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Foto do escritorPatrícia Marcondes de Barros

As Vozes do punk de Teresina

Publicação de Aristides Oliveira e Eduardo Djow conta a história do punk em Teresina


O livro Vozes do punk conta a história do movimento que atravessou a juventude brasileira a partir da década de 1980, apresentando suas dissidências e conexões, tendo como ponto de partida, a cidade de Teresina. Sua força motriz consistiu na rebeldia contra o sistema, expressa de forma geral em impressos alternativos como: fanzines, panfletos, cartazes, entre outros, além das estampas de bandas de rock nas camisetas, piercings e cabelos moicanos, entre outros signos de identificação da tribo urbana que tem nas guitarras elétricas, baixo e bateria, sua artilharia pesada.


Os punks, em uma perspectiva histórica, representaram uma ruptura em relação à geração hippie e seu lema de "paz e amor", motivados pelo desejo de se libertarem das normas sociais e de viverem suas vidas de acordo com seus próprios termos. Eles rejeitaram a conformidade e a complacência, e abraçaram a atitude de confrontação e desafio. Essa postura contestadora e rebelde do punk rock teve um impacto significativo na cultura e na música, especialmente nas décadas seguintes, influenciando uma geração de jovens a questionar as normas estabelecidas e a buscar sua própria identidade e voz.


A ideia de liberdade do "Faça você mesmo" (Do it Yourself) rompeu com paradigmas e propôs um estilo de vida diferente daquele propagado pela "sociedade do sucesso", que se baseia na busca pelo dinheiro e poder dentro do sistema capitalista. A descrença nas instituições sociais e políticas uniu parte da juventude brasileira e internacional, encontrando no som visceral do punk o componente anárquico exato dessa expressão inconformada.


Inicialmente, o punk chegou ao Brasil em São Paulo, tendo como principais referências os grupos Ramones e Sex Pistols. Vale ressaltar que o punk brasileiro de forma ampla não é mera importação do movimento internacional, indo além da chamada assimilação cultural. Trata-se de um processo subjetivo, criativo e original que permeia a identidade cultural brasileira, cuja origem parte de uma apropriação crítica e transformadora das componentes da criação e no movimento punk, também da destruição de certezas e valores. Então, o punk brasileiro é expressão do “nosso jeito de ser”, em nossa língua, o que não ocorre comumente em diversos países europeus.


Segundo Paul Friedlander em Rock and Roll – Uma História Social (2016, p.352): “o punk foi um estilo heterogêneo, compreendendo uma miscelânea complexa de ingredientes e orientações. Palavras eram vomitadas por vocalistas sem noções prévias de tom e melodia”. Neste sentido, Altaide Pedreira do Nascimento, o Chakal, importante protagonista do movimento punk em Teresina com a banda Obtus, postula: “Inventamos a banda pra gritar, xingar, meter o dedo na cara e dizer: você é um escroto e todo mundo sabe o que você faz!” O estilo punk é implosão e explosão de sentimentos, pulsão de morte, uma relação dinamitada pelo próprio sistema que o criou.


Nesta obra “Vozes do punk”, organizada por Aristides Oliveira e Eduardo Djow, vislumbra-se toda a cena underground construída na tórrida Teresina. Através de entrevistas e profícuo material de época (jornais, revistas e panfletos), se adentraram nas memórias relatadas por seus participantes que vieram na esteira de um contexto histórico sombrio balizado pela ditadura militar. As memórias como se sabe, são dinâmicas e se relacionam intrinsecamente com a história do tempo presente, portanto, o avivamento dos anos de repressão em meio às ameaças autoritárias dos últimos anos são sentidos pelos artistas que fizeram toda a mágica acontecer e que mantêm de forma essencialista a chama da indignação acesa.


Os depoimentos do livro foram realizados em clima informal de bate-papo e os leitores de alguma forma se sentem convidados a participar, ressignificando suas próprias memórias em relação ao tema e à época. As histórias relatam também os lugares onde o punk acontecia em Teresina como o Teatro do Boi e o bar Elis, a exemplo, que aparece em vários depoimentos. Outra recorrência é a da importância do Grupo de Estudos Anarquistas (GEA) que se propunha a debruçar sobre os conceitos principais do anarquismo, perceptível nas produções da época.


A epopeia outsider começou com o grupo Grito Absurdo (1985-1988) que revelou não apenas uma preocupação política, mas também estética, inserindo a poesia de Fernando Pessoa, com inspiração direta nas aulas e pesquisas da professora Dorinha na UFPI, Universidade Federal do Piauí. Dentro da perspectiva interartes inerentes à época, este grupo mesclou o punk com a literatura, a dança e o teatro. Tal iniciativa não agradou a todos, mas realmente esta nunca foi a perspectiva dos punks, como afirma Eduardo Crispim da banda Obtus: “Não era música para agradar, e sim, para agredir”. Na esteira do grupo Grito Absurdo, outros surgiram, cada qual com sua especificidade, mas unidos na proposta anti-sistema: Obtus, Verme Noise, Fimose, Campo Minado, Resistência Libertária, Anarcóticos, entre outros.


Em um primeiro momento do livro, surgem as vozes dissonantes de protagonistas dessa cena: Fábio Almeida de Carvalho, Jorge Oliveira, Eduardo Djow, Chakal, Fernando Castelo Branco, Bayaku, Zé Nildo, Eduardo Crispim, Makline, Vidal Neto, Jairo Mouzinho, Heitor Matos, Sid Blues, Fofão, Demétrio, entre outros.


Posteriormente, o livro conta também com a participação de três grandes pesquisadoras, enriquecendo o debate sobre o punk. Em As Lutas têm canções, a pesquisadora e professora Paula Guerra, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), apresenta o itinerário em que se apresentou o punk na sua trajetória de vida e pesquisa. A professora ressalta também os alcances e desafios da inserção dessas culturas marginais juvenis nas universidades de forma geral, e especificamente, em Portugal.


Em frequências sonoras do Rock, Olga Costa, jornalista cultural e com uma longa estrada no cenário da produção musical, em seu depoimento, conta sobre sua experiência com o punk rock e compartilha sua trajetória, uma verdadeira inspiração a todas e todos os amantes da música pesada em suas diferentes nuances.


Para finalizar, temos a pesquisadora musical Maria Caram e seu depoimento intitulado A força da sonoridade feminina no cenário independente. em que nos apresenta questões relacionadas à mulher em um campo eminentemente masculino como o rock. Produtora de eventos na área musical e estudiosa da música feminina nacional e internacional, transita entre o indie, o eletrônico e o punk e nos revela sobre o duo musical com Olga Costa, denominado Motosserra.


Foram muitas as vozes do punk que compuseram o cenário de Teresina, todas viscerais no som e na crítica, postulando contra toda a forma de poder e marca de gado no ser humano a fim de normalizá-lo. Vozes que alcançam o século XXI ainda como transgressoras.



Entrevista de Patrícia com o professor Aristides Oliveira, um dos organizadores do livro.


Aristides Oliveira e Eduardo Djow, organizadores do livro Vozes do Punk


Patrícia: Aristides, conte-nos sobre a organização do livro Vozes dos Punk, como surgiu esta ideia?


Aristides Oliveira Desde muito jovem, quando tinha 15 anos, comecei a frequentar shows de rock em Teresina (PI), principalmente os que rolavam no espaço Belas Artes. Quem me chamou para conhecer esse cenário foi o amigo Demetrios Galvão, que na época fazia parte do Grupo de Estudos Anarquistas (GEA) e transitava no circuito anarcopunk da cidade. Assim, fui conhecendo de perto várias bandas como a Obtus, Anarcoticos, Káfila, bem como vários grupos de heavy metal que me influenciaram a ser entusiasta da música underground e a valorizar o que essa turma fazia por aqui.


Nunca me considerei punk ou ligado a algum movimento específico, mas era um ouvinte interessado e sempre que possível participava dos eventos. Fui conhecendo muita gente massa, o tempo foi passando e percebi que era importante não deixar essas memórias musicais se dispersarem. Juntei meu respeito pela música punk piauiense com o meu ofício de historiador e convidei Eduardo Djow para concretizar um projeto que reunisse essas experiências, já que ele também é um cara ativo, tanto como integrante de banda (Miséria), organizador de shows e espectador crítico há mais tempo que eu.


Djow foi articulando os contatos com a galera da “velha guarda” e organizamos o quebra-cabeça histórico, mapeando narrativas do punk de 1988, quando surgiu a primeira banda do gênero em Teresina (Grito Absurdo) até os anos 2000, capturando outras vozes contemporâneas que enriquecem nosso underground.


O mais curioso nesse processo de organização do livro foi perceber que alguns nomes importantes da cena se recusaram a participar do projeto, seja por preguiça de narrar ou por desinteresse, o que não afetou o andamento das costuras históricas. Chegamos a entrevistar uma referência do anarcopunk, que, não sabemos o motivo, nunca autorizou a publicação da entrevista, bem como outras pessoas que se entusiasmaram com o convite, prometeram conceder entrevista, mas “sumiram”, ignorando os pedidos de envio dos seus relatos.


Vozes do Punk é um livro que conta uma história grande e bonita, mas que em alguns momentos nos deparamos com certas lacunas e brechas de tempo não preenchidas pelos próprios protagonistas, mas o resultado que tivemos foi surpreendente, graças à colaboração de várias gerações de músicos que fazem bastante barulho numa província que cochicha.


Toda história “é esburacada”, como um tecido rasgado, corroído pelo tempo e a galera que escreveu esse livro fez um esforço incrível para iluminar as zonas obscuras, encobertas, que, por um triz, poderiam ter sido condenadas ao esquecimento.


Patrícia: Nesta obra, vislumbra-se toda a cena underground construída em Teresina através de entrevistas. Você e Eduardo Djow se adentraram nas memórias relatadas por seus participantes que vieram na esteira de um contexto histórico sombrio balizado pela ditadura militar. Quais as permanências deste momento histórico na atualidade?


Aristides Oliveira: Ainda somos assombrados pelo fantasma do autoritarismo de raiz integralista-militarista, que “dormiu” no inconsciente brasileiro e voltou mais fortalecido e brutal. Após viver quatro anos de neofascismo (2019-2022) e descobrir que boa parte de nossos parentes, amigos e amigas, aderiram ao pensamento de extrema-direita, sentindo-se autorizados a arrotar seu racismo, homofobia e intolerância contra o diverso, o punk tornou-se uma sonoridade fundamental nos dias que vivemos para socar no rosto imundo desses desgraçados e deixar bem claro que, mesmo com essas permanências extremistas querendo reocupar o espaço, estaremos firmes para meter o cacete nos fascistas cretinos que ousam solapar nossa democracia.


O punk rock não é apenas um gênero musical, é um instrumento de luta contra a estupidez, o ódio e os espectros do horror que ameaçam nossa liberdade. Para mim, a importância do punk pode ser resumida nas palavras de Umberto Eco na obra Fascismo Eterno (2018) quando afirma que “o Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas, a cada dia, em cada lugar do mundo. Liberdade e libertação é uma tarefa que não acaba nunca. Que este seja o nosso mote: não esqueçam”.


Patrícia: Como era ser punk em Teresina nos anos 1990? Qual a especificidade desse movimento em Teresina?


Aristides Oliveira: Ser punk nessa época era andar de preto debaixo do Sol, enfrentar o conservadorismo dos pais e do provincianismo capenga da “Tristeresina”, ir para os shows a pé quando não tinha grana para pegar ônibus, se reunir nas praças e trocar referências musicais, combinar de ouvir som na casa dos amigos, participar dos protestos no Sete de Setembro ou nas reivindicações urbanas mais urgentes em qualquer época do ano, invadir o Palácio de Karnak, sede do governo, e enfrentar a polícia contra a péssima gestão excludente nas áreas de habitação e transporte, se reunir aos domingos para debater textos anarquistas e planejar ações de conscientização política, gritar no palco de uma cidade presa ao regionalismo “voz e violão”, ocupar a Vila Irmã Dulce para garantir terras para as pessoas que não tinham casa para viver com dignidade, manter contato com bandas e coletivos de outros estados e países, fortalecendo um intercâmbio para se atualizar do que estava rolando além das nossas fronteiras, participar de encontros anarcopunks pelo Brasil e trazer punks de todo canto para compartilhar suas experiências com a galera daqui. Tivemos o Grupo de Estudos Anarquistas (GEA), um movimento forte que mostrou ao mundo que punk não é apenas música, mas pesquisa, leitura, formação política e engajamento e luta contra as injustiças sociais.


Patrícia: Como colaborar para a produção impressa deste livro?


Aristides Oliveira: A ajuda é fundamental. Estamos fazendo uma campanha de pré-venda, arrecadando 40 reais para quem mora no Piauí e 55 reais de outros estados (porque tem o frete né?). As pessoas podem fazer um pix (017.166.503-13) e enviar o comprovante pelo meu zap (86-998345393). Pronto! Somamos até o momento 40% do valor que precisamos para rodar o livro na gráfica. Com os apoios essa história vai circular.


Grito Absurdo, a primeira banda de punk rock de Teresina


Referência

FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll-uma História Social. Tradução de A. Costa. 3a.ed. Rio de Janeiro, Record, 2004.


imagens

Arquivo pessoal de Aristides Oliveira

Acervo Demetrios, Dante Galvão

Grito Absurdo – Acervo Jorjão.


Patrícia Marcondes de Barros

Doutora e Mestre em História (UNESP). Pesquisadora e professora nas áreas de História e Literatura, com estudos relacionados à contracultura brasileira.

Publicou "Panis et Circenses": a ideia de nacionalidade no Movimento Tropicalista (EDUEL, 2000) e organizou as seguintes obras: O Sol da Liberdade de autoria de Luiz Carlos Maciel (Vieira & Lent, 2014) e Transas da contracultura brasileira (Editora Passagens, 2020).


Contato Patrícia:





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