Roselena e Walker Dante prosseguem sua conversa infinita sob as árvores do jardim:
Roselena - Como é o desenvolvimento do corpo humano? Eu mesmo respondo: da cabeça aos membros, chamado céfalo-caudal. A cabeça é o centro, a partir do qual se iniciam os movimentos. E então, também, em outro ponto substancial da doutrina do funcionamento do corpo animal, mais precisamente no nível do controle muscular, tudo ocorre a partir do centro do corpo em direção às extremidades, chama-se a isso direção próximo-distal.
Walker Dante - Como é o desenvolvimento do círculo na matemática? Eu mesmo respondo: para se encontrar a circunferência, o ponto fixo é o centro, correlato conceito do raio. E o círculo, advindo dessa ideia, está dentro da circunferência formando ele próprio novo centro ao infinito sob algum ponto de vista. A inalterabilidade da fórmula do diâmetro demonstra a primazia do centro como ponto causal tanto em fenômenos geométricos quanto em suas metáforas. Agora você pode me dizer como é o desenvolvimento na arte.
Roselena - O desenvolvimento de qualquer arte é uma sucessão de escolhas de um sujeito-centro a partir do qual o objeto estético aparece. Esse objeto é efetivamente um prolongamento para fora das extremidades dos sentidos, por parte do artista, para que, com isso, crie-se mais uma vez objetos de sentido. Na verdade muitos outros afazeres, além do que chamamos arte, seguem essa mesma lógica do fluxo egoico. Mas com a palavra arte, dizemos que faz-se isso com a consciência de uma projeção harmônica, ou bela. A arte é uma circulação energética simbólica proposta pelo artista. Pode-se considerar também aqui, o conceito de arte, como uma universalidade do ser-no-mundo humano. Nesse sentido então, todas as ações humanas deveriam ser a Arte da própria existência. É esse o sujeito como criador.
Walker Dante - Agora você foi fundo… embora você não tenha falado, a sua explicação evoca a ideia de semente, ovo, explosão pelo ponto, mitologia... química. O centro como motor da pluralidade é também o número tomado em sua dimensão fundamental mística enraizada na noção de unidade e totalidade. Todos os números são Um=1. O centro é uma positividade em qualquer ocasião do binarismo de todos os fenômenos pensados. Esse tipo de pensamento está associado também a uma fundamentação analógica de visão de mundo, ao cosmos, o eterno grande espelho da criação com suas correspondências e gradações. Tal visão de mundo é considerada ultrapassada pelo rompimento da modernidade com suas visões de pluralidade ao infinito como ensina Foucault em “As Palavras e as Coisas”. Em nível fenomenológico pode-se observar que a dependência a uma tendência vai desencadeando ou condicionando situações que, de outro lado, também aniquila possibilidades à medida que avança escolhas. Isso não quer dizer que realmente há algum ultrapassamento como resultado de um novo mundo, esse da física quântica, do binarismo e da “criatividade” técnica. Prosseguem existindo a semente, o ovo e a pedra. Mas me conte mais sobre o centro.
Roselena - Podemos "sentir a sensação” (desculpe a redundância) de mudança de estado de corpo ou dimensão física graças à noção de centro. Essa é a área da metafísica, misticismo e percepções para além dos cinco sentidos. Das vibrações cromáticas depreende-se a centralidade da luz, por exemplo. Goethe mostra que todas as cores estão na luz. A luz é o centro. Por sua vez cada cor é um centro em si. Todo o vermelho do universo está aqui, agora, e ele é revelado em formas, abundantemente ou não. Pelas formas do vermelho depreende-se o próprio vermelho como fato da luz, centro a partir do qual qualquer vermelho revela-se por sua vez.
Walker Dante - Você me fez lembrar que vi hoje de manhã, na rede social mais utilizada, uma comunicação popular sobre genética. Divulgou-se que determinado tipo de câncer tivera origem num “tropeiro do século XVIII”, atingindo sua ascendência até o momento em que uma pesquisadora sobre o câncer descobriu a verdade, ou seja, justamente isso. Ela descobriu que o raio de uma roda científica que ela mesma, como aluna, estivera controlando no laboratório pós-humanista, ligava-se aos fatos de doença de câncer naquela família. O tropeiro era o centro, a partir do qual irradiou-se o câncer através dos séculos.
Roselena - Agora do ponto de vista psicológico, eu acho que muito do que faz o sujeito, entre a atitude “instintiva”, pura, e a consciência luminosa, é um trabalho de preenchimento, ocupação, justamente do círculo a partir do centro da personalidade básica: respostas a estímulos pré-projetados. Mesmo que o projeto não seja algo necessariamente bem delineado como objetivo. O projeto não precisa ser uma imagem específica, mas sim apenas a meta do preenchimento. Algo escrito por Hegel ilumina os meandros do centro como sujeito além, é claro, de iluminar sempre, com isso, o grave problema da identidade. Vou pegar aqui a seção 18 da Fenomenologia do Espírito: “… a substância viva é o ser, que na verdade é sujeito. (…) Como sujeito, e a negatividade pura e simples, e justamente por isso, é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto. Só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e não uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim”.
Walker Dante - Já que você foi tão longe, me atrevo a associar essa conversa com a questão política-estatal apenas para ilustrar mais um caso do centro como conceito-suporte para pensamentos explicativos ou analíticos. Aparece com grande clareza, até mesmo como “raia teórica”, o estruturalismo "cepalino” (referente a Cepal, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe da ONU), eminentemente econômico, utilizando-se da baliza do “enfoque da dependência” para a ideia de “desenvolvimento, mudança social e estrutura política” em vários tópicos, dentre os quais a importantíssima questão de “metrópole e satélite”. Todas essas ideias, a meu ver, estão enraizadas na noção de centro. Vou ler um trecho que consta de um livro organizado por Octavio Rodriguez sobre o assunto: “No que diz respeito ao âmbito político, parece ser que no enfoque sobre a dependência que a concebe como relação estrutural interno-externa subjazem os pontos de vista longamente elaborados na Cepal, sob forte influência das ideias básicas e institucionais de Prebisch (Raúl Prebisch, economista argentino e o mais destacado intelectual da Cepal). De fato, tais pontos de vista se assentam na colocação de um referente de acordo com o qual certas condições de proporcionalidade na expansão das diferentes atividades produtivas têm de ser cumpridas para que o desenvolvimento da periferia prossiga; e se apoiam, também, no estabelecimento das desproporcionalidades que dificultam o cumprimento daquelas condições e, portanto, do próprio desenvolvimento. (…) o crescimento para fora, a industrialização substitutiva, o posterior entorpecimento desta última. Pois bem, o enfoque de F.H. Cardoso e Falleto assume a consideração destas pautas e aceita a sucessão, isto é, personifica com base nelas. O que se configura como uma amostra - ao que tudo indica convincente - de qual é a conceitualização tacitamente adotada por esse enfoque em matéria econômica”. Pois então, a mim esse tipo de discurso me parece uma tentativa de naturalizar o fenômeno da dominação econômica por meio da simbologia universal das palavras "referente", "dependência", "periferia", as quais dependem do conceito de centro. E claro, por se tratar aqui de política, não consigo deixar de enxergar um certo despudor na naturalização da intenção exploratória, a qual com certeza vela uma ameaça terrível de guerra no sentido mais primitivo possível, ou seja, no sentido material e real, entre as classes e entre os estados. Ao evocar a forma redonda (com centro, raio, periferia e direção) para a situação política, evoca-se sempre o totalitarismo global.
Roselena - Mas para te tranquilizar um pouco digo que também ocorre com grande clareza muitas variáveis da imagem da centralidade no livro “A Natureza do Espaço" de Milton Santos, criticando justamente essa naturalização política e econômica. Não vou salientar a tese da obra de Milton Santos, mas apenas quero te mostrar que, aqui, também explica-se a questão da dominação a partir da ideia de centro. Por exemplo, vemos os raios da centralidade constituídas por sujeitos da intenção, convertidos em escalas, nesse trecho do fim do livro: “A ordem global funda as escalas superiores ou externas à escala do cotidiano. Seus parâmetros são a razão técnica e operacional, o cálculo de função, a linguagem matemática. A ordem local funda a escala do cotidiano”. É preciso notar que a imagem do centro, nessa obra de Milton Santos, já é abordada a partir de uma imagem mais moderna, retirada do método da técnica hegemônica, que é a computação e também, pasme, a teoria quântica.
Walker Dante - Então só te digo mais seis coisas: 1 - a quebrada também é sujeito; 2 - eu não vou na sua casa pra você não ir na minha; 3 - o que é o centro ?; 4- até bem pouco tempo refrigerantes e sabonetes industrializados eram coisas supérfluas; 5 - o movimento = a percepção; 6 - ser é ser percebido.
Bibliografia
“Fenomenologia do Espírito”, Hegel.
“O estruturalismo latino-americano”, Octavio Rodriguez
“A natureza do espaço”, Milton Santos
Resenha sobre “Lógica e filosofia da linguagem”, reunião de escritos de Frege:
Explicação circunferência, círculo e diâmetro: