Sob o olhar espantado de Walter Benjamin, um diálogo breve a partir de 13 questões para a esquerda propostas por Walter Falceta e 14 pontos colocados por Walter Antunes sobre caminhos e esquerdas que podem ou não ser vislumbrados por esses tempos.
1.
Walter Falceta: Se é raro, hoje, o macacão sujo de graxa, ou seja, se minguou a "classe operária", qual grupo organizado, disciplinado e particularmente interessado pode liderar o processo da mudança?
Walter Antunes: Nenhum grupo deve se arrogar ser a vanguarda das lutas que muitas vezes nem mesmo existem.
Sem nenhum egoísmo segue o dito popular: "cada macaco no seu galho, cada um com seus problemas". Corre-se o risco de no meio da festa ouvirmos: "o que vocês estão fazendo aqui?"
Ver Manderlay de Lars Von Trier.
2.
Walter Falceta: Se um simples computador portátil pode ser o "meio de produção", desloca-se o ponto de sustentação tradicional da análise marxista referente à desigualdade. Portanto, como definir a nova matriz da disputa entre classes?
Walter Antunes: Não há luta de classes. Não há nova matriz. O computador é o braço do escravo. O mandatário livrou-se de dar comida/casa e cuidar das feridas do seu animal de tração mandando-o se virar com o fim da escravidão. Passou a ter um escravo sorridente na linha de produção, que cuida da própria habitação, saúde, se não estiver ok é substituído instantaneamente por outro escravo livre. Em tempos de cyber-escravidão o escravo passou a ser investidor do negócio do mandatário, pagando por tecnologia, desenvolvendo conhecimento e trabalhando à distância do chefe.
Ver A Natureza do Espaço, Milton Santos.
3.
Walter Falceta: Como estabelecer uma ponte de convergência com os novos trabalhadores, se o trabalho formal está desaparecendo e parece inevitável a multiplicação dos autônomos, chefes de si mesmos? Como fazer de conta que a chamada economia compartilhada (com todos os seus defeitos) inexiste?
Walter Antunes: Se não há incômodo, não há luta. Então não há necessidade de ponte. A ponte existe quando dois pontos desejam ser ligados. Nesse momento de satisfação universal através do consumo não ocorre isso.
Ver o mapa recente de vendas de smartphones e cerveja.
4.
Walter Falceta: No caso dos novos empreendedores, como vilipendiar o empenho, ou seja, o mérito, dos antes proletarizados que encontraram a inserção social por meio da livre iniciativa?
Walter Antunes: Não há livre iniciativa. Não há empreendedor. É a replicação apenas da dominação, funcionando tão eficazmente que promove na mente do escravo explorado a ideia de ser livre e participante do jogo. Substitua o verniz tecnológico e pseudo-moderno por correntes que a falsa ideia desaparece.
Ver Trocando as Bolas, John Landis.
5.
Walter Falceta: Como assegurar causas mundiais se a esquerda abandona, gradativamente, o ativismo verde? Se o ambiente se degrada mais rapidamente, e esse processo afeta, sobretudo, a vida dos setores economicamente subalternos, como esquivar-se dessa obrigação moral?
Walter Antunes: O ambiente não se auto-degrada. Tudo é eleição. A quantidade de cabos e fios e conexões e a satisfação do "subalterno" no seu quintal todo concretado sem árvore alguma, dentro da sua piscina de plástico para duas pessoas adultas ou três crianças enviando mensagens por WhatsApp de moradores de rua sendo humilhados. Quantas abelhas são mortas por WhatsApp enviado?
Ver Os Simpsons - O Filme, David Silverman.
6.
Walter Falceta: Se a vida em sociedade exige a projeção dialética ou a alteridade amorosa, como admitir nas ditas fileiras progressistas aqueles intolerantes à subjetividade transcendente (ou religiosa) do indivíduo?
Walter Antunes: Se ainda necessitamos refletir e invocar regras de bom convívio em termos de avanços progressistas da sociedade do politicamente correto é que não estamos resolvidos suficientemente em nós mesmos, não quanto a aceitação do outro, mas quanto a sua própria existência.
Ver Viagem por Um Mar Desconhecido, Krishnamurti.
7.
Walter Falceta: Se a população mundial se multiplica rapidamente, como gerar condições dignas de vida sem crescimento econômico? Como fugir da armadilha matemática das políticas compensatórias?
Walter Antunes: Num mundo sem correntes físicas como suporte para a escravidão, o próprio escravo define o tamanho da sua dignidade. Um quartinho de quatro metros numa pensão da Aclimação, uma beirada sob o minhocão. No geral o piso da dignidade atual passa por ter uma boa conexão para a web e estar bem nas fotos da rede social do momento.
Ver Ela, Spike Jonze.
8.
Walter Falceta: Se desapareceram os Rockefeller e os Matarazzo, vigorando agora uma realidade de centrais produtivas pulverizadas em sociedades anônimas, onde encontrar o egoísta "dono da fábrica"?
Walter Antunes: O "autônomo", o de "livre iniciativa" tem ao final da sua "prestação de serviço" que emitir uma nota fiscal. Esse é o caminho. Ali está o nome do seu patrão egoísta, muitas vezes bem próximo e sem tantos capangas por perto como antigamente. O ponto é que a proximidade atual com o patrão causa no explorado a sensação exata da sua insignificância ou no melhor dos olhares a certeza exata da incerteza da sua insatisfação.
Ver 1900, Bernardo Bertolucci.
9.
Walter Falceta: Como lidar, no escuro, com o processo brutal de acumulação por meio de capitalistas não empreendedores e de sociedades de investimento?
Walter Antunes: "Siga o dinheiro" disse o "Garganta Profunda" para os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein. A escuridão é a única marca universal da humanidade ocidental pós Idade das Trevas. Banco de Boston? Companhia das Índias Ocidentais? Estrada de Ferro Sorocabana?
Ver O Nome da Rosa, Umberto Eco.
10.
Walter Falceta: Como disputar o território das narrativas no confinamento confortável das bolhas digitais? Como fazer comunicação efetiva sem protagonismo e sem redes de difusão?
Walter Antunes: O território atual das narrativas e as redes de difusão são invenções e apropriações dos mandatários inclusive os digitais. Impossível vencer qualquer jogo ou guerra dentro desse universo pré-estabelecido pelo dominador ainda mais quando o dominado ingenuamente se sente livre e agente importante dentro desse processo de dominação. O protagonismo da luta não existe apenas por não existir luta alguma acontecendo.
Ver Apocalipse Now, Francis Ford Coppola.
11.
Walter Falceta: Como evitar a arrogância de presumir conhecer as razões, dores e satisfações dos estratos marginalizados dos morros e das periferias? Como eliminar a educação pedante de mão única e construir uma relação educativa de reciprocidade?
Walter Antunes: Será que não chegou o ponto de entendermos que O Quilombo, se é que ele existe, não precisa e não tem nada para aprender conosco? A esquerda "tradicional" historicamente se arroga como vanguarda apostólica salvadora do mundo, enquadrando segmentos da sociedade como enfermos desvalidos que precisam ser guiados para as águas da salvação. Um misto de auto-compaixão com uma falsa compaixão ao próximo na tentativa de parecer desinteressada por si mesma e à frente do tempo na preocupação com causas universais. Típico de um ideal jesuíta de superioridade sobre os índios que serviu apenas aos exploradores europeus.
Ver A Outra Face de Moisés, Gary Weis.
12.
Walter Falceta: Em um mundo fragmentado, com demandas sociais transversais, algumas claramente assumidas também pelos conservadores, como constituir um esforço organizado que não contemple também, cotidiana e seriamente, as questões das mulheres, das comunidades LGBT, das porções étnicas vítimas do preconceito e das parcelas da juventude marginalizadas?
Walter Antunes: A própria fragmentação é instrumental máximo de dominação, por isso contemplada pelo sistema mandatário. A divisão, subdivisão, células, moléculas, permite o emprego correto da substância mais eficaz de controle até que um olho olhe para o outro olho e não se identifique fazendo parte do mesmo corpo.
Ver Frankenweenie, Tim Burton.
13.
Walter Falceta: Como ainda se apegar às cartilhas estabelecidas a partir da observação de uma sociedade que desapareceu?
Walter Antunes: Cartilhas quando estão sendo impressas falam de um mundo que não existe mais. As diretrizes e resoluções de um congresso muitas vezes horas depois são poeira no tempo. A esquerda praticante de dogmas é igual à pior direita. Se reinventar, estar atento o tempo todo (não em alerta), aberto verdadeiramente ao mundo são armas que a esquerda um dia terá de praticar se quiser deixar de ser apenas um clube de reunião de saberes e boas intenções.
Ver 451, Ray Bradbury.
14.
Walter Antunes: Treze questões é um bom número. Três com um somados dão o quadrado, símbolo da materialidade da vida na terra, propósito de ação principal do discurso da esquerda em qualquer tempo.
Ver Simão o Caolho, Alberto Cavalcanti.
Walter Falceta é jornalista. Walter Antunes é fotógrafo.
Os dois fazem parte do Coletivo Democracia Corinthiana.
Foto:
Kleber Garcia em cena de Aspectos Fenomenológicos do Método Crítico-Paranóico - de Salvador Dali.
Criação: Kleber Garcia, Luama Socio, Harlen Félix, Tiago Landin e Marlon Morelli.