Uma mensagem colocada numa garrafa e lançada num rio pode chegar ao mar?
Quanto tempo demoraria para chegar ao destinatário?
Cem dias? Cem anos? Nunca?
Cem dias, uma métrica recentemente muito propagandeada, é o tempo usado como período de trégua para um novo governo poder se estruturar noutras latitudes distantes da colônia pau-brasil.
Numa colônia que encena ser país, importam-se sempre modismos e novidades preferencialmente inócuas: "é preciso dar tempo para a adaptação mesmo que já se tenha governado antes".
Boiando pelos rios a mensagem na garrafa, cem ou duzentos dias pode ser um bom tempo quando se tem no meio disto uma Brasília vandalizada, golpeada, com todos os símbolos da República escarnecidos pelo pior tipo humano dos trópicos, um tipo que não é a totalidade, mas que é grande, volumoso, atuante, sempre presente e altamente definidor da realidade brasileira ao longo de 523 anos.
“Ser julgado pela história” é uma citação que tem se repetido em variadas bocas de políticos nas últimas décadas: "o julgamento da história", "ficar bem com a história", "ter o seu merecido lugar na história". Essa história a que se referem está sempre no futuro, o Brasil era ou foi ou é ainda o “País do Futuro”, faz cem anos que o Brasil é o “País do Futuro”, um futuro que demora sempre a chegar.
Cem dias ou duzentos dias ou cem anos: qual o tempo para uma mensagem numa garrafa chegar ao destinatário?
Imaginando livremente o conteúdo da mensagem dentro da garrafa que boia num rio em direção ao Atlântico procurando o destinatário, sempre reverberando a citação do julgamento da história: "A história será implacável com os que hoje se julgam vencedores", considerando toda a experiência adquirida e vivenciada pelos políticos que citam Darcy Ribeiro, pensamos numa carta que tenha conselhos cordiais travestidos em sutis perguntas:
1
Depois da grande experiência de quatorze anos no poder - alguns historiadores consideram dezesseis os anos de governo - pode-se repetir as mesmas estratégias de alianças políticas, as mesmas táticas e políticas econômicas, as mesmas medidas para “desenvolvimento do país” que foram postas em prática naquele período e que como dizem os políticos que tanto citam a história, “foram completamente destruídas” na sequência, num período bem menor de tempo: os seis anos entre 2016 e 2022?
2
A experiência de aquecimento da economia, através do consumo desenfreado, oferta de crédito, isenções para grandes empresas, financiamento com dinheiro público de velhos e novos negócios das oligarquias, mostrou-se insuficiente para a real transformação das desigualdades do Brasil.
O cidadão nivelado a sujeito consumidor: “a primeira geladeira, a primeira TV, a primeira casa, a primeira moto”, até “o primeiro diploma conseguido por alguém da família", tudo isso evaporou com uma ou duas canetadas, levando a situação do explorado brasileiro ao nível mais baixo em décadas, incluindo a perda dos direitos trabalhistas e previdenciários, algo impensável de se imaginar antes de 2002.
É apenas esse mesmo método que se pretende executar novamente e depois ficar torcendo para "se dar bem com a história"?
3
Entre 2002 e 2022 se acelerou a compreensão para a questão da continuidade ou não da vida no planeta Terra. A razão humana através de todas as ciências, até mesmo as do norte colonizador, sabe e reafirma cotidianamente, diante do escancaramento das tragédias por todo o planeta, da visão da natureza vilipendiada pela mão do homem: estamos no último momento de parar, recuar, aprender e salvar a Terra e a própria existência humana.
Não se consegue mais enganar a ninguém com os "estudos e dúvidas" financiados pelas grandes corporações multinacionais que durante décadas minimizaram os efeitos da destruição do planeta pela ação humana.
Não há outra alternativa para a sobrevivência da humaninade que se nomeia civilizada que não seja a reinvenção de todo o seu modo de vida: romper com os milhares de anos de ação destrutiva e se alinhar apenas como mais uma espécie que habita o planeta, nem menos, nem mais importante que todas as outras.
Por que um governo que deseja "ficar bem com a história", que se nomeia defensor da vida e da pluralidade da vida insiste em repetir a destruição?
Desenvolvimento do "agronegócio" na Amazônia?
Estrada "ferrogrão" rasgando terras indígenas, florestas, reservas nacionais para levar comida dos brasileiros para fora do país?
Exploração de petróleo na Foz do Amazonas?
Dinamitar leitos de rios para aprofundar a calha e permitir que navios transportem minérios e grãos para países distantes?
Construir Belomonte e provocar todo o tipo de destruição ambiental e humana? Não, Belomonte não precisa mais ser feita, foi licenciada, construída e colocada em funcionamento entre 2003 e 2015.
De que lado da vida e da história estão os vencedores?
4
Dizem que "centrão" é apenas mais um nome brasileiro para a mesma organização que habita o parlamento desde 1822, uma organização fundamentada na exploração do povo brasileiro e das riquezas do país, através das mais variadas estratégias de utilização dos três poderes em benefício próprio: escravidão, impunidade, financiamento via dinheiro do povo como fundo perdido.
Esse centrão de 1822 fez parte do governo entre 2003 e 2016.
Se é fundamental ficar bem com a história, que história é essa que aceita esse centrão em 2003-2016 e 2023? Uma história cega?
Os explicadores dos mistérios brasileiros poderiam contar para o povo e para a própria história os segredos e benefícios para o Brasil e para o seu povo dessa organização “centrão” ser historicamente maléfica para o país desde 1822, mas como num truque de mágico, se tornar boa e necessária para o governo quando esse é eleito diretamente pelo povo com a promessa de transformação profunda do país, promessa de eliminar a miséria e a fome, promessa do fim da exploração do seu povo e de todo o país exatamente pelo próprio “centrão”.
5
O petróleo junto com a atual corrida pelos minérios é o principal elemento e símbolo do colonialismo hoje. Todos os países e lugares que apostaram e propagaram a ideia de desenvolvimento e auto-suficiência através da exploração do petróleo e dos recursos naturais, mentiram para os seus povos.
Ditaduras, corrupção, destruição da natureza, monopólios, enriquecimento ilícito, miséria do povo, ausência total do respeito aos direitos humanos, esse é o rastro deixado pelo petróleo na Ásia, na África, na América.
Enquanto existem até países vizinhos produzindo gasolina sem petróleo, investindo em tecnologias verdadeiramente sustentáveis para deixarem de ser colônias, outros se entregam e afundam mais na opção por exploração e desvio dos seus recursos naturais.
Por onde anda a promessa do biocombustível sustentável brasileiro?
Energia eólica, energia solar num país gigantesco e tropical: por onde andam?
O Brasil tem sete mil quilômetros de litoral e não busca a energia limpa retirada dos movimentos das marés do oceano.
Pode alguém querer enganar a história dizendo que um dos principais pilares para o novo desenvolvimento do país tem como base a reconstrução da sua empresa petrolífera?
6
A Histórica Constituição de 1988 determinou o prazo de cinco anos para a demarcação das terras indígenas, as terras daqueles que estavam no Brasil muito antes de 1500.
Entre 1991 e 1994 foram demarcadas 139 terras.
No período de 1995 a 2002 outras 145 terras tiveram a sua demarcação.
Nos anos de 2003 a 2016, foram demarcadas 100 terras indígenas.
A constituição determinava 1993 como ano limite. Trinta anos depois nem mesmo metade das terras foram demarcadas, isso considerando os históricos quatorze anos do governo "Um País de Todos".
Para a história, como fica alguém que tem a oportunidade de realizar a demarcação das terras indígenas e não o faz?
7
É possível algum “governo popular” transformar o Brasil, fundado sobre a apropriação das terras indígenas e sobre o trabalho escravo, sem fazer a profunda e definitiva reforma agrária também proclamada na Constituição?
8
A demarcação das terras quilombolas após 35 anos da Constituição também aguarda pela história. Apenas 7% das terras quilombolas foram demarcadas desde então.
O momento se apresenta como ótima oportunidade para quem deseja entrar para a história como “verdadeiro vencedor” ao lado do seu povo, fazendo a efetiva demarcação e entrega da terra a quem verdadeiramente pertence.
9
O Turismo no Brasil, alardeado como fonte de desenvolvimento, não ultrapassa seis milhões de visitantes por ano, mesmo com toda a diversidade e pluralidade de atrativos naturais, históricos e culturais, mesmo o país tendo sediado com gigantesca propaganda os dois principais eventos esportivos do mundo: a Copa da Fifa em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016.
Por comparação: a Croácia recebe 12 milhões de turistas ao ano, o México 45 milhões.
A história explicará um dia os verdadeiros motivos que fazem com que se esconda o Brasil dos turistas, do mundo e dos próprios brasileiros?
10
Ano após ano todos os governos tratam a educação como canal para atender aos interesses de empresas, empreiteiras, fornecedores, desde materiais didáticos até a construção de prédios que quase sempre de desfazem antes mesmo do término de um mandato presidencial.
A essência da transmissão do saber, a relação mestre-aluno, metodicamente é atacada, com a política permanente de desvalorização do professor e o investimento contínuo no desestímulo do “verbo estudar/aprender”.
É priorizada a formação de analfabetos funcionais como mão-de-obra para vagas precarizadas num mercado de trabalho inexistente, ao mesmo tempo em que se vende como promessa o engodo do empreendedorismo como única forma de ascensão dentro do país-colônia: “o indivíduo necessita apenas da sua própria genialidade, dedicação, sorte e ‘algumas dicas da internet’ para atingir o céu da prosperidade.”
Como “entra para a história” quem entrega oficialmente a educação do povo para a pirataria de empresas disfarçadas pelo rótulo de “instituições de educação sem fins lucrativos” que mais lembram rótulos de cervejarias?
Afinal aquele que os politicos tanto têm citado quanto à história e ao futuro, o mesmo Darcy Ribeiro estabeleceu: “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto.”
11
Com o centrão participando do governo de 2003-2016, junto com todos os partidos da velha política brasileira, com um vice-presidente de "confiança" escolhido em 2010 e novamente escolhido em 2014 por aqueles que se preocupam com o "julgamento da história", com o acesso ao consumo de todas as camadas da população durante o período, se com todos esses elementos "favoráveis", ainda assim a experiência do autoproclamado "governo transformador" foi encerrada com a destituição da presidenta via impeachment, o que esperar quando a trajetória toda se repete com os mesmos acordos com a velha política, com o mesmo "equívoco acertado" do escolhido vice atual, com a mesma total ausência de participação popular nos destinos do país?
Caberá a quem explicar para a história por que em nenhum momento buscou-se a efetiva atuação do povo no dia-a-dia da construção e condução do país e do seu destino?
12
O futuro único para o Brasil ser uma nação é o da proteção da vida.
Começa por justiça, pela justiça definitiva dos direitos dos povos indígenas, dos quilombolas e dos trabalhadores da terra que não podem cultivar e viver em paz na própria terra.
Passa pela dignidade da transformação do pensamento e compreensão de que sem a preservação da natureza todo o território brasileiro vai se transformar em imenso deserto.
O desenvolvimento não se faz com asfalto, concreto e painéis luminosos de consumo, isso tudo nem emprego nunca gerou.
A única possibilidade para o Brasil é romper o ciclo de imitação dos países europeus colonizadores, se reinventar como vanguarda da sabedoria do equilíbrio e preservação da natureza, formar cidadãos e não autômatos, exportar sua cultura e beleza e não sua terra.
Apenas quem é movido pelos próprios interesses nascidos e alimentados na corrupção pode fingir não enxergar o futuro possível e insistir em manter o país na roda destruidora e perversa do consumo total que consome e destroi toda a vida.
Alguém preocupado com a história e o futuro ainda tem dúvidas?