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Foto do escritorLuama Socio

Eles estavam necessariamente estupefactos


Pois prossegue a conversa entre Walker Dante e Roselena.

Walker Dante - É claro que fiquei tremendamente estupefacto ao perceber que as pessoas poderiam achar outra coisa do meu cristianismo, e também fiquei espantado de perceber cruamente o nível baixo e abjeto das pessoas à minha volta quanto à sabedoria moral de se viver em sociedade. Se Jesus, o Cristo, disse em primeiro lugar, amar a Deus sobre todas as coisas, isso significa reconhecer uma vontade maior, à qual eu reconheço que a minha está submetida, pois pela minha inteligência percebo que quero e consigo várias coisas e percebo que quero mas não consigo várias coisas e tem uma imensidade de coisas pelas quais não me interesso, mas que existem, e exercem influências, e fazem parte do mundo. Então nasce em mim a humildade. Ela é um traço psicológico da força, porque o humilde não se abate, segue em frente pelos desígnios de Deus. E Jesus, o Cristo, diz em segundo lugar, que deve-se amar ao próximo como a si mesmo. Ou seja, não fazer diferença entre a esfera do seus limites corporais auto-físicos e as percepções desse corpo, consideradas em uma distância sensitiva maior, englobando a transferência dos dados dos sentidos para as áreas da memória e imaginação. Em suma, isso que Jesus, o Cristo, ensina segundamente quer dizer que todos somos iguais, portanto somos efetivamente, realmente, um corpo unido. A humanidade é um corpo, bem como faz unidade com tudo o que esse corpo também percebe: as plantas, os animais, o ar, a terra, a água e o fogo. Enfim, a minha estupefacção é ter-me descoberto em meio a humanos que nem de longe tomaram a esses ensinamentos como princípios. Vivi entre cristãos falsos. Esses princípios implicam a transformação instantânea da sociedade em paraíso. Todos livres, exercendo a beleza de suas liberdades, de tal modo que, evidentemente, sendo assim a sociedade extremamente rica, bela e talentosa, não se faz necessário Estado, guerra, opressão, política, tal como ela se entende nessa terra de demônios. Fiquei realmente chocado enfim, por ter tanta gente à minha volta que em nome de uma lógica obscura relativiza o maniqueísmo. Sendo que justamente o que se anuncia é a evidência da redução das relações simbólicas entre os humanos a esse tal maniqueísmo, a tomada de partidos e posições antagônicas num fluxo insano subtraído aos princípios ditos cristãos.

Roselena - Eu te acho uma pessoa descaradamente metafísica, até religiosa, embora pareça muito sensível.

W.D. - Esse princípio cristão, dogma, é um núcleo duro do meu direcionamento mental, eu o percebo bem. Porém ele não parece assim. Justamente aqueles em quem esse núcleo não existe, ou é mole, parecem duros. São os brutos das armas. E eu, pareço mole.

Roselena - Porém o argumento religioso nesse nível das questões políticas não deixa de ser uma posição fraca justamente porque ela não tem nada a ver com a tomada, manutenção ou perda de poder. No paradigma maquiavélico é certo que não se faz distinção racial entre os dominadores e dominados no sentido de que uns seriam humanos e outros não. Participar do poder político envolve uma diferenciação de nomes que distingue perfeitamente os poderosos, os donos do poder, do resto das pessoas. Não existe a possibilidade de haver um olhar de "semelhança" entre as partes dessa estrutura. Toda a situação em que nos encontramos agora, reunidos nas cidades do planeta dessa forma, não é simplesmente, naturalmente, o resultado do desenvolvimento da humanidade. Nossa "cultura" global, atual, no grosso, é apenas a consequência de projetos de poder sobre recursos materiais - ou seja, recursos da presença da vida no planeta Terra - se delineando nas formas de vida possível ao "homem" agora. Todas as "culturas" do planeta foram invadidas, atacadas e dominadas, e todos os remanescentes se espalham, tal como espirros, pelas cidades do globo. E essas culturas não foram pulverizadas em consequência de um embate de força entre seres de culturas diferentes porém equivalentes em força e poder. Os imigrantes, os pobres do planeta, não são vistos como pessoas, nem como animais, nem como plantas, ou como qualquer coisa digna valor. Eles são vistos, pelos poderosos e suas extensões trans-humanas, como obstáculos à existência de uma instância bastante misteriosa do ser dos poderosos. É por isso que não existe a mínima chance de conectar a visão cristã com a política. Uma coisa se opõe à outra. O cristianismo como princípio ético, e não simplesmente religioso, seria uma alternativa de ausência de política. É por isso que, evidentemente, está morto (desde antes dos anúncios de Nietzsche). O “cristianismo” definitivamente parece não ter nenhuma força real de penetração no mundo mental do "humano" de agora. Pois que também já não há nem mesmo essa coisa de "humano". Agora é trans, pós e... quiçá, super. Os filósofos não se cansam de analisar diferenças entre conceitos de massa, povo, cultura, etnia, grupo, nas teorias sobre as estruturas de poder dos Estados atuais - cada coisa dessa em seu próprio escopo de tradição conceitual – e por fim esse lado da balança política não é meramente pólo oposto de poder no "jogo" político, mas sim a complementaridade da dominação. A rigor não existe esse jogo para nós, que nos consideramos humanos, ou cristãos. Todos sabem que o Trump não vai simplesmente à guerra, não faz simplesmente a guerra, porque em hipótese alguma ele perderá alguma coisa. Trata-se apenas da atividade de uma forma de vida. Essa personalidade constitui-se apenas como uma função dos integrantes do clube que joga o xadrez dos destinos das riquezas materiais do planeta. Então aqui não há humanismo, ou humanidade. Quando a Simone Weil fala que a causa da guerra está no fato de que "cada homem, cada grupo humano sente-se com razão legítimo senhor e possuidor do universo, digo que essa posse é mal compreendida, por não se saber que o acesso a ela - na medida em que é possível ao homem na terra - passa, para cada um, por seu próprio corpo", quando ela fala isso... tal coisa só é possível a partir de uma filosofia humanista. Porém agora estamos na situação em que não há nem mesmo esse "corpo" de que a Simone fala. A condição da corporalidade, hoje, é efetivamente uma ausência. Mesmo os que já tiveram algum corpo o perderam, embora muitos estejam aparentemente vivos. Grande parte dos corpos hoje funciona como apêndices das máquinas de dominação. Esse é o fato real trans-humanista. Não se pode ter medo de contemplar isso. Aos ainda humanos é preciso haver a força dessa contemplação.

W.D. - Justamente por isso o modo de raciocínio pela polaridade de visões a partir de um ponto de vista comparativo não é suficiente para determinar o juízo moral a respeito da questão da tomada de partido. O juízo moral ocorre contíguo à função da identidade do “eu”. Toda aquela teoria do amadurecimento da identidade básica da personalidade tem pertinência na elucidação do enigma moral envolvido na escolha de um modo de estado com os resultados dessas eleições dos políticos cargos executivos do Estado em 2018. O "eu" real só é possível com o humanismo... e isto já não ocorre...

Roselena - Eu sei, você está querendo dizer que... o fato de estarmos estupefactos não tem a ver com o nosso próprio partidarismo, o qual passaria por uma eventual discordância superficial de ideias com outros eleitores. Discordância do tipo: desejar isso ou aquilo na esfera política. Eu sei que você, por exemplo, não quereria pensar dessa forma a respeito da preservação da natureza - essa seria apenas um objeto de mais uma ação específica. Você quer dizer que votou para que o país fosse mais aquecido economicamente, votou por mais gente trabalhando, mais gente produzindo e consumindo bens culturais de todo tipo. Você pensou que as pessoas soubessem o que era mais adequado para si próprias na continuidade da vida. Que a natureza ou a vida econômica não seriam conceitos simplesmente elimináveis, mas sim objetos culturais definidos, inalienáveis. Essa mentalidade é precisamente o que todos acham que seu voto produziu. Ocorre que grande parte dos votantes são pessoas que se preocupam em ser devotas a um patrão que elas acham que têm. São basicamente inconscientes dos objetos culturais que deveriam ser considerados bens inalienáveis. Não há a compreensão do Estado como um projeto de sociedade por parte da população votante. Todos sabemos que os produtores rurais, por exemplo, embora sejam "proprietários" de suas terras, quase nunca pensam com a própria cabeça. Estão sempre obedecendo a um patrão. Isso, no fim, é a única realidade percebida. Há uma ânsia em obedecer ao pastor, em fazer as coisas certas diante da aprovação de uma autoridade. Isso vem desde sempre, desde a Idade Média, e no Brasil vem desde que Brasil existe. Vê aquela cidade em Santa Catarina em que cerca de noventa por cento dos votantes escolheram um rato para presidente do Brasil simplesmente porque identificaram nele o papel da verdadeira autoridade.

W.D. - É que me pareceu que um simbolismo dos mais abstratos e arcaicos como o maniqueísmo emergiu em cruas linhas solapando qualquer contexto de complexidade. De repente o cenário cultural empobreceu drasticamente, numa espécie de hecatombe desertificante. A questão da polarização partidária, embora esteja circunscrita estruturalmente a um modo específico da forma de pensamento tradicional, qual seja, a forma da antiga categoria da polaridade, conduz grosseiramente à consideração moral do ultrapassado "relativismo" como baliza da bondade porque apareceu justamente sob as alegorias rudemente contrastantes do maniqueísmo. Exemplo disso é a facilidade com que se passou a relativizar o fluxo visível de conteúdos associados à morte e à vida. Independentemente de quais imagens ilustram um crescimento e um decrescimento de um núcleo de interesse, nessa acepção, esse contraste é capaz de refletir um lado do partidarismo, que oscilará de imagem em imagem ao infinito dos seres. A alguns, a estagnação econômica do país leva à paralisação ou à extinção de alguns negócios e acaba beneficiando aquilo tudo que será deixado pelos negócios. Um aspecto da morte da imagem de uma das posições é vida para o outro ponto de vista. Sabe-se, através do simples senso comum que, deter-se na comparação de dois pontos de vista produz, no nível da moralidade relativista, uma paralisação do juízo como expressão da liberdade do "eu". A função de comparar não pode se imiscuir na função da vontade, que deve ser a expressão livre da energia para a tomada de uma posição, de um ponto de vista. Esse relativismo moral foi uma falácia horrorosa, nitidamente maniqueísta, abstrata e rasa nos argumentos consoladores diante do resultado das eleições. No plano do discurso, há o esforço dos analistas em exemplificar uma pretensa pluralidade de pontos de vista, mas isso não quer dizer que se está indicando as premissas de um jogo com "dois pontos de vista". Esse plano não é o estabelecimento das regras desse jogo.

Roselena - Talvez a massa tenha um sentimento obscuro de sabedoria ao qual pensa estar servindo. Talvez se considere detentora de uma energia sábia que apenas será acionada quando o aprendizado nas escolas públicas limitar-se a conhecimentos ditos úteis ou técnicos aprendidos à distância, pelas emanações esotéricas dos senhores ocultos do mundo. Parece que a esperança num alto comando misterioso, à distância, como quer a ideologia da "escola sem partido" seja a solução cultural para equipar a mente de um bom empregado das lojas do comércio - para isso basta aritmética e um português elementar -, ou um pequeno operário de uma fabriqueta qualquer. Não se cogita na existência real de todas as formas sociais que a essa força oculta a sabedoria servil alimenta, no que ela consiste em sua efetividade. Digo "não se cogita" em nível do povo "inocente". Obviamente há toda uma considerável e respeitável literatura esclarecida a respeito de todas as estruturas e meandros de poder, totalmente disponível a quem quer que seja que não queira ser inocente.

W.D. - Torno-me incessantemente a me estarrecer. Nos transtornos desse incrível mundo chama-me a atenção a questão invertida da identificação do conhecimento justamente com a falta de liberdade. Segundo a opinião da massa, imposta por alguns poderosos propagandeadores, é o conhecimento, o aprendizado, que leva à opressão do dono da caixa de abelhas e não o contrário. O conhecimento de um professor, por exemplo, é desqualificado como algo útil para o convívio social, e passa-se a seguir o comando político de servidão material a segmentos delimitados por aquilo que é identificado como governo. O pavor à independência, liberdade, florescimento das riquezas no nível da vida próxima, ou seja, da vida do corpo, das pessoas à volta, da natureza à volta, ou o nível de sensação de insegurança nessa esfera, ou seja, o baixíssimo nível de percepção física e sensibilidade psicológica, esse nível baixo da massa, é que me tem chocado. Dá-me a contraditória impressão de que a cultura, aparentemente abundantemente dinamizada pela informatização tem sido insuficiente para os próprios humanos. É por isso que estamos estupefactos. A Estamira, uma personalidade vivente de um lixão, personagem de um filme famoso, muitíssimo inteligente, aponta para todos os "trocadillos" que vão invadindo seu espaço mental. Ela explica bem as caraminholas contempladas pelos seres que habitam o fim do mundo das formas, o lixão. Ela ilustra tão bem esse momento.

Roselena – Ela ilustra… mas sempre dentro do confinamento inútil da expressão da sua personalidade. A sua exemplificação já configura a característica dessa nossa era da autoconfiança que se forja em nível de representação espetacular inócua. Essa era inútil de celulares, fotos, audios e filmes. Uma auto-confiança que aparenta a legitimidade de uma coragem que se desnuda transpassa a técnica de representação das tais práticas estéticas e floresce igualmente na expressão do ignorante e da genuína autoridade. O apagamento das diferenças, essa "transparência", definitivamente nos parece ser algo do "mal", a considerar essa sua abstração maniqueísta proposta há 30 anos já pelo Baudrillard. Claro, perceber isso nitidamente não deixa de ser chocante. A autoridade, o autor da representação, a intencionalidade estética, deveria surgir, tradicionalmente, de um sentido de auto-conhecimento e consciência da influência que um humano exerce sobre outro. A autoridade, com tudo o que isso implica moralmente, envolve o sentido de responsabilidade pelo destino de outras pessoas, ou de um espaço, ou a consecução de um projeto, que faz parte de um universo de ideias. Ideias sobre o que é o mundo, a sociedade, as pessoas, etc., no sentido político de saber determinar o que é melhor e o que é pior. A régua moral está intimamente ligada ao conhecimento, todos os filósofos sabem disso, e as tentativas para separar essas duas coisas são infrutíferas. Por isso é uma violência, uma afronta, uma calamidade, a população - que deve ser ensinada -, querer ela mesma ensinar aos professores, ou os pacientes quererem ensinar ao médico. A desmoralização de todos os saberes é um dos pontos abordados pelos explicadores do fascismo e da barbárie como focos de sentido de desenvolvimentos da organização social. Os teóricos que já vêem a humanidade como uma caixa de abelhas, certamente explicam a inutilidade do conhecimento, no nível comum de existência, e a esperteza e sentido lógico que existem na inteligência bárbara da conservação de um modo de existência que paradoxalmente cultiva a morte da humanidade. Porém a isso adiciona-se as técnicas de reprodução estética disponíveis às massas, que as usufruem espontaneamente, entusiasticamente, em seu próprio nível, reproduzindo na verdade a mesma irresponsabilidade de quaisquer meios de comunicação de massa desde o século 19. Essa questão da responsabilidade, da autoria nunca passou de possibilidade teórica. Ocorre no máximo em áreas poéticas, as quais não contam para nada em nível de efetividade educativa ou prática na vida social.

W.D. - Trata-se de repente de uma nação de malvados, implicantes e intrometidos, sem respeito à dignidade alheia por puro parvo egoísmo. Porque há egoísmos menos parvos, menos servis.

Roselena - Você está emocionalmente bastante abalado. Mas como também estou, concordo: uma pessoa tola nessas questões políticas é tomada como esperta, caso seja bem-sucedida financeiramente dentro dos padrões pequeno-burgueses. É tomada por esperta apenas por fazer parte de um clube de falastrões que não se importam verdadeiramente com política. É gente que se acha importante em seu pequeno domínio, o qual é mais do que suficiente para o orgulho de sua pequena existência. Essa gente não se sente ameaçada pela sociedade e nem pelo Estado em suas condições normais.

W.D. - Mas essas pessoas, aparentemente, poderiam ser portadoras de um bom senso extremamente acessível. Por exemplo, eternamente se associa a questão do simples respeito a um espaço necessário à existência de um corpo, com uma questão política, quando isso poderia não ser o caso. Na esfera das propriedades particulares, o respeito comum mostra que a necessidade da maioria dos seres humanos quanto ao seu próprio espaço é suficientemente regulada para haver espaço para todos os 8 bilhões de humanos no planeta terra. A Simone Weil está certa quanto à motivação íntima, primitiva, do povo não amadurecido, como início psicológico da guerra. Mas essa motivação é totalmente insuficiente e inadequada para a efetivação de uma mentalidade elementar de respeito. É totalmente possível, ao humano, não invadir o espaço do outro, e viver bem. Os políticos, donos do Estado - ou seja, da unidade nacional em nome do manuseio dos recursos retirados dos impostos à população - não têm o poder e não almejam o poder de resolver querelas de proprietários particulares. O governo tem as suas próprias propriedades. Qualquer outra pode ser arrebatada pelo governo, já que a única qualidade reconhecível do governo é realmente a violência. Esse assunto é problematizado ao infinito pelas Ciências Sociais e, por fim, a violência e a cultura de morte acabam sendo naturalizadas tanto pelo senso comum quanto pelas estruturas explicativas das ciências.

Roselena – Você e seu "cristianismo"... então concluímos que, como a maioria do povo brasileiro decidiu que o Estado é propriedade particular das pessoas escolhidas por ele, nunca saberemos dos meandros obscuros das guerras comerciais que ocorrem entre os grupos dos ricos proprietários desse Brasil varonil. Se esses grupos vão deixar as plantas crescerem, as abelhas existirem, ou se vão intensificar a desertificação, e por quais meios isso será realizado, permanece um desses hermetismos do poder. Tem uma galera canibal que espera se esbaldar com rios de sangue. Meu mestre já havia falado sobre o recrudescimento do fascínio pelo horrível através dos novos tempos… há cem anos.

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