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Sobre o ultrapassamento da guerra



Depois de algum tempo sem se encontrarem Walker Dante e Roselena conversam, inevitavelmente, sobre a guerra...



Walker Dante - Você tem certeza de que quer falar sobre guerra depois desse tempo todo sem conversarmos? Você sabe, nosso discurso estará se somando, engrossando esse caldo que ele mesmo gostaria que desaparecesse da face da terra. E outra coisa: a tentativa de comunicação de um assunto complicado nessa nossa época cibernética é sempre uma coisa estranha. É que agora confunde-se "comunicação" com o fato das pessoas terem telas, câmeras e microfones às suas frentes o tempo todo.

Roselena - Sim, não é fácil sustentar a contemplação das imagens da guerra.

Walker Dante - Não se trata de contemplar, a guerra simplesmente se interpõe frente aos nossos olhos.

Roselena - Sim, e há ainda aqueles que, desesperados, nos cobram a contemplação sistemática de todas as guerras porque temos dado importância apenas a uma, e isso revela a superficialidade e a mesquinhez dos nosso próprios sentimentos profundos, e daquela nossa vulgaridade, aquela que nos distancia do ideal do homem universal.

Walker Dante - Há essa moralidade calcada nos argumentos da legalidade iluminista, enfim a base do sistema civilizado que temos o dever de sustentar - pois que somos isso - própria da expressão dos espíritos cultos. Ocorre que discursos contendo apenas esse tipo de coisa enfraquecem rapidamente após surgirem porque exprimem um investimento de energia numa visão de mundo flagrantemente parcial, qual seja, a parcialidade da pretensão da inteligência intelectual destituída de corpo e de emoções. As opiniões sentimentais tendem a ser mais exatas.

Roselena - E há ainda aquilo sobre o que Simone Weil alerta: "Odiamos as pessoas que gostariam de nos levar a formar relações que não queremos formar". E, olha, ela diz isso naquele texto "O anel de Giges", em que um pouco antes diz: "Um dono de fábrica. Tenho estas e aquelas satisfações dispendiosas e meus operários sofrem a miséria. Ele pode muito sinceramente ter piedade de seus operários e não formar a relação".

Walker Dante - ... é, há tanta coisa.

Roselena - O fascínio de grande parte das pessoas pela ostentação do máximo de enormidade de poderio bélico é um fato real que geralmente tenta-se enfrentar contrapondo um argumento sobre a ilusão que esse fascínio consiste. Trata-se de um fenômeno análogo ao fascínio do pássaro prestes a ser comido pela cobra que o "hipnotiza", paralisando-o. É uma fase da entrega que aparece como antecipação da entrega total, de modo que, de fora, tende-se a achar que "o pior pode ser evitado", ou que é possível um despertar da consciência do elemento que se encontra fascinado. Essa qualidade da alma, qual seja, a da suscetibilidade ao fascínio da força de morte está na base - junto com outros elementos - da estruturação do senhor da guerra, desse sujeito que toma para si a proposição da guerra. Essa tomada de posição libera a massa do gênero humano da responsabilidade sobre a guerra e o senhor é coroado, materializado, e realizado sobre essa energia. As metafísicas que versam, ao longo dos séculos, sobre o ilusionismo contido na ideia de existência do sujeito não serviram até agora para eliminar as possibilidades da guerra e de todos os fenômenos aparentemente irracionais que podem ser entrevistos de forma nítida pela abordagem platônica clássica expressa aqui nessa minha fala. Há sempre um senhor da guerra e outros senhores que jogam com ele essa rodada. Uma guerra é sempre interesse particular de um chefe. Abundarão peças estéticas sobre o soldado desmoralizado.


Walker Dante - Essa ostentação tem a ver agora também com a intencional propagação dos movimentos fascistas, financiados pelos senhores da guerra. Além disso provavelmente a beleza desse fascínio, a beleza do guerreiro, seja o elemento necessário à viabilização da contemplação das imagens da guerra. Contempla-se a morte apenas através de seus disfarces a despeito, é claro, da proliferação cibernética de fotografias e vídeos reais sobre eventos outrora inimagináveis de serem representados com tanto despudoramento. Mas o profissional da guerra, o mandatário, o rico, o tirano… ninguém imagina realmente o quanto essas pessoas se acham superiores, possuidoras, controladoras de alguma macro-situação, ninguém imagina o grau de certeza que sustenta essas personalidades. São pessoas sem "fragilidades". Ah, como todos os fascistas do mundo se admiram reverencialmente, se espantam, se exaltam, se congratulam e explodem em contentamento ao contemplar os senhores da guerra! Obviamente isso acontece porque a identificação é impulsionada justamente pelo saber oculto de seu contrário: no fundo a pessoa comum sabe que é de uma espécie muito diferente dessa outra, dos poderosos.

Roselena - Sim, diante dessa guerra da Rússia contra a Ucrânia podemos observar todos os matizes de combinação psíquica dos interativistas nas redes sociais cibernéticas em monótonas ou excitantes variações (dependendo do estado dos sujeitos). O comunista stanilista declarando amor e entusiasmo por Putin e os fascistas brasileiros, idem; o cristão religioso pedindo por oração ao povo ucraniano; os filósofos críticos irremediavelmente cínicos porque sempre burgueses, apontando o caráter de jogo de torcedores de arquibancada entre dois "times"; os intelectuais descrevendo a conjuntura das implicações da OTAN e dos EUA na promoção da guerra; os herméticos explicando que as partes antagônicas são estruturalmente associadas. E o fato ou o acontecimento está aí, se apresentando como um fenômeno em si, com a grandeza de tudo o que se torna autônomo, repousando em suas expectativas do sentido, as quais proliferam, se expandem e se consolidam: a guerra como essa breve flor da civilização, com seus frutos rápidos, vindos em seguida aos primeiros choques.

Walker Dante - Vou pegar o seu gancho sobre as flores e frutos. A minha moralidade, você sabe, sempre desconfia do porto da legalidade. Apenas porque sou cristão digo sem medo de errar que as pessoas que apoiam uma guerra, mesmo que com seus pequenos discursos de papagaio de rua, são imorais. A dimensão intrínseca do discurso é só mais uma arma entre as outras, na guerra. Encontrar no discurso uma justificativa para a guerra, essa é uma das faces da despudorada imoralidade que, a serviço da guerra, funciona de maneira peculiar: como arma difusa e disfarçada, subitamente o discurso se mostra deslocado de sua funcionalidade tática, confinando-se a si próprio como fenômeno exclusivo da "área do discurso", uma espécie de área neutra, imaterial, fazendo-se com isso incidir mais profundamente os sentidos da guerra nessa estrutura motivacional do "fascínio" pela guerra. Em suma, nada na guerra é honesto. Esses dias encontrei um papagaio fascista empunhando a Torá, defendendo o direito russo à guerra, dizendo que o Cristo veio bagunçar tudo para fomentar a discórdia no mundo. Escandalizei.


Roselena - É isso, todas as combinações entre cacos e estilhaços são possíveis. Artistas trabalhando com materiais não-artísticos já mostraram isso (artistas ativistas do meio-ambiente fazem obras com a lama da barragem rompida, com óleo vazado nos oceanos ou então compõem retratos com caviar, lembra do Vik Muniz?). Nesse sentido é interessante perceber como a guerra se furta a ser apreendida como algo banal. Uma posição, uma opinião é exigida, de forma que não levá-la a sério é ser ingênuo. De fato a inerente impotência das pessoas as fazem refluir para a condição íntima e mágica de seus pensamentos - na verdade imaginações - sobre a guerra, num livramento de consciência típico de animais conformados com a vida na antessala do abatedouro. A política brasileira quanto à guerra segue um estilo, arrisco dizer, próximo ao estilo africano, moçambicano, angolano, etc.; simplesmente resigna-se à guerra; gente abunda, é como "mosca", não se tem outra solução. Desculpe a digressão. É que as pessoas não parecem carregar marcas corporais que as identifiquem como agentes da guerra, no sentido de associarem a sua corporalidade material em toda a dimensão existencial possível, à causa da guerra. Parecem participar, na maioria das vezes, apenas como pobres seres que inflamam seus corações e mentes na fruição das imagens do poder, assim se irmanam com os que estão realmente levando as bombas na cabeça, tendo tudo à volta inteiramente devastado. Como o pobre povo desobedecerá grandes generais? A autoridade se impõe flamejante e estrondosa em seus brilhos cruéis.


Walker Dante - A velha guerra em novos tempos. Pense que hoje em dia todos os jovens do mundo brincam jogos de computador globalizados ansiando por estrearem de verdade na "arte" da guerra.


Roselena - Desesperador. Geralmente a palavra jogo tende a reduzir indevidamente e perigosamente o sentido da guerra. Por exemplo: aquele que é acostumado a jogar futebol comparar-se-lhe-á com o futebol; aquele acostumado aos jogos corporativos de fases tende a vê-la dessa forma, vão "administrando" um modo de existir; os iluministas legalistas apontam suas origens históricas; o Sun Tzu oferece um mapa popular básico; tem gente que refere-se ainda a um jogo famoso de tabuleiro, pré-computador, com esse nome, "guerra", em inglês e claro.


Walker Dante - Isso me fez lembrar do pensamento de Wittgenstein e da ideia de "família" nos jogos de linguagem. De entre todos esses sistemas de regras, de todas essas famílias de jogos de linguagem, depreende-se que a guerra, ao contrário do que parece, gaba-se de ser uma expressão da razão em sua expressão prática; uma guerra nunca almeja esboroar o extremo, mas sim ocupar o máximo de espaço dentro de limites. Os antropólogos explicam os fundamentos da guerra como fenômeno intrínseco à forma da espécie, e nossa espécie é racional: é a espécie da linguagem. Claro que a guerra parece ser, e é, inerentemente um ultrapassamento de limites sob o ponto de vista de quem é atacado. É nesse sentido que a guerra é realmente perigosa. É sim, possível, o lançamento das bombas atômicas porque os comandantes da guerra, dentro de seus limites racionais, perceberão que é vantajoso jogar a bomba dentro do contexto de um momento tático do seu jogo.


Roselena - E é nessa perspectiva redutora de "jogo", que a guerra apresenta-se sempre de forma a dar a perceber seus princípios como coisas simples e esquemáticas. Todos sabem que se trata de uma guerra quando há uma guerra. E o que poderia ser o simples senão uma compreensão baseada na exemplificação dos próprios sentimentos íntimos e atitudes pessoais que simbolizam a guerra a todo instante? A guerra é o resultado do egoísmo, com seus dinheiros, poderios sobre gentes, privilégio com relação ao controle das mortes, sua peculiar estética e disputas sobre essas coisas. Nada muito mais que isso. Nesse sentido a guerra não é bem um jogo de linguagem, mas sim um jogo conducente à ideia de fim da linguagem. O fim do mundo há muito é propriedade dos estados e das pessoas mais fortes e ricas do planeta. E se as guerras, como metáforas, normalmente se apresentam como guerras rituais e virtuais, servindo a algum propósito neurótico, de entretenimento ou de mecânica da banalidade cultural, isso apenas mostra que elas são reais. Assim, a atualização ocorre, infalivelmente, como com tudo o que é real. Ela ocorre como um direito. Porém, como com todo o poder, dinheiros, mandonices e egoísmos, é atualidade para poucos, à medida que seus senhores se esforçam por distribuí-la para o máximo de pessoas. Seus confins são o seu discurso e suas disseminações são ecoantes. O povo pobre brasileiro, por exemplo, vai sofrer ainda mais com a inflação, desemprego, etc. por causa da guerra na Europa.


Walter Dante - É verdade, o povo já familiarizado... acho que não existe nenhum brasileiro que não seja vítima de extorsão de alguma "máfia" poderosa, seja em que nível for, família, serviço público, um bandido na rua, ou a milícia do bairro. Há valentões por todos os lados. Estamos cercados de guerra. Quem não faz guerra? Ai, essa palavra guerra, tão profusamente utilizada como metáfora de eficiência e força em tantos níveis cotidianos e existenciais ao longo das eras. Ah, o valor que tem o poder criativo da guerra que, num período bem menor de tempo, pela destruição, cria muitas mudanças em comparação com os longos períodos de construção, necessários em tempos de paz (tempos calmos e alegres). A guerra cria fome, desespero, uma variedade grande de formas de sofrimento físico, emocional, mental e social. A guerra muda tudo. Todos os adolescentes amam simular o poder de matar em seus jogos planetários pelo computador. Isso é coisa mais que sabida, batida, debatida. Trata-se da guerra como horizonte do possível, como depreendemos da tese da guerra pura do Virilio: a própria civilização, com suas cidades, é feita de acampamentos permanentes de guerra, com seus senhores permanentemente guerreando, seja de forma semi-oculta ou ostensivamente às massas. E parece que do ponto de vista dos senhores da guerra muitas vezes a sua eclosão ostensiva pode ser explicada de maneira simples e crua como uma boa ideia para se gastar o "excedente humano" das estruturas capitalistas. Essa é a natureza horrorosa do fascismo, a ideia de que a morte, sobretudo de vidas individuais da mesma espécie, seja uma espécie de higiene. Obviamente que as outras formas de vida não são consideradas propriamente como "vivas". São coisas inertes, portanto não se atribui poder de culpa a elas. Assim o fascismo sustenta o racismo porque, pelo racismo, pode-se alinhar seres humanos "ao que não é humano", portanto ao que já está morto. A guerra pura assenta-se na visão do morto como tesouro.

Roselena - Então... mas a despeito de toda a sua estética da morte a guerra é também associada à riqueza porque ao firmar-se, apresenta-se acompanhada de discurso, o que a legitima fenomenologicamente. À inerente positividade do fenômeno (qualquer um, posto que é sempre existente) é justamente o que estamos acostumados associar a ideia de vida. Mas a vida é, fundamentalmente, "riqueza" (multiplicidade de elementos dispostos à ordenação cósmica). Nesse sentido é rompida, com a guerra, a percepção da harmonia característica da positividade existencial e, em seu lugar, instala-se a falta, o sofrimento, a ferida, o buraco, a morte, enfim, o brusco atentado direto contra a vida que é, não obstante, construído discursivamente como uma positividade. Essa força "contra a vida", o que será? Por aí se vão múltiplas metafísicas a gastarem as energias do presente em fumaças. Porém uma visão de mundo sempre é possível. Alguns dizem que ele está acabando, outros começando, e tem alguns que dizem que o mundo está no meio de sua jornada existencial. Nesse ínterim, a distância com relação a "ver o mundo" engendra um tipo particular de paisagem: a do deserto. Tem sido essa a imagem preferida de muitos.

Walter Dante - Pois é... temos de levar a guerra a sério ou fazer picadinho dela, pois depois de deflagrada, nada mais é inteiro: não é à toa que no plano do discurso as palavras contrárias são utilizadas para mascarar sua realidade material: exércitos são denominados forças de paz; uma conquista é defendida como necessária para a reunião da inteireza perdida; um argumento revela que a guerra constitui-se de uma reação a uma provocação feita de quebra de regras do jogo que vinha sendo jogado; os noticiários nomeiam as pessoas massacradas de "cidadãos", etc. Ou seja, a mais rasa "novilíngua" invade o campo das expressões que se propagandeiam. O discurso da guerra é esquemático ao máximo e não deve ocupar demasiado espaço porque o número de jogadores desse específico e perigoso jogo é reduzido, e isso é o seu valor. Poucas e precisas palavras e muitas bombas e exércitos é a condição ideal dos grandes senhores da guerra.

Roselena - ... então se é linguagem ou o fim da linguagem... a guerra é uma linguagem tão completa que, por fim, se derrotados, não temos mais o que falar, ou não queremos, e aí sentimos que precisamos ficar tristes e mudos e se, sem alternativa, vemo-nos em meio a ela, percebemos horrivelmente que a guerra se faz, não se conversa.


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