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Haverá futuro para a educação?



A educação no Brasil vinha sendo entendida e concebida pela maior parte dos profissionais da área, desde pelo menos a metade do século XX, como um elemento óbvio de projeto de Estado, inserida no contexto constitucional, realizada de forma institucionalizada, uniformemente, em todo o território nacional. Justamente essa visão vem sendo questionada e dissolvida, de forma pulverizada em toda a sociedade, e essa dissolução tem sido adotada muitas vezes como posicionamento político relevante e válido em meio à crise cultural generalizada da atualidade.

Parece que cabe aos próprios profissionais da área um esforço sério de reflexão a respeito dessa situação porque a própria ideia de profissão associada à ideia da “área” depende da definição de um lugar para a existência desse fenômeno social a que chamamos generalizadamente educação para nos referirmos à escola institucionalizada pelo Estado de direito.

Normalmente, nos meios educacionais, o debate sobre todos os variados problemas e questões relativos ao processo de ensino-aprendizagem é feito sobre a pressuposição tácita da existência de um sistema educacional assegurado e naturalizado como tópico estrutural de instância política e social. Mas agora é preciso perceber que essa “base” óbvia do que é chamado educação está “derretendo” no mínimo na mesma velocidade do derretimento das geleiras dos pólos do planeta.

Sob múltiplos olhares, com ênfase em aspectos diversos, de Anísio Teixeira a Paulo Freire, passando por Darcy Ribeiro e os vários grupos de pessoas que ajudaram a construir suas leis, a educação como projeto de Estado está inserida numa visão progressista e desenvolvimentista do indivíduo em analogia com o desenvolvimento do próprio país. O brasileiro deve se desenvolver como ser humano em consonância com o desenvolvimento do seu país, e este é concebido como uma nação mundial, ou seja, uma nação soberana em meio às outras, comparável, culturalmente, às outras. Portanto a educação, sob esse ângulo, deve estar totalmente sintonizada com os projetos de crescimento e desenvolvimento, principalmente econômicos, que geralmente acompanham os discursos governamentais. Trata-se de uma visão de educação atrelada à visão da existência de um Estado, e que este Estado seja realizado por uma entidade centralizadora, como governo, com o objetivo de proceder a regulação de suas partes constitucionais e institucionais.

Ocorre que já há algum tempo, aquilo que chamamos Estado tem dado sinais de que funciona cada vez menos nesse paradigma de centralização e regulação, ou governo, no sentido amplo da palavra, qual seja, significando existência, implantação e controle de regras e leis de modo geral atendendo às necessidades da nação como um todo. Temos vivido cotidianamente vários ataques à ideia de educação como direito cidadão. Esses ataques estão resumidos, por exemplo, no trecho de uma carta pública de crítica ao governo do presidente Bolsonaro, assinada por 152 bispos da Igreja Católica no dia 26 de Julho de 2020:

“Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde (...)”.

De uma certa perspectiva é visível que o funcionamento social, econômico e cultural tem sido organizado privilegiadamente pelas grandes empresas de tecnologia digital, subordinando à sua lógica todas as outras grandes empresas e também os Estados na promoção de uma mutação cultural em nível planetário. Se na verdade já sabíamos que a educação sempre estivera subordinada aos interesses dos grandes capitais - e sua estruturação universal foi possível em grande parte pautada por esses interesses -, os quais englobam a propriedade e uso dos conhecimentos tecnocientíficos, agora essa mesma subordinação parece prescindir dos sistemas tradicionais de educação institucionalizados, e vem sendo substituída pelas tecnologias informacionais digitais globalizadas difundidas no uso cotidiano dos habitantes do planeta.

Uma fala da cientista e ativista social indiana Vandana Shiva ilustra exemplarmente essa questão: “Percebi que algo estranho tinha acontecido no mundo, onde eu via bilionários que não eram apenas iguais aos chefes de governo, mas que na verdade os substituíam. (…) Os novos gigantes de dados digitais estão minando as nossas mentes, estão pegando-as, convertendo-as na chamada “big data” e vendendo-as de volta através do Facebook e WhatsApp e fazendo vigilância. (…) Precisamos de uma convenção sobre privacidade digital. Uma convenção global. (...) Temos que encontrar novas formas criativas de liberdade, novas ações para a liberdade, novas solidariedades pela liberdade, mas só podemos evoluir se soubermos o que está acontecendo”.

O fundo do posicionamento político relacionado com o direito à educação pode ser considerado como constituído por uma base motivacional dividida em duas grandes concepções coexistentes a saber: uma concepção de educação em que a meta é formar pessoas como bons produtos sociais, direcionada ao desenvolvimento de indivíduos que possam se encaixar na ordem vigente, basicamente sendo empregados nas empresas, sabendo ler, escrever e contar e, com isso, podendo servir à engrenagem capitalista sob a aparência de sucesso pessoal e aumento da qualidade de vida; e outra concepção a saber: a que parte do ponto de vista de que a educação é responsável pelo desenvolvimento da pessoa no contexto da formação cidadã, para a participação democrática nos processos sociais a partir do cultivo da percepção das complexidades das inter-relações sociais, históricas e políticas, ao lado do desenvolvimento das potencialidades e talentos específicos relacionados aos conteúdos das disciplinas escolares, ou seja, uma concepção humanista, que vê a sociedade como produto do ser humano com o poder de interferência e modificação nessa sociedade.

Na primeira concepção, o educador, pressupondo uma ordem política e social estável, tem a convicção de que deve conduzir o educando a se encaixar com sucesso nessa ordem e, na segunda concepção, o educador, pressupondo a ausência de estabilidade na ordem política e social e observando a presença de inúmeras imperfeições e injustiças no funcionamento das instituições, tem a convicção de que deve conduzir o educando ao desenvolvimento da consciência crítica de par com um senso de liberdade para o exercimento de seus talentos específicos.

Ora, num momento em que o mundo nitidamente não apresenta, na manifestação das imagens possíveis de suas realidades, uma estrutura de estabilidade econômica que assegure os “empregos” ao velho modo colonialista capitalista das fábricas e indústrias do progresso econômico alavancado pela energia oriunda dos combustíveis fósseis e da extração indiscriminada de recursos naturais, ou seja, num mundo de recursos naturais cada vez mais escassos, apenas a alternativa da educação como processo do desenvolvimento de potencialidades de talentos humanos, criticidade e cidadania é que faz sentido. Mas é justamente e obviamente esse tipo de educação que, todos estão vendo, vai contra os interesses dos novos donos do mundo associados aos desgovernos estrategicamente implantados pelas grandes corporações capitalistas.

Portanto parece que a educação como “área”, como “lugar”, apresenta-se agora com o aspecto de um território importante na sustentação da velha luta entre autonomia e colonialismo. Aos educadores cabe refletir sobre a opção de se engajar na educação sob o comportamento de obedientes colonizados, extasiados com as invenções tecnológicas impostas ao terceiro mundo pelo primeiro mundo, apresentadas sedutoramente como elementos civilizatórios “avançados” e totalmente desejáveis, ou optar pela visão crítica da realidade, recusando o prosseguimento do projeto colonizador e interferindo nas transformações sociais, caminhando em direção ao fortalecimento da ideia de democracia participativa e cidadã. Nesse último caso sim, há possibilidade de, por exemplo, nos engajarmos numa convenção global sobre privacidade digital.

Precisamos estar atentos aos efeitos devastadores da ideologia colonizadora, que concebe as geografias e as mentes do “terceiro mundo” como espaços vazios a serem invadidos, explorados, espoliados e ocupados. Como diz Vandana Shiva: “O último passo da colonização é o que chamo Mente nullius: a colonização de nossas mentes”.

Por fim, quanto à nossa relação com “tecnologia”, a antiga filosofia humanista sobre a questão do “uso” nos ilumina a questão: ela é que deve nos servir, e não nós a ela.


Foto: Walter Antunes


Referências:

Da colonização das sementes à colonização da mente

Andrea Cunha Freitas - 09.02.2020

Grupo com 152 bispos da Igreja Católica assina carta crítica ao governo

Luiz Calcagno - 26/07/2020








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