Todos devem ler Metade Cara, Metade Máscara, obra seminal de Eliane Potiguara, porque em primeiro lugar está aí reunida num volume relativamente conciso, uma compilação exemplar de uma série de variantes importantes da condição da pessoa indígena na contemporaneidade e, em segundo lugar, porque através do estatuto literário a obra carrega o poder de abrir os olhos da maioria brasileira atrasada quanto à necessidade de corresponder à formação de uma consciência cultural à altura dos valores dos povos originários que deveriam, nesse ponto histórico, ser também os valores do povo brasileiro.
O poder dessa literatura liga-se sobretudo à sua função humanizadora, como ensinou Antônio Cândido em seu famoso texto O direito à literatura, aparecendo na construção estética de Eliane Potiguara através de incomum intensidade emocional. Uma intensidade possível porque vivida na carne e no espírito da própria escritora em todas as suas nuances e comunicada ao leitor estupefacto que, assim como todo brasileiro, quase sempre desconhece tudo sobre as condições de vida das pessoas indígenas.
Trata-se de um livro que faz chorar, assim como talvez chorou o leitor da negra Carolina Maria de Jesus lendo Quarto de despejo. É bom que um livro nos faça chorar. É sinal inequívoco de que estamos aprendendo a perceber alguma coisa de muito importante sobre nós mesmos. Como quando lemos: "Vi um indiozinho escorrendo pelo bueiro. A metade de seu corpo superior debruçava-se sobre o meio-fio da rua e a outra parte jazia cansada, escorrendo pelo esgoto urbano" (p.102).
Uma enorme vitalidade dessa figura, objeto-livro, contrasta com o fundo da atmosfera da necropolítica contextual. A exuberância da vida da voz de Eliane Potiguara é captada pelo leitor através de intenso movimento por entre hibridismos formais, narrativas de viagens físicas, simbólicas e literárias: "Aprendi com minha avó indígena, com Salvador Dali e Paulo Freire a reconstruir uma imagem de nós mesmos, desconstruir imposições e a reconstruir nosso discurso" (p.105).
Irreverente e livre, essa voz canta, dança, viaja, conversa, pensa e sente, explicitando a correspondência característica da estética cultural indígena entre Beleza e Sabedoria. À barbárie do colonizador, que circum-navega o globo para subjugar, explorar, dizimar gente, bicho, floresta e terra, opõe-se aqui a civilidade verdadeira de uma indígena que anda pelo mundo conversando com povos de todos os continentes em busca de soluções políticas para o sofrimento e a miséria distribuídos calculadamente pelo sistema imperialista como saldo do falso progresso civilizatório moderno aos povos originários de todas as partes do planeta.
"Cunhataí sai pelas matas, pelos céus, pelos rochedos, pelas montanhas, pelos rios e pelos lagos buscando suas raízes fragmentadas e fragilizadas pelo colonizador de todos os tempos. Viaja pelo espaço e vai percebendo, como em um filme, as histórias de outras mulheres, de outros guerreiros, de crianças, de velhos e de velhas ou viúvos(as). Ela vai testemunhando a destruição das terras, a poluição dos rios, o saque das riquezas minerais" (p.76).
É assim que Eliane Potiguara vai contando, em primeira pessoa, sua luta pessoal e coletiva ao mesmo tempo, entremeando a narrativa com explicações, citações, conceituações e relatórios de ações políticas. Tudo marcado pela denúncia da enorme violência que permeia a existência indígena e, ao mesmo tempo, por um tom de confiança na construção dos diálogos em forma de tramas de encontros ao redor do globo: "Trezentos milhões de povos indígenas no mundo inteiro estão em estado de alerta na defesa de sua identidade, participando de fóruns nacionais, internacionais... (p.106).
Dessa forma a escritora exemplifica o indígena mostrando a si mesma em sua letra, trazendo à tona a elaboração de sua própria biografia. Descreve o que vê e expressa o que sente frente ao que vê. Conta histórias indígenas que ouviu ao longo de sua vida. Cria poesia com todo esse material. Seus poemas são como sínteses expressivas ao final dos capítulos. Exerce o lirismo amoroso. Contempla, nomeando, inúmeros povos e nomes de personalidades indígenas.
"Esse sofrer me pegou pelo pé, mas pude dar um nó nisso tudo quando pisei nas terras de meus avós e compreendi sua história oprimida e a história opressora do colonizador" (p. 98).
"Bonito é florir no meio dos ensinamentos impostos pelo poder. Bonito é florir no meio do ódio, da inveja, da mentira ou do lixo da sociedade. Bonito é sorrir ou amar quando uma cachoeira de lágrimas nos cobre a alma! Bonito é poder dizer sim e avançar. Bonito é construir e abrir as portas a partir do nada. Bonito é renascer todos os dias. Um futuro digno espera os povos indígenas de todo o mundo" (p.87).
É preciso acrescentar que um aspecto fundamental de Metade Cara, Metade Máscara é seu caráter militante feminista de contrapeso à hegemonia cultural machista. Isso se faz na obra pela afirmação da tese da identidade indígena em associação ao arquétipo feminino universal.
Aqui se apresenta a conexão com o sagrado feminino como tomada de consciência de alcance político. À medida que o domínio próprio do arquétipo da mãe-terra, dos povos originários, da mulher e de todas as qualidades simbólicas do feminino detectam a interiorização do inimigo pelo processo de colonização para além do plano externo, o combate desde esse plano interno é campo privilegiado da mulher guerreira, por ser mulher e por ser indígena. Por esse viés Eliane Potiguara ensina que a mulher luta em seu campo próprio quando luta a causa dos povos originários.
"Podemos dizer que a libertação do povo indígena passa radicalmente pela cultura, pela espiritualidade e pela cosmovisão das mulheres" (p. 46).
"E é com a mulher que o homem aprende. É com a mãe-terra, é com o ventre vulcânico revolucionário, guerreiro, combativo que trará a transformação do ser humano contra a exploração do homem pelo homem e, por conseguinte, a transformação dos sistemas políticos, sociais e econômicos" (p. 107).
É pela perspectiva da transformação que Metade Cara, Metade Máscara deve ser lido pelo povo brasileiro, a começar por todos os jovens do Ensino Médio, aos quais deve-se garantir o acesso às obras da literatura indígena. Inclui-se nisso a renovação da própria literatura brasileira pela palavra indígena, a qual extrapola as lógicas estilísticas históricas de gêneros e linguagens e inaugura necessários horizontes mentais em meio à complexidade delirante da cultura abstrata capitalística em que vivemos.
Eliane Potiguara, nascida no ano de 1950, é considerada a primeira escritora indígena brasileira e tem vários livros publicados. Metade Cara, Metade Máscara foi lançado em 2004 pela editora fundada pela própria autora, Grumin, e é vendido exclusivamente através do site:
Agradecimentos a Léo Daniel da Conceição Silva, Michelle Duarte, Walter Antunes, Manoel Felipe Alves dos Santos, Érika Rodrigues, Sinalva Ferreira e a todos os participantes do Círculo Literário de CiberLeitura, Projeto de Extensão do curso de Letras da Universidade Estadual do Tocantins-Unitins, em especial aos que se reuniram para conversar sobre Metade Cara, Metade Máscara, de Eliane Potiguara, no dia 22 de Abril de 2023.
Referências:
CÂNDIDO, Antônio.
O direito à literatura. Vários Escritos. 5. Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.
POTIGUARA, Eliane.
Metade cara, metade máscara. 3. Ed. Rio de Janeiro, RJ: Grumin, 2018.
FOTO: Walter Antunes