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Foto do escritorWalter Antunes

O inacreditável olhar do que não é cego e finge não ver



o choro alimenta um joão

a risada dá comida pra uma hiena

que comendo a mão até o cotovelo ri

que comendo a mão até o cotovelo ri

hiena ria, hiena ria, hiena ria, hiena ria

ria, ria, ria, ria, ria, ria, ria

(Virna Lisi, Hiena Ria em "O Que Diriam os Vizinhos?")


Alguém pode dizer “é o domínio total da máquina, da grande engrenagem sobre a humanidade”, outro alguém ainda diria “sempre foi assim”.


Independente da frase de fuga o que vemos é a inação da quase totalidade das pessoas. A opção por não se fazer presente de forma plena, não exercer seu poder político (talvez dizendo aqui: “mas eu não tenho poder”), não lutar pela vida, pela própria vida.


Tudo poderia estar na grande prateleira de livros dos inúmeros momentos de hipocrisia coletiva na história como apenas mais um volume, mas essa já não é mais uma possibilidade, a humanidade enfim encontrou o seu limite.


Limite de se esquivar, de se esconder, de não se fazer presente nas decisões de toda a humanidade.


Nunca antes vivenciamos um momento como o atual, onde a possibilidade de toda informação e conhecimento acumulado pela humanidade está na palma da mão, sem a necessidade de algum talentoso vidente para fazer a leitura dos segredos contidos nas linhas do destino.


Durante séculos esse foi o escape mais fácil: dizer das dificuldades do trânsito das comunicações, da falta de conhecimento do que se passa até mesmo ao imediato redor para justificar a inação, o não se mover, o não se importar, o esquivar-se.


Sim o limite chegou e não há mais como dele se esconder. A humanidade está diante do dilema de tomar para si a responsabilidade de ação plena sobre a sua vida presente em todos os níveis de existência ou manter-se boiando na atitude irresponsável e assistir ao não futuro dessa vida.


A enciclopédia da destruição infinita

No anedotário enciclopédico que dominou durante séculos a propaganda da máquina de destruição também conhecida por seu mote principal “tomar para si aquilo que não é seu”, fomos todos alfabetizados para crer no dogma de que certas coisas são infinitas, entre elas a natureza e as gentes.


Não importava quantas árvores fossem derrubadas, a floresta era infindável. Não importava quanto dos povos nativos fossem exterminados de uma terra, eles sempre continuariam a existir.


Extinção não é uma palavra recorrente na enciclopédia dos donos da grande narrativa que fez o mundo todo se acomodar em torno da lógica do falso desenvolvimento predatório e aniquilador que nos trouxe ao atual momento limite. Quando muito extinção aparecia como a ocorrência de um mero acidente de percurso do processo.


A recente pandemia experimentada pelo mundo, que muitos ainda tentam provar que teria sido produzida a partir de laboratórios, não trazia o risco da extinção de toda a humanidade, mas serviu com perfeição ao propósito de fazer as pessoas temerem por sua própria extinção.


Utilizada no volume e pressão corretos essa ameaça de extinção individual é uma ferramenta perfeita para a nova acomodação das individualidades no novo cenário que há muito vinha sendo desenvolvido dentro do princípio fundamental do jogo de exaltação das individualidades e o completo apagamento do coletivo.


Os dez mandamentos

Então temos no imediato momento de pequena pausa na pandemia que é estabelecida como ameaça à sobrevivência do indivíduo e não da humanidade, o aprofundamento da nova ordem como mandamentos pregados no estábulo da fazenda dos animais:


1 você é importante


2 você é o que importa


3 fale sempre de você ao mundo como se você fosse uma grande estrela de cinema, pois você é importante


4 não existe mais vaga de trabalho no mundo para ninguém, mas você tem que manter as suas oportunidades


5 para o sucesso do mandamento quatro, mantenha o foco em você apenas


6 se te disserem que tudo está ruindo, não acredite, priorize você, pois você é importante


7 se você perceber que tudo está ruindo, não acredite na sua própria percepção, mantenha o foco em você, pois isso é o que está escrito no primeiro e no segundo mandamentos


8 qualquer coisa que faça você questionar as evidências ou fatos e enfraqueça o seu rendimento na manutenção das suas oportunidades, num mundo onde não existem mais vagas de trabalho, deve ser combatido com pílulas de prazer, até que você retome o foco em você, você é o que importa, você é o importante


9 independente do que aconteça, faça sempre propaganda positiva de você mesmo, lembrando que isso manterá as oportunidades para você, lembrando que você é importante, lembrando que você é o que importa


10 siga sempre todos os mandamentos, do contrário há de encontrar a ira do sistema que cancelará você, que apagará você, você é o importante, você é o que importa, você deve continuar sempre existindo


Cancelando o conhecimento

Todo o verdadeiro conhecimento humano, todo o desenvolvimento humano real, todas as legítimas tradições humanas, como alguns preferem chamar, adequadamente programados e cancelados pelo terror promovido lentamente, passo a passo e por fim revelado na trégua ameaçadora da pandemia.


Então com os pulmões cheios do fôlego causado pelo medo, as ovelhas balem alto: “1% manda, 8 bilhões obedecem”.


A prateleira da presença-ausência

O limite da humanidade está no Congo, está no Sudão, está na Palestina.


As guerras e o genocídio de povos narradas através de releases e legitimadas por autores falaciosos sob contratos e por imagens do cinema, assimiliadas ao longo de séculos, implicam na aplicação da reverberada auto-indulgência salvadora, sempre a mesma: 


“não sei sobre o Iraque”


“não sei sobre o Vietnã”


“não sei sobre o Afeganistão”


“não sei sobre Toussaint Loverture”


“não sei sobre os Aweti”


“não sei sobre a Namíbia”


“não sei sobre o embargo contra Cuba”


“não sei sobre o marco temporal”


“não sei sobre o paralelo 38N, não sei sobre o paralelo 11”


“não sei sobre Belo Monte nem Brumadinho”


“não sei sobre Sykes-Picot”


“não sei sobre os milhões de habitantes da América antes da invasão de Colombo”


“não sei sobre os Rohingyas”


“não sei sobre a Síria”


“não sei sobre Raoni”


“não sei nada sobre os Uigures”


“não sei nada sobre o holocausto Armênio”


“não sei sobre a Líbia”


“não sei sobre Canudos”


“não sei sobre a perseguição de mil anos aos judeus na Europa”


“não sei sobre o Haiti”


“não sei sobre o Curdistão”


“não sei sobre a invasão do México, das Filipinas, do Japão”


“não sei sobre os Katawixi”


“não sei sobre os Yazidis”


Tudo cabe, caberia, dentro do esquadro do papel do novo escravizado, amedrontado pela trégua da pandemia, distraído através das infindáveis diversões eletrônicas que recebe para se manter operante para o sistema, entretido pela sua ração diária de falso pão e de cerveja - sim, a cerveja e o futebol são a bebida do escravo há milhares de anos - se não fosse o limite a que chegamos.


O fim do mundo civilizado na Palestina

O limite na Palestina é a nova forma de fazer as coisas pelo 1% que domina os oito bilhões da humanidade. Os ataques ao Líbano, Síria e Irã, procurando atrair outras forças para um conflito generalizado, as versões unilaterais de propaganda que tentam difundir a falácia de um perigo ao mundo pelos Houthis do Iêmen e pelo Irã como fizeram através de extensa propaganda contra o Iraque em 2003 e o Afeganistão em 2001, os massacres feitos pelos milicianos sionistas na Cisjordânia e em Jerusalém ocupada contra os palestinos, tudo integra a tradicional estratégia do colonizador que lucra com a guerra e lucra sobretudo com o roubo das riquezas de cada lugar, executando o “tomar para si aquilo que não é seu” como feito nos últimos cinco séculos na América, África e Ásia.


A incessável destruição vista por toda a África através da implosão dos frágeis estados nacionais, eles mesmos originados e moldados pelos colonizadores com fins de perpetuação da colonização, com ininterruptos conflitos étnicos e religiosos que produzem o deleite da mídia do auto-proclamado mundo livre, fomentados o tempo todo pelos países ocidentais, permite a eficácia das operações dos saqueadores das riquezas naturais de todo o continente.


Somália, Líbia, Congo, Sudão, dezenas de outros países em ebulição para serem submetidos aos interesses dos países colonizadores através de suas “empresas e agências de cooperação e desenvolvimento”. Tudo isso ainda se enquadra com facilidade dentro da estrutura colonialista tão conhecida do mundo com milhões de africanos no processo de extermínio nesse momento.


Já em Gaza está acontecendo agora o limite e o fim da civilização como fomos condicionados a acreditar que seria possível existir. O genocídio atual após cem anos do cerco minuciosamente planejado e executado ao povo palestino pelo plano britânico-sionista, após o genocídio da Nakba de 1948, após o confinamento e o apartheid das décadas seguintes ao 1967, é a síntese e o aperfeiçoamento de toda a ampla coleção de atrocidades realizadas em diversos momentos da humanidade.


Se anteriormente essas atrocidades eram relatadas por viajantes ou historiadores, restando a cada indivíduo a reflexão e o cálculo do tamanho da barbaridade cruel, em Gaza temos a transmissão ao vivo, 24 horas por dia, do equivalente aos cercos de cidades medievais por exércitos sanguinários, do extermínio instantâneo de vilarejos inteiros pelos norte-americanos no Vietnã, o equivalente à Hiroshima e Nagazaki, equivalente às grandes marchas da fome contra os indígenas nos Estados Unidos, contra os africanos na África, contra os povos nativos na União Soviética.


O mundo todo assiste a execução a cada minuto de crianças, mulheres, idosos, de toda a população de Gaza, forçada a deixar seus lares ancestrais, a se deslocar a cada minuto enquanto os bombardeios milimetricamente planejados matam o povo, destroem casas, escolas, igrejas, hospitais, mesquitas, museus, universidades, todo o registro do passado da vida em Gaza, toda a perspectiva de presente e futuro.


O mundo todo vê em transmissão ao vivo a tortura promovida pelo exército de Israel estruturado e financiado pelos governos dos Estados Unidos e dos países europeus (Alemanha, Inglaterra, Itália e outros), um exército que tortura, mutila, faz retrato das vítimas pisoteadas, zomba da intimidade de lares palestinos e se apossa de pertences íntimos dos aniquilados.


Crianças, mulheres, idosos, civis: duzentos mil assassinados, mutilados, torturados, esmagados em Gaza, assim como no Sudão, no Congo, na Síria, na Líbia, no Afeganistão. Com a única diferença que ao contrário dos outros genocídios em curso, grande parte das cenas do genocídio do povo palestino está transmitida ao vivo nos stories das redes sociais de entretenimento.


Diante desse espetáculo sórdido e imoral, síntese do aperfeiçoamento das atrocidades dos mais cruéis momentos da humanidade, o mundo assiste calado: a hipocrisia dos seus líderes e governantes, o silêncio cúmplice das nações árabes, a não manifestação da maioria da população mundial, a inação da ONU e de todos os organismos internacionais.


Na Palestina está assassinada toda e qualquer ideia de civilização e cooperação entre os povos que possa um dia ter sido propagandeada como possível e existente.


O próximo alvo

Utilizando da lógica de destruição de um povo originário está aberta a temporada da caça individual em todas as partes do mundo: em breve, em qualquer momento, em qualquer lugar - pode ser tomando café da manhã na padaria da esquina - qualquer um pode ser o alvo a ser atacado e eliminado instantaneamente por qualquer força de extermínio fardada ou não, que se arrogue julgadora-executora, se valendo de qualquer mandamento auto-impresso, sob o olhar atônito, mas concordante, de todos os outros da vizinhança, que hão de dizer e pensar diante das ações dos autômatos exterminadores: “deve haver alguma razão nisso tudo” e “antes ele do que eu”.


Ainda assim o cidadão padrão injetado-inserido do “mundo global digitalizado-totalizado civilizado”, líquido ou não, criptografado ou não, desempregado-empreendedor ou não, nômade digital ou não, sentindo-se confiante e protegido no seu castelo de garrafas de cerveja ou de diversões eletrônicas ou com a posse de inúmeras armas de fogo legalizadas ou mergulhado profundamente em alguma teologia do domínio ou qualquer outra falácia mal impressa, entre um grito e outro de gol, poderia dizer: “e eu com isso?”, mas a fantasia hipócrita não é mais uma possibilidade de fuga ou sobrevida, no máximo é apenas violenta aberração reverberativa.


O fim da vida humana na Terra

O ponto de não retorno da floresta amazônica, que para a ciência de encomenda, jamais chegaria, foi enfim listado para 2050, em seguida antecipado para 2029, agora pode ocorrer a qualquer momento.


Os indígenas e os povos da floresta lutam a sua mais importante batalha pela salvação da Amazônia e da vida enquanto o mundo assiste e aplaude o avanço da destruição pelos velhos negócios dos fazendeiros colonizadores, o início da exploração de petróleo na foz do rio Amazonas e a construção com apoio dos governantes de estrada de ferro dentro da floresta para escoar as próprias riquezas da terra.


O gelo da Antártida assim como a floresta Amazônica, sempre esteve na lista de coisas infinitas das enciclopédias. Após décadas de negacionismo por grande parte do mundo acadêmico quanto ao derretimento provocado de forma direta pela ação humana, a Antártida também se aproxima do seu ponto de não retorno.


No mundo com a informação impressa na palma da mão, não há quem não saiba o significado do ponto de não retorno.


O degelo do “gelo permanente” do Ártico e das cordilheiras, a destruição das barreiras de corais estão próximos ou já ultrapassaram o ponto de não retorno.


Toda a destruição da natureza no planeta pela ação humana, dia a dia, de cada ponto interligado, está prestes a produzir um novo planeta inabitável para a humanidade.


A destruição do equilíbrio das correntes marítimas, o fim da água doce, a extinção das florestas que ainda restam, prestes a aumentar as temperaturas para um nível impossível para o ser humano sobreviver, seja pelo calor intenso, seja pela destruição total de qualquer forma de cultivo de alimentos.


A ONU, a instituição que não consegue deter o genocídio dos povos pela expropriação colonialista, afirma que a humanidade tem apenas os dois próximos anos para salvar o planeta.


Então o cidadão do mundo que não se importa com a destruição da civilização, talvez possa querer se importar com a destruição da vida na terra ou escolher ser como um rato numa caixa de ratos de laboratório, sempre tentando se esconder para ficar por último para ser usado nos testes ou como gado bovino na fila do abatedouro, tentando driblar a fila e se colocar na última posição de abate. A dúvida é se a sua voz ainda poderá dizer: “E eu com isso?”


Dependendo das escolhas, não haverá cápsula do tempo com recorte dos feitos humanos, bunker com design futurista, nave espacial, tutorial de dancinha frenética, mini-diário de nômade digital, hieróglifo em pirâmide ou relato de alguém a seu neto que dará conta de narrar tão singular experiência coletiva e individual do homo sapiens no planeta azul.


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foto:

Oráculos (exposição Oráculos / Walter Antunes)



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