluno é a causa do ser-Professor.
Fazer parte do Sistema com consciência, isto é, com autoconhecimento, implica o exercimento da sinceridade e da vontade. No desenvolvimento dessas qualidades surge a “responsabilidade”, a qual implica seriedade, participação e crítica.
A propósito da questão do autoconhecimento transcrevo um trecho de um livro altamente recomendável para todos que trabalham em grupo: “O caminho da habilidade”, de Tarthang Tulku:
“A auto-imagem é especialmente enganadora porque pode nos tornar cegos para as nossas fraquezas e deficiências. Se reconhecêcemos essas características, poderíamos iniciar um processo de mudança, mas, quando lançamos mão da auto-imagem para disfarçá-las, obstruímos o nosso crescimento. Nós utilizamos a auto-imagem para evitar olhar para nós mesmos com honestidade, e deste modo criamos uma imagem própria cheia de orgulho (…). Como podemos passar além das limitações da auto-imagem e conseguir nos conhecer de um modo mais verdadeiro? Podemos começar olhando com atenção para quem pensamos que somos”.
Ainda sob o ponto de vista do Sistema, seja no contexto da escola estatal, da escola religiosa, militar, ou particular, o Professor “deve” subsidiar a gestão escolar, que é a concretização do Sistema, incluindo e indo além da sala de aula, engajando-se responsavelmente, seriamente, criticamente, no projeto educativo institucional, que aparecerá como obra do coletivo.
Porém é simples observar que esse “dever” é frequentemente sabotado. E motivos para isso não faltam. Todos esses motivos estão enraizados na inerente sensação de frustração diante do desafio de “ensinar”, a qual é refletida no projeto coletivo como o negativo sub-reptício às propostas teóricas dos planejamentos e planos de ensino. Pois ao longo de sua trajetória, por conta do desgaste emocional, o Professor vai perdendo de vista a inerência da impossibilidade do sucesso quantitativo absoluto do resultado de tal desafio que caracteriza a profissão.
Obviamente também as condições impostas pelo Sistema são corriqueiramente e altamente frustrantes, como por exemplo, salas de aula com mais de 25 alunos, falta de material pedagógico, alunos agressivos, baixos salários. Isso realmente é corriqueiro e são, entre outros, considerados pontos causadores de frustração.
Porém, pessoalmente, o Professor, como parte do Sistema, é mais e é menos que o Sistema. Ele deverá se engajar conscientemente na posição de influenciar a gestão para modificar esse estado de coisas e, ao mesmo tempo, fará o melhor que puder com seus alunos, realisticamente.
Citando mais uma vez Tarthang Tulku:
“Quando estamos verdadeiramente cientes da nossa pessoa, sabemos onde nos encontramos, sabemos quem nós somos. Temos disposição para aceitar tanto as nossas realizações como as nossas falhas e as lições que elas podem nos ensinar. Reconhecemos, em todas as experiências, o potencial que existe para enriquecer as nossas vidas, e fazemos uso de tudo o que acontece para crescer e nos desenvolver por meios mais saudáveis”.
Ser Professor não é como ser um Operário, Engenheiro ou Vendedor. Não existem resultados perfeitamente finalizados que possam ser avaliados como tais. Frequentemente um Aluno difícil que achávamos que não “aprendia”, mostra-se mais tarde grato por nossa paciência com sua indisciplina e aparece-nos como um adulto realizado. Por outro lado, aquele Aluno que julgávamos o melhor da sala talvez nem se lembre de nós, pois nesse caso talvez não fôssemos tão determinantes em sua história.
Na visão do Aluno, o Professor é o próprio Sistema ou, mais ainda, é o representante do “ser adulto” como um todo. E frequentemente - lembrando aqui a fala de um professor de uma escola Waldorf - o Aluno vê o Professor como uma pessoa bem melhor do que ele realmente é. Assim, tendo ou não consciência deste fato, o Professor é sempre um “exemplo” para o Aluno. Essa exemplaridade se forma invariavelmente pela via afetiva, daí toda a importância de não se perder de vista o “cuidar” do Professor em relação ao Aluno.
Sinais desse “perder de vista” estão, por exemplo, naquelas situações em que é muito comum o Professor referir-se amargamente, no seu discurso junto aos colegas de profissão, ao “não saber”, dos alunos, à “ignorância” dos jovens. Discurso que delineia bem a situação de alienação do Professor frente à própria natureza da sua profissão e que, a despeito desse delineamento, este não é percebido como tal, mas sim apenas como uma situação subjetiva de desabafo por conta do stress profissional.
Esse é um dentre os muitos sinais dessa alienação, que são fartamente produzidos e assimilados como aspectos “naturais” do contexto escolar.
Mas já é hora desses sinais não passarem mais despercebidos. Façamos algo com eles, aprendendo com eles, transmudando-os em sinais de compromisso, honestidade e alegria.
Sobre a seriedade na ação de ensinar, cito uma passagem de Celso Antunes em seu livro “Inteligências Múltiplas”:
“Se você acha que não pode ensinar uma criança, você está absolutamente certo. Mas se você acha que você pode, construam obstáculos, ergam paredes, abram fossas no seu caminho, que você educará. E há inúmeros experimentos de campo que comprovam essa afirmação.”
Para alcançarmos a realização educativa precisamos concomitantemente cuidar de nós mesmos. Isso passa pela dimensão pessoal, em que cada um procurará os meios que lhe convém, mas passa também pela aceitação e participação da dimensão coletiva do Sistema, que frequentemente proporciona diretrizes de naturezas técnica, crítica ou reflexiva, que podem ser encaradas como instrumentos válidos e utilizadas efetivamente como ferramentas de facilitação no processo ensino-aprendizagem.
Quanto à base educativa, muito se diz do “cuidado”, do “afeto”, do “amor”, inerentemente necessário como suporte da ação ensino-aprendizagem. Não nos percamos mais nas teorias. Coloquemos mãos à obra. Daremos atenção real ao nosso Aluno. O que falarmos é o que faremos. Respeitaremos o nosso Aluno e o que ensinarmos a ele. Procuraremos despertar o interesse e o amor dos alunos por aquilo que queremos compartilhar com eles. Nossas ações serão concretas e objetivas.
Para finalizarmos, citamos palavras de Krishnamurti publicadas no livro “A educação e o significado da vida”:
“Mas como podemos ter amor? Podemos tê-lo, não pelo cultivo do ideal do amor, e sim quando não há ódio, quando não há avidez, quando a consciência do eu, causa de todo antagonismo, se extingue. (…) Sem uma transformação do coração, sem boa vontade, sem a mudança interior, oriunda do autopercebimento, não haverá paz nem felicidade para os homens”.
À essa altura, talvez o dilema do título tenha se dissolvido. A partir do momento em que se percebe que Aluno, Professor e Sistema formam um todo, não há necessidade de se desembaraçar nada, pois o antagonismo entre Sistema e Aluno talvez seja uma falsa questão.
TULKU, Tarthang. “O caminho da habilidade - Formas suaves para um trabalho bem-sucedido”. Cultrix, São Paulo, 1997.
ANTUNES, Celso. “Inteligências Múltiplas”. Salesiana, São Paulo, 2003.
KRISHNAMURTI, J. “A educação e o significado da vida”. Cultrix, São Paulo, 1976.